O jornalismo e a música pop

Quando uma amizade pode interferir num trabalho
por Juliano Costa
Texto publicado originalmente em 30/03/2001 na versão 1.0 do Scream & Yell

Nota do editor: apesar do texto abaixo ter sido publicado 10 anos atrás, na  primeira versão do site, e vários dos profissionais entrevistados terem mudado de redações, a discussão ainda é oportuna.

No filme “Quase Famosos”, de Cameron Crowe, um garoto, William Miller, aspirante a jornalista, se vê numa espécie de “trabalho de seus sonhos”: acompanhar a turnê de sua banda predileta, ao lado dos músicos, e escrever uma matéria (de capa, inclusive) sobre essa banda para uma grande revista de rock – e ainda ser pago pra isso!

No começo, é tudo alegria para o garoto. Mas o convívio com seus ídolos, até então inatingíveis, fascina-o de tal maneira que seu trabalho, o motivo original da viagem, acaba passando a um segundo plano, ofuscado pela crescente amizade gerada por essa convivência.

E eis que, tanto o editor de Miller, já suspeitando da intimidade do jornalista-mirim com a banda, e os próprios músicos, céticos em relação à maneira como serão retratados na revista, perdem a credibilidade pelo trabalho do garoto.

Isso acaba levantando uma questão: quando se é amigo dos integrantes de uma banda, é possível que um jornalista faça uma crítica ou uma resenha imparcial e honesta sobre essa banda, sem que a amizade exerça algum tipo de interferência no texto? É correto ser amigo de uma banda e fazer uma crítica sobre ela em um grande veículo de imprensa?

O diretor Cameron Crowe, com seu filme praticamente autobiográfico (William Miller, o garoto, seria ele próprio, que também começou sua carreira como crítico musical) deixa claro que dificilmente se pode fazer uma crítica “honesta e impiedosa”, como aconselhava seu guru, o lendário Lester Bangs. Miller, maravilhado com o mundo-roque, é apenas honesto em seu texto, mas nada impiedoso. Pelo contrário: a amizade com os integrantes da banda “amolece seu coração”, e o impede de julgar o trabalho da banda com uma cabeça de crítico.

Sobre esse assunto, falamos com alguns dos principais jornalistas que escrevem sobre música no Brasil. Leia suas opiniões:

Lúcio Ribeiro, repórter de música e cinema do caderno Ilustrada da Folha de São Paulo e da seção Pensata, do site Folha On Line (nota do editor: atualizando para 2011: colunista do IG e colaborador de O Estado de São Paulo) credita que o jornalista profissional precisa ter discernimento sobre o assunto: “Não há problemas em escrever sobre uma banda de amigos desde que o jornalista acredite mesmo que o tal grupo mereça esse espaço”. Lúcio diz que nunca se deparou com o problema, pois suas críticas são, na maioria, sobre bandas estrangeiras.

Colega de Lúcio na Ilustrada, Marcelo Valletta pensa de forma diferente. “Acho incorreto fazer matérias com amigos. Se você for designado para a tarefa, convém explicar a situação ao seu superior e pedir que ele indique outra pessoa”, declara o jornalista. “Mas caso você seja mesmo obrigado a escrever a tal resenha, deve utilizar o rigor crítico de costume”, completa Valletta. “Se a amizade vai interferir no texto, isso vai depender da pessoa. É preciso frieza e profissionalismo nessa hora”, conclui o jornalista, que confessa nunca ter passado por uma situação parecida com essa.

Opinião semelhante tem José Flávio Júnior, editor-adjunto da revista Bizz (nota do editor: atualmente na Oi FM e na revista Bravo!): “Não é correto para um crítico musical ser amigo de banda, mas é inevitável ser colega e ter conhecidos, que acabam virando até fontes”, diz José Flávio, que acredita que usar os colegas músicos como fonte é um outro problema ético do jornalista. “Eu não queria dizer essa obviedade, mas tudo depende. Se o cara consegue discernir seu contato com o músico da resenha que vai fazer, ótimo”, atesta José Flávio, que conclui: “A resenha é do disco, não da amizade”.

André Barcinski, um dos apresentadores do programa Garagem, da rádio Brasil 2000, de São Paulo (nota do editor: atualmente colunista da Ilustrada Online e colaborador da Folha de São Paulo), é ainda mais radical: “É óbvio que não (é possível fazer um texto imparcial), pois jornalista que se preza não fica amigo de artista. Essa é a regra número um do jornalismo cultural”, declarou o jornalista, que lamenta que, “no Brasil, infelizmente é normal ver nome de jornalista na lista de agradecimentos de discos”.

Barcinski acredita que o dever de entrevistar e ter contato mais direto com os artistas cabe ao jornalista, e não ao crítico. “Nos EUA, pelo menos nos órgãos mais sérios, os críticos trabalham na redação. Eles não entrevistam artistas, estão lá apenas para resenhar obras”, disse o jornalista. “Já no Brasil, não há uma divisão clara entre jornalistas e críticos de música”, concluiu Barcinski, que confessa ser amigo dos integrantes da banda Sepultura, mas que já os conhecia antes de começar a escrever sobre música.

Correspondente da Tv Globo e do jornal Folha de S. Paulo em San Francisco, EUA, o jornalista Álvaro Pereira Júnior (nota do editor: atualmente editor do programa Fantástico) também entende que seja errado escrever crítica sobre amigos. “A não ser que você tenha uma liberdade tamanha de texto que lhe permita escrever algo do tipo ‘sou suspeito para falar desses caras, porque eles são meus amigos’”, contrapôs o jornalista, que assina uma coluna sobre música no suplemento Folhateen, da Folha de São Paulo.

Álvaro alerta também para o fato da existência de muitos jornalistas que prestam serviços a gravadoras. “Tem muito crítico de música, principalmente no Rio (de Janeiro), que escreve release usando pseudônimo para gravadoras”, afirma o jornalista. “E depois ainda vai criticar discos dessa mesma gravadora!”, exclamou Álvaro, que preferiu, por motivos éticos, não revelar o nome desses jornalistas.

Em uma coluna antiga no caderno Folhateen, Ondas Curtas, o jornalista André Forastieri alertava:

“Não é tão complicado assim trabalhar na imprensa musical. O que você ganha com isso? Não muito. Você entra em show sem pagar e ganha montes de CDs. Viaja a trabalho para entrevistar uns e outros. É convidado para festas de lançamentos de discos.

E, claro, conhece um monte de artistas. Às vezes, até fica amigo de um monte de artistas. Se isso acontecer, está na hora de pedir demissão e mudar de carreira. Ninguém tem coragem de falar mal dos amigos. Ou, invertendo, não tem carreira que valha a perda de um amigo de verdade”.

O que você acha, caro leitor?

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Leia também:
– “Quase Famosos”, um filme de amor, amizade e rock and roll, por Marcelo Costa (aqui)
– Lester Bangs foi provavelmente quem mais escreveu com alma, por Marcelo Orozco (aqui)
– “Astral Weeks”, de Van Morrison, resenhado por Lester Bangs (em inglês aqui)
– “How to be a Rock Critic”, texto de Lester Bangs (em inglês aqui)
– “Jerry Maguire”, uma rara comédia romântica para homens, por Marcelo Costa (aqui)
– “Vanilla Sky” ou filminhos bons são só passatempo esquecível, por Marcelo Costa (aqui)
– “Tudo Acontece em Elizabethtown”, um recorte de várias idéias, por Marcelo Costa (aqui)
– Introdução ao livro “Not fade Away”, de Ben Fong-Torres, por Cameron Crowe (aqui)
– Teoria de Alison e Reflexões Alisônicas, dois textos do Miguel F. Luna (aqui)

8 thoughts on “O jornalismo e a música pop

  1. Acho que existe uma palavra-chave para isso: saber o que você faz no jornalismo. Não tem jeito: a maneira como você gosta de música determina o quão mané-caneta você vai ser. E outra: ser amigo é uma coisa que não acontece toda hora. Se você é jornalista e é amigo do coração de tantos artistas assim, amigo, sei lá, dá uma revisada. Isso não acontece toda hora.

    Bom lembrar também que ficou mais fácil de você ter um amigo que era seu vizinho como o rapaz com o vídeo mais acessado do YouTube.

  2. Jarmeson, o que você disse se aplica a qualquer situação na vida que envolve a amizade. Quem reclama de ser criticado pelos amigos não quer um amigo, mas sim um bajulador acrítico.

  3. Eu tb acho perfeitamente possível ser amigo e ser imparcial , não só na música – como bem frisou o André LCD – com tb no dia a dia.
    Se eu sou jornalista e tenho uma resenha pra fazer sobre um cd – ruim – de amigos, ao criticá-los estaria sendo – de uma cajadada só – verdadeiro comigo, com eles e com minha profissão.
    Acho uma questão elementar, embora saiba que obviamente terá consequencias. Ou o cara é um babaca que não sabe absorver críticas – e aí quem não quer um amigo assim sou eu – ou ele passa até a te respeitar mais.
    Sobre o que o André Barcinski falou eu me lembrei dos encartes dos cds da Nação Zumbi e do Mundo Livre S/A todo recheado de agradecimentos a jornalistas.
    Sinceramente não vejo mal nenhum. Amigo de verdade – em todos os sentidos – tb pode elogiar.

    PS: Ainda bem que essa babaquice de pegar os EUA como exemplo está meio que diminuindo.
    Viva a China! rsrssrs

  4. Sou jornalista, naturalmente fiz amizades com músicos por conta de ter tido programas em rádios – USP FM e BR 2000-, e nem por isso deixei e ser isento quanto resenhei um disco de amigos.

  5. Gostei bastante desta matéria e sinto que não foi excessivamente teórica. Realmente, é complicado separar as águas no meio do jornalismo musical. Concordo mais com Lúcio Ribeiro, é possível fazer uma crítica (resenha), de show ou disco, isenta, desde que o jornalista ponha de lado as ligações com os membros da banda. Alimento esse pensamento com base no trabalho extraordinário de Lester Bangs, que se reflecte em “Carburator Dung”. Num texto publicado logo após a morte de John Lennon, com toda a carga emotiva associada, Bangs fez uma apreciação desapaixonada e até criticou o mito. Sim ! É possível senhores.

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