A
MADAME AQUI
A
vida pouco ordinaria de Dona Linhares
por
Flávia Ballve Boudou
Este titulo
esquisitão ai nada mais é do que o filme "Eu,
Tu, Eles" (LA VIE PEU ORDINAIRE DE DOÑA LINHARES), que
estreou aqui na França no fim do ano; em Paris, são
12 salas, todas com cópias em versão original
legendada (parece besteira, mas poucos são os filmes
na França que não são dublados). O melhor
é que o filme não está passando apenas
em cinemas obscuros: está em algumas salas do Quartier
Latin (bairro dos estudantes) mas também no UGC - um
desses complexos de cinema tipo o Cinemark.
Bom, então
ontem fui assistir ao filme com meu marido, que, como vocês
já sabem, é francês, e do Brasil só
conhece :
1) o muito
que já leu ;
2) o Rio de Janeiro, durante
3 viagens
3) as maluquices da sua cara-metade.
Já
tinhamos passado a noite de sábado ouvindo a trilha sonora
do filme, por acaso, numa festa lá em casa, para comemorar
o Dia de Reis (que aqui na França é uma super
tradição, com altos rituaizinhos divertidos, qualquer
dia eu conto). No meio da festa, coloquei o CD do Gilberto Gil
com a trilha sonora e o forro comeu solto; a francesada arrastou
o pé, feliz da vida, e foi uma amiga francesa, jornalista
que já morou ai no Rio por três anos, que me disse
que o filme já tinha estreado.
Mas chega
de fatos; o que senti vendo Eu, Tu, Eles não pode
ser menor do que todo esse prólogo circunstancial. O
filme é LINDISSIMO, realizado com uma sensibilidade digna
de "Cinema Paradiso" e afins… Como o cinema brasileiro caminhou,
né? um filme com uma história dessas seria um
prato cheio para altas sacanagens - pô, uma mulher com
três maridos podia ser "a insaciavel", "a piranha", e
no final das contas saiu um filme delicadissimo, mostrando a
cultura brasileira de um jeito tão singelo, a simplicidade,
a crença em que tudo vai dar certo mesmo que se esteja
na maior lama.
Olivier também gostou
do filme. Adorou ver como eles moravam (meu antropólogo
de plantão) - alias isso estava super bem feito, aqueles
chinelões deles, as roupas, em NADA parecia coisa da
Globo, né? parecia realmente que estavamos visitando
a casinha deles. Ele só achou o filme meio lento, mas
foi interessante que depois, conversando sobre o filme, eu fui
mostrando para ele vários aspectos que pra mim estavam
clarissimos no filme mas que ele não tinha visto espontaneamente
justamente porque lhe falta uma compreensão da alma brasileira.
Por exemplo, entender que a aceitação dos personagens
em relação a tudo o que acontece está relacionada
a esse "fatalismo" que nos temos (no sentido de "acreditar no
destino", que Deus resolve tudo - essa nossa coisa de "até
amanhã, se Deus quiser!"); ou seja, a alma brasileira
é simples, aceita as coisas que acontecem, não
fica enchendo o saco próprio nem o dos outros com altas
masturbações filosóficas, vai e faz as
coisas e pronto. Ih, tô me complicando. O que eu quero
dizer é que não havia no filme nada pentelho do
tipo "ela teve altas dúvidas existenciais pensando se
ficava com um marido ou outro", não, as coisas eram simples,
"divinas", aconteciam; e o inicio do filme ja dá o tom,
com aquele "a menstruação não desce" grave
do Gilberto Gil e que poderia prenunciar uma tragédia,
"mais um filho nesse sertão", mas que nós sabemos
que é "pois é, Deus quis assim, mais um filho
nesse sertão".
Além
disso, que presente ver o Stênio Garcia tão puro,
parecia um bichinho sorrindo, e o Lima Duarte com uma interpretação
de cair o queixo de tão sensivel, contido, preguiçoso,
parecendo ser o último a entender mas na verdade querendo
apenas restaurar uma certa dignidade, fora a Regina Casé
que deu um banho, a critica francesa está elogiando ela
a beça (e o filme como um todo também), magnanima,
MULHER com todas as letras, sem querer fazer joguinho com os
maridos, ciúme de um no outro, não; ela é
natural, a gente aceita naturalmente o fato de ela ter três
maridos.
Comparem o Eu, Tu, Eles
com o Jules e Jim; os dois nos deixam no final um sentimento
de aceitação, de compreender as motivações
mais profundas do triângulo (no caso, "quadrado") amoroso,
sem julgar. Achei que os franceses não iriam entender
varias graças do filme, mas as risadas vieram soltas
nos momentos certos. E olha que traduzir "peguei barriga...
vou ganhar menino" pelo equivalente em françes a "estou
gravida, terei um filho" já mata mais da metade da poesia
que nós vemos. E puxa, o Eu, Tu, Eles tem toda uma doçura
naquela seca, a gente bebe aquela poeira feliz, de olhinhos
fechados e sorrindo como o Stênio Garcia na cena em que
ele "captura" as roupas lavadas no açude.
O filme me
fez ter saudade do meu Brasil - esse Brasil que, estando ai,
eu nunca conheci de perto, mas que aqui eu quero fazer viver,
colocando uma favelinha feita de sucata na estante (que um artesão
da Rocinha fez todo orgulhoso porque "essa vai pra longe, vai
pra França"), berimbau na parede, Cristo Redentor kitsch
no quarto… Fico querendo mostrar pros franceses que o Brasil
é todo complexidade, que ele "não é para
principiantes", mas que ao mesmo tempo nós somos simples,
solidários, pé no chão, e que as revoluções
que fazemos são de paz, e em nós mesmos.
PS: sabe o
que mais doi, em morar longe ? não poder dizer "bora
lá mais eu" e ter que dizer "você viria comigo?".
E, puxa, isso faz toda a diferença.
Flávia
Ballvé-B., quase 27 anos, não pode beber guaraná
quando da vontade porque mora em Paris ("mas em compensação
aqui os cremes anti-rugas são mais baratos").
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