A MADAME AQUI
Ohana
por Flávia Ballve Boudou

Prólogo 

Desnudo-me no que escrevo. Você não vê meu rosto, não vê meu corpo, mas vê minha alma. Mostro-me muito mais do que em uma pose ginecologicamente Hustler. 

Este texto foi escrito dia 21 de julho, meu aniversário. Não era coluna; eu tenho cá pra mim que deveria apenas brindar-vos com palavras interessantes / coerentes / que façam alguma diferença nas vidas de todo cada um. Só que o Má, o Marcelo Costa – este editor com ares de sério mas que tem 12 anos num corpo de marmanjo – se emociona o tempo todo com o que eu escrevo (a gente é amigo há muuuito tempo, uns 10 anos e várias vidas), e me incentivou a fazer esta loucura de publicar uma coluna assim colcha de retalhos. Lá vai. Reclamações, com ele. Elogios para meu email de sempre. 

Mílogo 

Qual a diferença entre « alguêm gostar de você » e « você ser importante para alguêm » ? 

Parece a mesma coisa, mas não é. Acabei de descobrir isso. 

Hoje é meu aniversário. Meu marido está na Irlanda, fazendo um curso de inglês. Minha familia mora a 10.000 km de mim. Logo, estou sozinha. 

Sozinha? Não. Estou com meu tigre de pelúcia no colo. Chorando com ele, vendo Friends e Almost Famous com ele, comendo brigadeiro com ele. 

Eu achei que eu era importante pra tantas pessoas. Que elas pensariam em me ligar, em me mandar um pensamento, custasse o que custasse. Mas eu senti, hoje, que algumas pessoas ligaram só por obrigação, educação. Gostam de mim, mas será que estariam de verdade do meu lado se pudessem ? Outras pessoas não puderam ligar, mas sei que pensaram em mim o dia todo. Se elas pensarem « 21 de julho », imediatamente pensarão « aniversário da flá ». Pra essas eu assino « fla », em minusculas e indefesa. 

Talvez eu seja só uma romântica, dessas que leu "O Diario de Dani" quando pequena. Eu defendo a tese de que certos livros e canções e filmes deveriam ser proibidos para crianças e mentes frageis. Alguns foderam com a minha vida e já fiz duas temporadas de análise. Muito dos meus problemas de relacionamento vem do fato de eu não me sentir « merecedora » do amor do outro. Vai dizer que não é culpa de « Com açucar com afeto » ? E essa história de achar que amizade de verdade é aquele em que se sacrifica pelo amigo, pacto de sangue, lagrimas e juras ? Culpa de « Coração », que li quando pequena, tenho certeza. 

Colocar sua vida nas mãos de alguêm não é mole. A gente se machuca. Mas este sentimento, de saber pra quem eu sou importante é muito forte, e chorei hoje por saudade de tudo isso – saudade dos aniversários que passava, tão inocente, junto de toda a minha familia ; saudades do meu amor que esta longe hoje ; saudade da época em que eu estava perto de mais gente, e mais gente parecia se importar comigo. 

Tá faltando Ohana no mundo. Ohana? Essa palavra havaiana eu aprendi no desenho da Disney, "Lilo & Stitch". A história, só pra situar os infieis que ainda não foram ver: Lilo é uma garota havaiana que mora com a irmã mais velha, pois os pais morreram num acidente. Só que Lilo, como era de se esperar, tem problemas de adaptação com as amiguinhas, se sente solitária, e sua irmã decide comprar-lhe um cachorro. É ai que entra Stitch, um projeto alienigena muito perigoso, que fugiu do seu planeta e veio parar na Terra, disfarçando-se de cachorro. Entre demonstrações do seu espirito destrutivo e muita música de Elvis, os dois acabam dando uma grande lição de vida. Com a palavra, Stitch : "Ohana significa familia. Familia significa que ninguêm será abandonado nem esquecido.". Acho que é o filme mais importante da minha vida. 

Criança, achava os adultos muito complicados – porque o tio tal não quer estar na festa com o tio outrotal ? Familia é familia e pronto, caramba ! E hoje, adulta, entendi que tudo é bem mais simples. A noção de familia não se define por um sobrenome ou linhagem, mas por um sentimento que é exatamente este Ohana. Da minha Ohana, fazem parte pessoas que não tem a menor ligação de sangue comigo. Reúno sob este grande guarda-chuva todas as pessoas que nunca me esquecerão, que eu nunca abandonarei. Tem gente da minha « familia » Dalcin Ballvé também, claro. Mas tem uma prima aqui, um tio não, dois outros dali, todo um lado que não... E assim vou selecionando. Na minha Ohana, os amigos e familiares « de titulo » viram ao mesmo tempo amigos e familia. Ohana. Muita gente ? Não. « Minha familia é pequena, ela foi partida, mas ela me convêm ». Quando a gente ama, a gente ama e pronto, cacete. A gente « stick together ». A gente se dá as mãos e a gente está lá quando o outro precisar. Não é uma questão de me telefonarem quando for meu aniversário, mas de eu ter confiança e me sentir amada o bastante. Saber que nao vou ser abandonada. 

Desenho da Disney é foda, né. Sempre tem uma licão de moral. Eu adoro, rio pra cacete, mas sempre tem uma lição de moral. É por isso que "Lilo & Stitch" me tocou tanto. Eu sou Lilo, eu sou Stitch. Em que outro filme da Disney uma menina de 6 anos (ou de 9 anos, que sei eu) põe pra tocar uma música toda triste do Elvis e diz pra irmã « deixe-me tranquila para morrer » ? Lilo é agregadora, Stitch é destruidor. Mas Lilo morde as amigas e Stitch se emociona com a história do Patinho feio. Só que nada disso importa, porque eles são da mesma Ohana, junto com a irmã, o assistente social que quer separar as duas e mais uns 2 ou 3 alienigenas de passagem. Nada a ver um com o outro ? Não. Só que eles não vão se abandonar. Ohana. 

Epilogo 

Não exatamente um epilogo, só uma dedicatoria pro meu "doudou", meu marido. Doudou ? Explico: no Brasil, há alguns anos, comecei a chamar meu labrador Spike - graaande figura - de "dudu", porque achava o som do nome muito carinhoso. Aqui na França, descobri que "doudou" - que se fala "dudu" - é aquele paninho que as crianças carregam pra todo canto, tipo o Linus, para se sentir bem, se sentir seguros. E então eu e ele nos chamamos "doudou", e não tem nada mais carinhoso. Porque eu preciso dele e ele me faz sentir bem e eu quero que ele esteja sempre comigo. 

). 

Flávia Ballvé-B., agora, 27 anos e curtindo férias, família e água de côco no RJ.
flavia@ballveboudou.com


Leia as colunas anteriores 

#1 - Uma partida de futebol
#2 - A vida pouco ordinária de Dona Linhares
#3 - O desafio nosso de cada dia
#4 - As pedrinhas são as notas, a melodia o caminho
#5 - La Politique
#6 - "Uau, você mora em Paris?"
#7 - O tempo que volta


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