A
MADAME AQUI
LA
POLITIQUE
por
Flávia Ballve Boudou
Eu até
pensei em escrever sobre um outro assunto que está me
comendo os miolos devagarinho, tal Icaro (não foi esse
o castigo ? ou estou confundindo as personagens ?), mas aproveitarei
que hoje é dia de eleições aqui na França
pra fazer de conta que sou inteligente. O lance existencial
fica pra próxima.
Hoje votaremos
para o segundo turno das eleições presidenciais
aqui na França. No primeiro turno, dia 21 de abril, fui
com o Olivier votar. Tudo muito parecido com nosso sistema antigo
de votação, com cabines feitas com cortininhas
e urna para depositar o voto. Não há uma cédula,
e sim várias - na verdade, entrando na zona eleitoral
você encontra vários papeizinhos, um para cada
candidato, e recebe também um mini envelope. E proibido
pegar só o papel do seu candidato – isso seria divulgar
publicamente o seu voto, o que é crime ( ?) – e então
todo mundo disfarça, pega vários papéis
e faz mistério dentro da cabine. Hoje, será preciso
pegar os dois papéis disponiveis: Chirac e Le Pen.
Já
no dia 22 de abril as estimativas de contagem de votos estavam
praticamente fechadas, e foi a maior surpresa da parôquia,
discutida em todos os jornais do planeta: Jacques Chirac (atual
presidente e candidato de direita) disputará, hoje, a
presidência com Jean-Marie Le Pen, candidato de extrema-direita.
E a segunda vez que a esquerda não vai para o segundo
turno (a outra foi em 1969, com candidatos de direita e de *centro*,
não de extrema-direita!). Alias, é a primeira
vez que alguém de extrema-direita vai para o segundo
turno na França.
Está
sendo muito interessante estar na França agora. Estou
realmente vendo a História se fazer, diante dos meus
olhos. É assim como estar vendo o impeachment do Collor,
mas ao contrário, porque é uma sensação
negativa, de desesperança.
A França
é um país que, tradicionalmente, manifestou ideias
"esquerdistas", socialistas, democráticas. É considerada
por todos os outros países como a pátria da livre
expressão, das revoluções sociais, dos
debates… Embora não seja exatamente conhecida como o
país onde mais se aceitam imigrantes, devo dizer, no
papel de uma, que há bastante abertura para nós
que viemos de outros países - tenho uma "carte de résident"
que é valida por 10 anos e que me dá absolutamente
todos os direitos que um francês tem, à exceção
do voto. Eu nem era casada ainda e já tinha direito a
participar da "securité sociale" pelo número do
Olivier, ou seja, direito a ir em qualquer médico que
eu quiser sem pagar nada e ser reembolsada dos remédios
que eu comprar.
E é
por isso que é tão chocante, para os franceses,
para mim, para o mundo, que justamente na França haja
uma recrudescência (existe mesmo essa palavra? só
porque estou falando de política, resolvi falar difícil)
do xenofobismo. Mesmo que o Le Pen não ganhe, e não
deve ganhar, o fato de ele ir para o segundo turno mostra uma
tendência da população. Junto a outro candidato
de extrema-direita, Megret (seu antigo aliado), somam um pouco
mais de 20% dos votos. É muita gente a acreditar que
os imigrantes devem voltar para casa, que deve-se deixar a França
somente para os franceses, que o Holocausto foi apenas "um detalhe"
(como Le Pen efetivamente declarou, há alguns anos).
Em termos
práticos, as consequências podem ser desastrosas.
Pra começar, o pessoal do Haider, lá na Austria,
está morrendo de rir: "isso é um tapa na cara
da França e de todos os que defenderam sanções
contra a Austria". A França perdeu a legitimidade para
defender os direitos dos outros, para defender a imigração
– como poderia se, em seu próprio seio, há tantos
de seus filhos (ai que brega) que querem expulsar os.. .os…
os irmãos, vá lá, pra continuar o melodrama.
Outra coisa:
com a extrema-direita chegando ao segundo turno, os possiveis
simpatizantes desta ideologia não ficarão mais
"com vergonha" de se mostrar; haverá um certo "direito"
legitimado deles em dizer "ah, o Le Pen não é
tão absurdo assim", ou mesmo de defender abertamente
suas idéias.
E o que isso
significa pra mim, por exemplo? Significa que um recrutador
não ficará mais necessariamente "cheio de dedos"
em privilegiar um francês para o mesmo cargo, pois estará
claro na cabeça dele que é essa a tendência
agora. Convençeremo-nos uns aos outros que os imigrantes
estão roubando os empregos dos franceses. E eu, sou considerada
o quê? sou brasileira terceiro-mundo, casada com um francês,
mas "branquinha"; só não tenho ainda meus papeis,
não dei entrada ainda no pedido de nacionalidade. Adianta,
agora? Terei alguma chance?
Minha amiga
marroquina daqui do trabalho estava indignada essas últimas
semanas; ela é francesa, mas os pais dela nunca pediram
a nacionalidade, apesar de estarem no país há
30 anos e de terem criado todos os filhos aqui, sob as leis
francesas (e não vamos esquecer quem seria enviado para
uma linha de frente, em caso de guerra…). Justamente nunca pediram
a nacionalidade porque se sentem franceses, porque têm
os mesmos direitos. E depois do primeiro turno, os filhos brincaram
com eles: "pai, mãe, podem fazer as malas, a gente fica
porque é francês, mas vocês vão ser
expulsos!". E se for verdade?
Um outro amigo
no trabalho é de direita, mas não da extrema.
Ele acha que o problema da violência é por causa
da quantidade de imigrantes que há na França;
que como eles não são "educados direito", acabam
fazendo bobagem, cometendo crimes. Nem vou entrar na discussão
"de quem é a responsabilidade de educar os filhos dos
imigrantes", porque envolve a integração desses
povos aqui no país, as oportunidades de emprego para
os imigrantes e seus filhos, a forma com que as velhinhas francesas
olham para eles nos ônibus, enfim, conhecemos isso tudo
ai no Brasil em relação a nossos favelados. O
que é triste nesse tipo de raciocinio dele é que
esses imigrantes "não-educados" (ai, o etnocentrismo!)
são em maioria da Algeria (Argelia?), país que
a França colonizou e onde fez o que bem quis, incluindo
"convidar" os seus habitantes a virem para a França,
reconstruir o país. E eles vieram, e trabalharam duro,
e reconstruiram a França, e lhe deram cantores, jogadores
de futebol (Zidane...), lideres sociais, operários, enfim…
continuamente dão duro para que a França seja
um grande país, rico, primeiro mundo e o cacete. E agora
que já terminaram o serviço (limparam bem atrás
do armario? deixaram o jantar?), podem voltar lá pra
suas casas… anda, chispa, sai daqui! Muito triste.
Saindo da
perspectiva social, um outro aspecto que me impressionou foi
o repúdio de todos os franceses depois dessa vitória
da extrema-direita. Claro que um candidato que perdeu, ou um
de seus aliados, vai dizer que é uma pena ele não
estar mais na corrida presidencial e o fulano outro estar. Mas
o que eu vi ontem na TV foi um repúdio total ao candidato,
como se fosse o próprio capeta três-oio: "que dia
triste para a História francesa", um candidato dizia,
"vou sair da vida politica", Jospin declarou (e, a meu ver,
não porque foi derrotado, mas por não admitir
mais trabalhar para um pais em que 20% da população
aprova a extrema-direita), "unamo-nos todos contra Le Pen",
disseram partidos de esquerda, comunistas, trotskistas, todos
se unindo a Chirac; "tenho vergonha de ser francês", disseram
estudantes, velhinhos, executivos e outros, que se reuniram
ontem espontaneamente em uma grande praça de Paris -
na Bastilha… (que interessante). Todos os jornais hoje estampam
mensagens de luto, não há nenhuma voz que se levante
para defender Le Pen (a exceção, é claro,
de outros extrema-direitistas).
Até
mesmo empresas, como a Fnac, publicam e distribuem panfletos
alertando para os « perigos » de se votar em Le
Pen. Nunca vi uma tal diabolização de um candidato,
de uma pessoa pública ; é um pouco como se aquela
frase iluminista (Rousseau ? Voltaire ? Ajudem-me, pessoas cultas
!) « não concordo com uma só palavra do
que dizes, mas defenderei até a morte o direito que tens
de dizê-la » tivesse se transformado em vapor, pelo
medo de uma nova queda da Europa no radicalismo da extrema-direita.
E como foi
que o Le Pen chegou lá? Ninguém viu nada. As primeiras
teorias dizem que é porque a primeira preocupação
dos franceses atualmente é o crescimento da violência
- e numa lógica doente, violência = imigrantes…
Mesmo Jospin falava sobre a violência em sua campanha,
mas acho que ele não imaginava que as pessoas fariam
essa equação errada. E que lição
para os institutos de pesquisa, que tranquilamente "took for
granted" que mais uma vez seria esquerda X direita (Jospin X
Chirac) no segundo turno. Acho que eles nem se preocuparam em
realmente fazer uma pesquisa "séria" e não previram
uma tal reviravolta. Pouco antes das eleições,
Le Pen não tinha nem mesmo as assinaturas necessarias
para apresentar sua candidatura, e hoje esta ai, no segundo
turno. É como se, no segundo turno, tivessemos Serra
X Eneas - mas um Eneas malvado, racista, querendo expulsar todos
os árabes, chineses, italianos, alemães, portugueses,
espanhois e tantos outros que compõem o Brasil. Surpresa,
indignação, e principalmente uma enorme questão
quanto ao futuro.
Pela primeira
vez, não estou pensando, em relação a França,
"eles que são brancos que se entendam". Porque mesmo
imigrante estou me sentindo francesa agora, unida contra um
cara que acha que eu e outros como eu não contribuimos
em nada para o país. E porque brancos, amarelos, negros
e azuis somos todos, e "se entender" é o menor dos nossos
deveres.
Flávia
Ballvé-Boudou é isso aí : Flávia
é um nome italiano, Ballvé é catalão,
Boudou é francês, e ela é brasileira da
silva. E contra TODO radicalismo. Já dizia Buda : a verdade
está no caminho do meio… flavia@ballveboudou.com
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#2
- A vida pouco ordinária de Dona Linhares
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- O desafio nosso de cada dia
#4
- As pedrinhas são as notas, a melodia o caminho
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