Um apanhado de parágrafos 
por Flávia Ballve B.

Má: não é um texto, não tem coerência, é um apanhado de parágrafos, você pode cortá-lo como quiser, aproveitar as partes que quiser, juntar parte poética com parte poética, filme com filme, ou deixar tudo assim, mas aí acho que ninguém vai ter saco de ler, enfim, leia, vê se vale a pena fazer nosso corte e costura e me diz como a gente corta esse frango pro almoço, tá? Querendo, vai até com esse parágrafo de introdução (a saladinha antes do frango). E ei, eu posso fazer uma farofa! (qualquer dia eu tenho que te contar como ando evoluindo na cozinha...)

beijos enormes pro meu editor preferido 

flá


Tô numa fase fotos. Eu sempre fui bastante visual (apesar de não gostar tanto do que vejo no espelho, por exemplo). Talvez o Polaroid tenha me acordado um pouquinho mais, e agora to vendo poesia, poesia, poesia, por tudo onde olho. Atenção: por tudo onde olho é uma frase feia mas gostosa de dizer. Minha vó me mandou uma cartinha com dois recortes de jornal, um
bilhetinho e uma foto. Aliás, parênteses; meu avô que fazia isso, sempre, e agora que ele morreu parece que minha vó está ressuscitando ele desse jeito.

Eu fico incrível com as pessoas. Enfim, a minha vó mandou uma foto banalíssima: meus dois cachorros brincando na piscina (como todo bom labrador que leva a sua cachorrice e sua labradorzice pras águas da vida), um pedaço de grama, um pedaço de varanda, pedaço, pedaço. É uma das fotos mais bacanas que eu tenho: a Ayla fazendo espuma no cantinho da piscina,
brincadeira nova, e o Spike macho bobão ("bichinho bobo" elevado a grandíssima potência) olhando sem entender, Freud peludo. 

Os cachorros quase não saem na foto, de tão mal tirada - aliás parece que meu avo também esta ressuscitado nessa desastrice da vó em tirar uma foto correta (correta? que babaquice). A foto me traz sensações tão boas, entrando eu sinto o cheiro da grama, o sol que me esquece nesse frio de cão de Paris, a varanda de pedra onde eu vinha pra sentir frio, molhada, esperando as gotinhas me abandonarem pra poder deitar na rede; tudo está lá na foto, eu recebi e opa moldura, opa parede, e o Olivier do lado 'parede não, a foto é feia, que foto esquisita'... mas que cacete, eu não sou caçadora de beleza, eu sou caçadora de poesia!!!!! Poso minhas armadilhas de dente, aquelas de pegar urso em desenho animado, e vou pra rua tentar pegar uma poesiazinha, fico atrás de uma parede descascada, esperando ela passar, e clapoft ser pega nos dentes (que não machucam porque é desenho animado e também porque poesia, salvo raras e unicórnicas exceções, não tem corpo). 


*Uf: to no trabalho e o telefone tocou. Pra uma menina, é foda ser profissional.* 


É porque eu tô há tanto tempo querendo falar de uns filmes e uns livros que li e vi (que coisa mais básica fazer essa confusão forcada entre ver um livro e ler um filme, mas vou deixar assim mesmo. Eu tenho que aprender a rir de mim, eu sou ridícula como todo mundo). 

O hugo já falou do Naufrago; eu queria só dizer, sem lembrar do que ele disse, que eu fiquei decepcionada a beca com o filme. Eu queria tanto que fosse a história do Robinson Crusoe Fedex o tempo todo; a solidão do RC sempre me fascinou demais, as maneiras que ele encontrou no livro pra se dar um pouco de conforto, um pouco de alento, não perder totalmente a sua humanidade. Eu sempre gostei dessa história de uma forma dúbia, um pouco como você gosta de um amigo em quem não confia totalmente; o fato do Robinson Crusoe no livro ter tentado contar os dias, ou refazer uma vida próxima a que ele tinha antes, ou mesmo se achar um amigo, me parecia uma traição a ele mesmo, uma revolução feita pela metade. Sempre fiquei desapontada por ele não ter virado bicho; eu, numa ilha deserta, teria feito a ruptura por completo, teria agarrado essa oportunidade de ser realmente livre, a única pessoa livre do mundo, e num Kaspar Hauser às avessas teria perdido toda a minha humanidade. E, ao mesmo tempo que ficava decepcionada por Robinson não compartilhar da minha opinião, eu me fascinava com esse pequenino ser humano no tubo de ensaio, que mesmo semi-bicho continuava a reconstruir o que ele conhecia, como se apenas o conhecido fosse "vida". 

O que eu mais gosto quando viajo sozinha é justamente de me desconectar; num país estranho, totalmente sozinha, ninguém tem a menor idéia de quem eu sou, se eu amei alguém, se eu matei alguém, e a cada minuto eu escolho uma nova personagem e vou me descobrindo mais um pouco. E o Naufrago do filme (eu admiro esse povo que escreve aqui, que sabe sempre os nomes das personagens todas) até que me saiu um bom Robinson Crusoe, virando bicho em algumas cenas solitárias, burocrata em outras (o que era divertido também de observar); mas quando ele foi resgatado, a exceção de uma certa melancolia no fim da festa da casa dele, continou sendo exatamente a mesma pessoa de antes. Exatamente a mesma! Puxa, que decepção. Sai do filme sem gostar, sem gozar, desencantada até dizer chega... 


Diferente do filme "A vida sonhada dos anjos". É um filme francês, não sei se passou aí no Brasil ou se dá pra achar em vídeo. Tem uns 2 ou 3 anos que saiu aqui. No início eu fiquei de mau humor: era a história de uma menina (17 anos? 20?) que não tem emprego, não tem estudo, que vive de mochila de cidade em cidade, dormindo uns dias na casa de um, de outro, enfim, toda a loserzice" (na minha cega opinião) que me amedronta e intriga. (Em francês existe uma palavra que é muito melhor que "loser": "raté". Rater é algo como perder, estragar, sem volta. Um loser sempre pode se transformar em
"normal"; mas se você faz um bolo e o bolo queima, ele esta "raté", e nada do que você faça vai corrigir isso. Ser "raté" é cruel demais, é inelutável, é até o fim). Enfim, essa menina arruma um emprego besta como costureira numa fábrica e faz amizade (com esforço) com a única outra menina da mesma idade, uma garota fechada, desconfiada, pessimista, de alma escura. As historinhas do filme a partir daí são apenas pretexto para mostrar as duas maneiras de ver a vida. A primeira, que não tinha nada, é capaz de dar tudo; ela sorri mesmo quando fala com estranhos (atitude ainda mais "absurda" quando a gente lembra que ela é francesa e aqui simpatia é artigo de luxo), ela está sempre alegre, vendo o lado positivo, um Cristo feliz que salva os outros; daquelas pra quem o dia está ganho só porque encontrou um amigo na rua. A outra, que parecia ter tudo (um apartamento, uma família, um namorado, e era loura e lindinha) acaba se destruindo sozinha, remexendo o
seu baú de magoas, decepções, desesperanças que na verdade só se tornaram importantes porque ela quis. Xi, to me perdendo aqui nesse parágrafo. E porque eu fico com vontade de contar um pouco mais do filme, mas sem estragar a sensação que vocês podem ter. Eu fiquei muito "mexida" com o filme; eu tenho esses dois lados, o lado criança feliz da primeira menina, e o lado depressivo da segunda, e olha, é muito difícil conciliar os dois. O filme mostrou não um "eu contra eu", mas um "olha como eu posso ajudar eu". Muito instrutivo, muito esclarecedor, ainda por cima me ensinou mais uma vez
que as aparências não são nada e que viver vagabundamente (distraído, poeta, louco, na sua) não quer dizer ser um perdido. E deixou no final uma saudade enorme da primeira menina, como se eu tivesse rencontrado uma amiga de quem há muito eu queria re-escutar o riso. 


Outro filme que adorei recentemente: Billy Elliot. Que menino! Que pai! Poucas vezes vi interpretações tão gostosas de se ver. Parece que o pai atuou também em "Meu nome é Joe", que eu não vi, pois é, devia ter visto (assim como também não vi Tigre e Dragão no cinema). O melhor do filme é que ele é uma historia tipo "quando a gente tem um sonho e batalha ele pode acontecer", mas não do tipo sofrido, onde as boas coisas só acontecem no final; o filme deixa a gente feliz o tempo todo, a gente se transforma no menino, dança com ele, desafia tudo calçando os mesmos sapatos. O filme é alegria pura, mesmo nas horas "tristes", e as cenas são muito emocionantes, como quando a família toda esta na cozinha esperando que o filho abra a carta de aceitação ou rejeição do Royal Ballet. O irmão e o pai, operários, grevistas, duros, sem saber agir de outra forma que não seja escondendo a vontade de que o filho fosse bailarino; a avo, quieta, sabendo que o lugar
dela sempre foi ali quietinha, trastezinho amado. E a professora então? E o amigo bichinha do bailarino? (achei que "homossexual" pra um garoto de 11 anos era uma palavra grande demais, então preferi bichinha, com todo o carinho e respeito devidos). Grandes interpretações, grandes personagens de pessoas pequenas e comuns, grandes almas e grandes sentimentos, grandes compressões do mundo e dos corações, o filme todo da uma vontade enorme de dançar, de ser inglês numa ruazinha daquelas onde haverá sempre uma menina loura grudada num muro e que conhece a vida de todos (reparem na menina). 


Bom, e finalmente fiz minha carta de cinema ilimitado. Aqui na Franca há dois grandes distribuidores: UGC e Gaumont. O primeiro a lançar sua carta foi o UGC: 98 francos por mês (uns 35 reais), e você assiste quantos filmes quiser, no horário que quiser, quantas vezes quiser etc etc. Sabendo que um ingresso de cinema custa 57 francos (ou 41 se você for estudante), com 2 cinemas por mês você já rentabiliza a carta. La fomos eu e Olivier escolher nossa carta; pequenos intelectuais pobres que somos, não da pra ficar gastando em muitos lazeres ou prazeres. Acabamos escolhendo a carta Gaumont, que inclui também duas outras redes de cinema: Pathé (mesmo estilo do Gaumont) e MK2, que é mais cultzinha e passa os filmes americanos BONS em versão original. Aqui, as grandes redes de cinema - você sabe, os multiplex, os Cinemarks e afins - passam só filmes americanões, de "Entrando numa fria" àqueles com bastante correria, armas etc. Ate ai tudo ok, é só escolher o filme; Limite Vertical não da, mas Hannibal vai bem, né? O problema mesmo é que os filmes em multiplex são dublados - em 98% das vezes. E eu não acho que a Clarice Starling pode falar francês, oras. E ai não ha muita escapatória alem do MK2. Existem também cinemas "d'art et essai" - arte e tentativas, numa tradução que revela o simpático da idéia. São os filmes independentes, cult, diferentes, alternativos. E ai você pode ver todos os filmes em versão original, não dublados. Só que as vezes são filmes independentes demais - o ultimo tibetano, uma obra-prima croata... bolas, onde fica o MK2 mais perto pra eu ver Traffic no original? 


E aproveitando então o primeiro domingo com cinema ilimitado, fomos ver dois filmes: Stalingrad e Traffic.  O Stalingrad (será que ai no Brasil ele vai passar com esse nome? acho que o titulo em inglês é "At the enemies' gates", é com Jude Law, Joseph Fiennes e Ed Harris) me fez voltar a pensar uma teoria que estava começando ha pouco: a dos meio-filmes. São filmes onde apenas uma metade é interessante; e é preciso que seja a primeira metade, porque senão eles poderiam sempre usar a desculpa do "ah, o inicio é chocho só pra poder aumentar a tensão no final". Exemplos de meios-filmes? Dos
recentes, O Naufrago. Pense só: se o filme acabasse ali pela hora que ele começa a construir a jangada, não teria sido um filmaço? A gente teria sido poupado da ridícula cena da baleia e de todo o final patetiquissimo. Outro filme que entusiasma à beça no inicio e depois fica chatinho é Em busca do soldado Ryan. E Stalingrad vai no mesmo caminho: um inicio que faz você
ficar de queixo caído, e não é força de expressão. Cenas de guerra tão humanas, tão tocantes, tão intensas, que te dão vontade de abraçar o desconhecido ao lado e chorando chama-lo de irmão (ok, parece musica do
Roberto Carlos, mas deu pra entender o clima épico?). 

Cada olhar de cada figurante é um exercício de direção; como é que o diretor conseguiu reunir tantos candidatos ao Oscar de melhor figurante perdido na multidão? A medida que o filme continua, ele vai ficando mais sem gracinha, ate um final boboca
e de ideologia americana (se ate desenho da Disney é uma propaganda do american way of life embrulhada pra presente e disfarçada em filme, não haveria de ser justamente um filme da Segunda Guerra, alemães X russos, que ia fugir do esquema, né?). Pois é, o filme cresce, e como uma criança encantadora, vira um pré-adolescente chatinho e previsível (que se acha muito rebelde e revolucionário). Ah, se os filmes e os filhos não continuassem... 


Traffic, no entanto, tem duas maravilhosas presenças: a Catherine Zeta-Jones, linda com 6 meses de gravidez, liberada da responsabilidade de ser a gostosa do filme; e o Benicio del Toro (gente, que o Olivier não me escute, mas o que é o Benicio del Toro????) que é o feio mais bonito do planeta. O filme é um espetáculo; ele segue a velha linha Magnolia ou Short
Cuts onde ha vários núcleos de personagens que se encontram, mas com muito mais porrada no estômago (só perde pro Felicidade) porque real. Falando a verdade aqui: eu não sei como alguém pode sair desse filme e enrolar um baseado. Não porque ele vai começar a achar que as drogas fazem mal ou algo assim, mas porque não ha como não se sentir responsável por essa merda toda. A quem interessar possa, é exatamente por isso que eu não continuei as experimentações maconhisticas da adolescência: eu não queria me sentir responsável por mais uma bala perdida, mais um velhinho assaltado no sinal, mais grana sendo usada não pras escolas mas pra corrupção, guerras contra o trafico e todos os etcs da historia. E o filme não tem intenção de catequizar ninguém (não achei, pelo menos), e mostra um retrato bem amplo, bem completo, de todos os aspectos, com frases que dão o que pensar - tipo um traficante que é pego e delata os chefões acima dele, e ai tem que ficar vivendo em esquema de proteção às testemunhas; tentando mata-lo, os chefões acabam matando um dos policiais; e ai o traficante diz pro outro policial da dupla, "pra que serviu vocês me prenderem? A droga vai continuar chegando aos consumidores, teu amigo tá morto, e eu to jurado de morte também. Ninguém ganhou". Droga é droga, só muda de endereço, é isso? E outro lance legal: os caras que combatem as drogas muitas vezes bebem seus uisquinhos, ou fumam... o que faz mal? o que deveria ser proibido? e pq não é? quais são os critérios? Enfim, parece que o filme reúne tudo que você já ouviu ou disse sobre as drogas, num grande catalogo de frases e modelos. E mesmo assim é legal. Meninas, nem que seja pra ver o Benicio del Toro... 


Também queria falar sobre dois livros, mas vai ficar pra próxima: A Praia, que eu finalmente li e achei um barato, muito mais legal que o filme (quando li, pensei: puxa, esse é o livro que eu queria ter escrito!), e Première ligne (Primeira linha), um livro francês muito legal: um editor que resolve fundar um "Escritores Anônimos" pra livrar as pessoas que escrevem do seu
vicio. Mas fica pra próxima. 

Falei de tanta coisa tão por alto. É porque eu não vou cair nessa de querer saber tudo. Que nada! Eu não sei nada, o que esta aqui são opinioezinhas, frasezinhas sem muito sentido ligadas umas as outras porque eu quis. Não é um texto, é um apanhado; falar de varias coisas é não falar de coisa nenhuma. Mas mesmo assim: 

você me publica como eu sou? Lembro do filme (não lembro o nome) onde a menina queria ser escrita no corpo pelos amantes. Eu quero ser lida, que meu corpo seja um grande livro, frases ressecadas, frases que poderiam emagrecer, frases descabeladas, frases com uma ou outra espinha desavisada, frases menstruadas, frases com calos, frases tesudas, frases com sorriso, frases de olhos cor de azeitona mesmo numa foto PB. 

Flávia Ballve B. mora na França e desde sempre destila sua prosa poética no S&Y.


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