Música: “Kid A”, o Radiohead no topo do mundo

por Luís Henrique Pellanda

A Melancolia sempre esteve clinicamente ligada à personalidade artística. Doença ou estado de espírito, ela pode revelar tanto o gênio quanto a perversidade. Na história, na literatura, nas artes em geral, não foram poucos os melancólicos patológicos, fictícios ou não, que exibiram, com prazer e em público, seu dom maior e mais particular: um senso de humor singularíssimo, irreverente mas fechado para o entendimento médio. Melhor exemplo disso é Hamlet, espécie de precursor da melancolia do Ocidente.

Radiohead. Aí está uma banda que não ri. Ou raramente ri. A acidez quase infantil de Thom Yorke, em contraste violento com a afetação doce de sua voz, sugere aquele mal-estar típico dos que parecem estar sofrendo de uma azia constante, ali, bem no estômago da alma. O que não impede ninguém de achar graça nele e no que ele faz. No bom sentido. Porque Yorke tem declarado à imprensa, de forma velada, a sinceridade de suas intenções cômicas. Afinal, todo cronista do absurdo é, por obrigação, um pouco comediante.

E a piada da vez é fazer pouco caso da importância que o mundo passou a dar às suas queixas. Yorke, hoje, é um menino mimado. Objeto de culto incondicional, tornou-se o juggernaut ao qual ele próprio se referia em “Ok Computer”, o tal “carro de Jagrená” da mídia, alvo de devoção cega e sacrificial. Em outras palavras: uma droga de vaca sagrada. É um lunático genial e depressivo; um infeliz tão experiente e conhecedor de sua desgraça que pressupõe-se que se use sempre ouvi-lo e consultá-lo. Mas estejamos atentos: Hamlet também fingiu ser louco, e essa sua demência tática era o que tinha de mais original e divertido.

Divirtam-se, portanto, e sem culpa: é tudo pose, é máscara e teatro. Ironia marota, projeto de mau humor, tratado leve de niilismo. Thom Yorke, grande artista pop, deve ter lido Voltaire antes de compor as canções deste excelente “Kid A”. Logo na primeira faixa, “Everything In Its Right Place”, ele parafraseia o autor de “Cândido” ou “O Otimismo”. No clássico de Voltaire há um pretenso sábio, caolho e sifilítico, Pangloss, que passa a vida repetindo a máxima do pensamento mágico e positivo: tudo está o melhor possível neste que é o melhor dos mundos possíveis. Na canção do Radiohead, Yorke macaqueia os que acreditam na repetição hipnótica de uma idéia como método para transformá-la em realidade prática. Mil vezes seguidas ouve-se o verso: “Tudo está em seu devido lugar”. Esta impressão de paródia é ainda mais sensível na faixa 6 que, providencialmente, chama-se “Optimistic”. E o refrão proclama a grande mentira do conformismo moderno: “Se você faz o melhor que pode, então o seu melhor possível já é bom o bastante”.

Agora que está no topo do mundo, o Radiohead brinca com a própria imagem. Lança um disco em que foge de quase tudo o que o fez popular: não há guitarras sujas nem melodias espaçosas; a voz de Yorke está camuflada, pequena, escondida sob a produção linda e quase gelada de Nigel Godrich, o mesmo de “Ok Computer”. O disco todo, aliás, é frio. E é surpreendente como lembra, às vezes, Kraftwerk. Há pouco de humano (e, estranhamente, muito de alemão) em “Kid A”. De longe, por controle remoto. Nunca dá margem a crescendos emocionais. Em “How to Disappear Completely”, Yorke canta: “Não estou aqui. Isso não está acontecendo”. E é a mais pura verdade.

Em todo o disco, não se pronuncia a palavra “love”. Como se o amor fosse artigo proibido. Cândido, aquele “otimista”, já dizia: “Para cada beijo, vinte pontapés por trás”. Também não há sexo nem ódio, não se fala em nada edificante nem desprezível. E, paradoxalmente a essa ambiência desagradável de morte dos sentidos/sentimentos, dentro da armadura blasé que veste e protege “Kid A”, ainda há espaço para referências inesperadas à cantigas de roda infantis e bestas, recordações de cirandas lúdicas e passadas.

Na faixa-título, Yorke diz: “Ratos e crianças me seguem para fora da cidade”. É que ele se compara ao vingativo flautista de Hamelim, personagem de Robert Browning, poeta inglês do século XIX. O flautista do poema, com a doçura de sua música, encanta primeiro os ratos daquela cidade. Os bichos se atiram no rio e morrem. Depois, ele enfeitiça as crianças do lugar, que o seguem dançando até desaparecerem na floresta. O flautista livra, assim, Hamelim de um mal: afoga na corredeira os seus pavores e mágoas. Mas, levando embora seus filhos, rouba, do povo de Hamelim, toda a inocência e alegria, a fé na continuidade de cada vida. E, fora isso, o que resta? Voltar ao primeiro parágrafo.

Faixa a Faixa

‘Everything In Its Right Place”: R.E.M. A sonoridade sem data de “Up”. Envelhecimento artificial. Yorke segue Stipe. Como se sente? “Acordei chupando um limão”.

“Kid A”: Kraftwerk. A voz robótica é quase inaudível. Descaracterização intencional.

“National Anthem”: O groove lembra “Airbag”. Voz entubada. Uma dúzia de músicos de sopro irrompe em sessão de jazz inusitada.

“How to Disappear Completely”: Balada do velho Radiohead. Suspeita de quem a ouve: quando Yorke diz que desapareceu, acreditar nele parece fácil. Um fantasma convincente afirmando que não existe.

“Treefingers”: Bowie e Eno fizeram parecido com as peças instrumentais dos discos berlinenses. É a Alemanha, de novo. Ninguém vai dar a mínima.

“Optimistic”: Convencional e irônica. Parodia uma canção infantil tradicional: “Um porquinho foi ao mercado, outro veio do pântano”.

“In Limbo”: Um pouco amortecida, de propósito. Em um mundo de fantasias de beleza, prazeres estéticos fáceis.

“Idioteque”: Yorke canta com raiva pela primeira vez em meia hora. Contradiz a obra: “Isto está acontecendo de verdade”. Última chance para dizer “presente”.

“Morning Bell”: Irrelevâncias da separação: “quem vai ficar com a mobília?” Alguém quer partir: “Onde você estacionou o carro?” O julgamento sábio de Salomão: “Corte as crianças ao meio”. Triste, terrível.

“Motion Picture Soundtrack”: Base de acordeão. O abre-e-fecha das palhetas. De repente, um ataque de harpa. Parece Disney. Acaba e você está feliz.

Texto escrito à época do lançamento do disco por Luís Henrique Pellanda e publicada no caderno Fun, do jornal Gazeta do Povo, de Curitiba. Luís é jornalista e participa do site literário Rascunho além de ser vocalista da banda Woyzeck.

Leia também:
– “Pablo Honey”, por Eduardo Palandi (aqui)
– “The Bends”, por Renata Honorato (aqui)
– “Ok Computer”, por Tiago Agostini (aqui)
– “Kid A”, por Luís Henrique Pellanda (aqui)
– “Amnesiac”, por Marco Tomazzoni (aqui)
– “Hail To The Thief”, por Marcelo Costa (aqui)
– “In Rainbows”, por Alexandre Matias (aqui)

Leia também: “Kid A e Bruxa de Blair: não é só coincidência”, por Eduardo Palandi (aqui)

31 thoughts on “Música: “Kid A”, o Radiohead no topo do mundo

  1. Apesar de Ser um dos melhores textos que já li sobre Radiohead a época, fiquei um pouquinho decepcionado pq esperava ler algo novo, uma nova pespctiva desse disco que para mim é uma das obras primas mais intrigantes da música. enfim, mesmo assim. Texto sensacional assim como os outros.

  2. Um pouco inferior ao Ok Computer, mas mesmo assim meu preferido do Radiohead, dou nota 8/10, um dos melhores deles, gostava muito de ouvi-lo antes de dormir.

    Todo mundo sabe que o Pitchforkmedia é um site bem baba-ovo do Radiohead, site totalmente elitista, o maximo de nota que outras bandas conseguem tirar la é 8,9 porque eles nem tem a decencia de dar logo um 9,0, criaram ate o Richdorkmedia pra zoarem eles.

  3. É o meu preferido deles!

    E confesso que esperava um texto inédito tb… Esse é muito bom, mas esperava algo novo…

    Abs

  4. claro, bom é da 10 para discos dos Franz Ferdinand ou Strokes né meu filho?
    A resenha do Pitchforkmedia é antologica. E Kid A é um monumento =]

  5. eu sempre achei que o Kid A era como uma carta de suicídio..
    É o melhor disco que já escutei, sensacional, quase faltam adjetivos.
    Ano passado escutei inteiro quase todas as semanas, e até hoje não enjoei… :/
    Eu acho q parece carta de suicídio pq começa com “tudo bem” (everything in it’s right place), depois da faixa título tem National Anthem, onde o caos acontece. Aí ele deseja não existir (I’m not here, this isn’t happening”), depois tem Threefingers, onde nada faz sentido (a própria música, instrumental, não tem contexto). Acho q ela representa não saber o que fazer depois de uma merda grande na vida.
    Já “Optimistic”, obvialmente, é o otimismo. “in Limbo” é o “cair da ficha”, começando a entender o que aconteceu (“you’re living in a fantasy world”). “Idioteque” é a decisão final, tipo “vou me matar e pronto, é isso que quero.
    ” Morning Bell é a luta contra o resto do mundo dizendo para fazer o contrário (“release me, release me”). Motion Picture Soundtrack (música mais linda que já escutei) é o adeus (“stop sending letters/ sleeping pills, help me get where I belong (…) I’ll see you in the next life”).

    Nunca comentei isso com ninguem (onde moro, pouca gente conhece Radiohead) mas taí, finalmente falei ^^’
    Faz sentido? ><

  6. Eu também esperava um texto novo! Algo que pudesse mudar um pouquinho minha opinião sobre o Kid A. Diante das opiniões acima fico me sentindo um ignorante que não conseguiu descobrir, enxergar (ouvir) toda a beleza do disco. Se eu fôsse fazer uma coletânea do Radiohead (sou do tempo de gravar k7 para presentear amigos) só “National Anthem” entraria.
    Minha opinião permanece: a importância do Kid A é histórica – naquele momento da carreira, com tanta exposição, com tantas expectativas de fãs, da crítica e da indústria do entretenimento, Kid A funcionou como uma pedra no feijão. Não, uma pedra no feijão não é algo negativo, é algo que desperta, que faz pensar, que interrompe o mastigar automático.
    Para tocar em casa ou no carro ainda prefiro Ok Computer e The Bends

  7. Ae Tiagoonie, de tempo ao album, com isso vc ira apreciar-lo melhor, ja que Kid A fica melhor com o tempo.

    Agora uma coisa que eu pensava é que esse album era bem inovador, isso é ate ouvir 13 e descobrir que o Blur ja tinha feito isso um ano antes, isso me decepcionou um pouco, mas não deixa de ser um otimo album por isso.

  8. 13 fez isso como? na estética musical? a Inovação de Kid A é conceitual e estrutural. Fazer experimentalismo qualquer bandinha como o Blur pode “tentar” fazer. Na minha Opnião.

    e Diego, ótima analise, Apesar q vejo Kid A sob outro conceito.

  9. Tiagoonie, SÓ vc pensar em fazer um “seleção das melhores” dos Radiohead é uma prova que vc não compreendeu o conceitualismo de discos como Kid A e Amnesiac. Para mim esses discos são “literaturas musicais”. Disco que vc passa anos e anos e sempre descobre novos conceitos e angulos e isso é muiiiiiiiiiiiiiiito mais doq so ouvir o som de um disco e gostar da melodia.

  10. Leno, então os discos conceituais devem ser tratados separadamene ao revisitarmos a carreira de uma banda? SIM, eu entendo que Kid A é um disco para ser ouvido com muuuuiita atenção nos detalhes, munido de todas as referências possíveis. Entendo seu ponto de vista. Você foi bastante feliz ao cunhar a expressão “literaturas musicais”.
    Agora deixe usar exemplos para ilustrar minha impressão sobre Kid A. Quando ouvi “The Dark Side of the Moon” pela primeira vez fiquei muito impressionado. “O que isso que estão toacando? Vai muito além de música!!! Preciso urgentemente das letras e pesquisar sobre esse lado escuro da lua!”
    Por outro lado, de tanto ouvir falar e ler sobre o disco mais revolucionário de todos os tempos, um tal de “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, fui tentar estudá-lo, mas infelizmente não captei toda a genialidade inserida nele. Técnicas de gravação? Não sou músico, sou ouvinte, sou viciado em música, por isso preciso que ela me cause sensações, me prenda, me envolva.
    Para mim, Ok Computer fica na mesma categoria do “The Darkside of the Moon”. Kid A fica junto com o Sgt. Pepper’s.

  11. Perfeita a tua visão Tiagoonie. Não quis dizer que esses discos vc é tipo, “obrigado” a compreender para eles serem “geniais” mas é preciso como vc mesmo disse, estar disposto a mergulhar na obra, na arte e buscar sim suas referencias como arte de profundidade que são. Há uma cultura de “ignorar” a parte “literária” de bandas de “fora” pq não é a mesma lingua ou pq não falamos “inglês” e tudo ótimo é normal vc se apaixonar pela canção e oq ela te causa no aspecto “melodia” PORÉM soa mais como preguiça e vc se propror a tentar argumentar e estrutar uma opnião NÃO-munido de todos os elementos como LETRAS por exemplo, no máximo que dirá que discos como Kid A e The Dark Side of the Moon é : são “chatos” “lentos” “sonolentos” e isso meu filho é pobre demais perante grandes obras primas da inteligencia humana como são esses discos na minha opnião.
    mas compreendo a tua visão Tiagoonie =]

  12. quando alguém diz que a melhor coisa que ele escutou na vida foi kid a, fico pensando no que ele ouviu ao longo desse tempo…

  13. ismael machado Quando abre esse tipo de ironia eu fico pensando “será que ele realmente sentiu oq ouviu” ARTE meu filho é sentimento, um disco por mais “inferior” ou “simples” demais que possa parecer, reserva em seu conteúdo algo grande. Um disco do Bob Dylan e um disco do Pink Floyd, radicalmente diferentes, vc diria “ah pink é muito melhor” mas, pq? pq te comoveu ou pq “supriu” teu tecnicismo vazio??

  14. ismael machado, gosto é gosto.
    Expressse sua opinião, mas naum precisa ser irônico… é desagradável, e tudo que conseguiu foi fzr algumas pessoas te odiarem ;D

    o/

  15. Pra mim o texto foi excelente, pois ainda não tinha lido. Só fez eu gostar mais ainda do meu disco preferido do Radiohead.

  16. Kid A é o melhor Radiohead pós-OK Computer pra mim, e esse texto me deixou ainda mais orgulhoso do disco. Parece um discurso fraco, como se o texto legitimasse meu gosto… Mas talvez seja, também. É muito bom ler um texto com referências assim de um disco que nos é tão caro – e lê-los também sobre discos que não nos agradam, para mudarmos de opinião.
    Não é, obviamente, um disco de todos os momentos, mas pra mim faz todo o sentido do mundo nesse nonsense necessário para a minha existência. Questão de afeto.

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