A
MADAME AQUI
O
desafio nosso de cada dia
por
Flávia Ballve Boudou
Paris é
uma cidade muito difícil, muito dura. Quando penso nas
vezes em que li na revista Caras e em outras do gênero
frasezinhas sorridentes tipo "ah, eu adoro Paris, é uma
cidade muito romântica", eu tenho vontade de mostrar os
dentes. Muito linda a cidade, mas carrega todo o podre de um
país que parou no tempo.
Eu sei que
eu vou acabar descambando numa generalização simplória,
mas lá vai ; os franceses vivem ainda em uma lógica
maniqueista. É Paris X "province" (o "interior"), esquerda
política X direita, EUA X o resto do mundo, "nos franceses"
X "esses outros" (que podem ser arabes, negros...). E a noção
de bem e mal depende do lado que você está da equação;
de qualquer forma, o outro será necessariamente "oposto"
a você. Acaba que essa arrogância poderia até
ser apenas um traço cultural interessante, digamos assim,
pitoresco, curioso; e até o é, em algumas regiões
da França, onde dá até pra achar graça
de opiniões assim. Mas em Paris, esse tipo de prepotência
se aliou ao estresse de uma grande cidade - com seus problemas
como toda grande cidade - e criou uma agressividade gratuita
que ainda hoje, com 2 anos de França nas costas, me faz
ter crises de choro e tentar me proteger (em vão).
Não
falo só da agressividade de metrô não, onde
todo mundo anda super rápido, sem paciência com
os abobados turistas que param no meio para ler mapa, ou das
pessoas que não se levantam pros velhinhos sentarem,
ou senão dos loucos, dos bêbados ou dos jovens
de "banlieue" (subúrbio) que falam alto e importunam
as pessoas (e que me deixam me borrando de medo, porque no Brasil
eu sei que eu posso dar minha bolsa ou uma grana pra um pivete
e ele vai embora - e aqui, quando um cara desses resolve puxar
papo, eu não sei o que fazer, que reação
ter. Ignorar? Sair correndo? conversar mas não aceitar
a "paquera"? já soube de meninas levando porrada por
adotarem indiferentemente uma ou outra alternativa).
Não.
A agressividade que me dá mais medo e com a qual eu mais
choro é de outro tipo, inexplicada, inesperada, aberrante,
gratuita. E a melhor forma de mostra-la é contar o que
me aconteceu hoje de manhã e que me fez chorar em duas
sessões de 20 minutos, sair e gastar 150 reais em creme
e perfumes só pra ver se me sentia melhor, e ainda agora
me fez me entupir de amendoim (ai, meu último pacote!).
Eu fui no
médico há umas 2 semanas (nada de grave, exame
de rotina) e achei a doutora até razoavelmente amigável
(era a minha primeira consulta com ela). Ela recolheu material
para exame e disse que eu receberia depois, pelo correio, os
resultados. Bom, recebi dela na quarta-feira uma receita médica
para um tratamento (que já usei várias vezes no
Brasil) e resolvi ligar para tirar dúvidas, já
que não conseguia ler direito a receita. Ela me atendeu
super rispidamente, dizendo que eu não tinha me tratado
da última vez que tive esse quadro (mentira, porque eu
ja tinha inclusive usado o mesmo tratamento e ela sabia) e,
antes que eu continuasse a perguntar muita coisa, desligou.
Fiquei chateada mas pensei "bom, ja fiz esse tratamento tantas
outras vezes, não vai ter problema". Dai ontem recebi
pelo correio os resultados do laboratório, indicando
um leve quadro inflamatório. Poxa, ler uma descrição
de todas as suas celulas assusta, e expressões tipo "remanejamento
inflamatório importante" me deixaram sem entender o que
estava acontecendo e quis falar de novo com minha médica.
Fiquei super agoniada porque já imaginava que ela seria
rispida de novo, dai me preparei psicologicamente, coloquei
o Olivier do meu lado pra me dar força e liguei hoje
de manhã:
- Bom dia,
Dra., aqui é Mme Boudou, eu liguei na semana passada...
A senhora está em consulta, quer que eu ligue outra hora?
- Pode falar.
- Na verdade eu tenho algumas
perguntas sobre o tratamento, eu recebi os resultados do laboratório,
e queria perguntar porque é que a cada vez que eu faço
esse exame aparece esse tipo de inflamação. É
algo que eu tenho?
- Aha (risada de desprezo),
isso eu não posso saber, Mme, eu só a vi uma vez.
- Certo, eu sei, mas como
eu ja tive isso outras vezes eu...
- A senhora não tratou
da outra vez.
- Ahn, sim, tratei sim mas...
(vendo que eu nao conseguiria nada por ai) quanto tempo dura
o tratamento?
- Aha (risada de deboche),
está ai escrito 2 caixas, portanto 12 dias, não
era difícil fazer essa conta, era?
Eu, aceitando tudo, não
sei como, ainda continuei perguntando algumas coisas do tratamento,
que ela respondeu secamente e com aquela ondulação
de voz que tenta mostrar que eu estou atrapalhando e que eu
sou uma imbecil. Ainda perguntei, depois do Olivier ter me soprado:
- Mas só
pra saber, existem pessoas que tem isso cronicamente? Porque
a cada vez que eu vou ao médico, uma vez por ano, eu...
- Madame, ocupe-se da senhora,
não dos outros, aha (risada de ironia), ja é bastante
coisa pra se fazer, não?
- Eu sei, mas é que...
como eu tenho isso sempre... enfim, como vou saber se estou
curada, já que das outras vezes eu sempre me tratava
com o mesmo remédio e a cada vez eu recebia o mesmo diagnóstico
de novo?
- Então a senhora volte
aqui pra controlar depois de uns 8 a 10 dias, ehhh (exasperada),
uns 8 a 10 dias, tá bom assim? passar bem.
E desligou.
E É PRA ESSA FILHA
DA PUTA QUE EU PAGUEI 200 REAIS PRA UMA CONSULTA!
Não
tentem explicar isso dizendo que ela é uma escrota e
que é só trocar de médico. Eu já
consultei quase 10 médicos na Franc'va, de todos os ramos
da Medicina (3 generalistas, 2 ginecologistas, 3 endocrinologistas,
1 oftalmo), e nunca nenhum foi gentil comigo, escutou minhas
dúvidas antes do tratamento, me tratou com HUMANIDADE.
Nunca nenhum médico aqui quis saber do meu histórico,
do que eu achava que tinha, de nada. Também não
tentem explicar dizendo que é porque eu sou imigrante,
3° mundo e eles racistas ou algo assim, porque eu sinto
que não é isso. É o francês, é
o parisiense que é DOENTE, e isso me dá muita
raiva, muita vontade de chorar, porque eles tem TUDO, tem um
sistema de transportes que funciona, escola de qualidade de
graça, policia nas ruas, ajuda-desemprego, e eu tenho
vontade de gritar na rua, de sacudi-los pelos bracos e dizer
VOCÊS NÃO TEM DIREITO DE SEREM TÃO FILHOS
DA PUTA, vejam meu país, onde tanta gente é pobre
mas é DIREITA, tem BOM CORACAO!
O Olivier
fica tentando me ajudar e diz "caga pra eles, seja escrota também
com todos" mas o que eu explico pra ele é que eu não
consigo conceber um país onde, pra interagir com os outros,
eu terei que retroceder nos meus valores! Se sempre fui ensinada
a ser boa com os outros, a não encher o saco, não
atrapalhar, a ser educada, agora vou ter que ser filha da puta???
Tenho pensado
se essa minha obsessão em comprar cremes pro rosto (uso
5 diferentes atualmente, todos carissimos, e não consigo
sair na rua sem três dos cremes pelo menos) não
seria psicologicamente uma forma de me proteger, de criar uma
barreira entre mim e os franceses que tanto me desestabilizam
e me assustam, com essa agressão gratuita. Não
é brincadeira.
Então,
Paris romântica é a puta que pariu.
Flavia,
26 anos, deseja a todos uma boa Pascoa e avisa que ja achou
um médico mais simpático desde a data em que esse
texto foi escrito (mas veremos a 2a consulta...). Contato: flaballve@imagelink.com.br
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Uma
partida de futebol
A
vida pouco ordinária de Dona Linhares
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