Cinema
Mudo Moderno
por
hugo
Imagine
chegar em casa "vazado" de fome depois de um dia de cão, e ter que
se virar com um sanduíche improvisado. Agora imagine também,
que para a sua surpresa, a geladeira está cheia de coisas gostosas
e interessantes ... só que o pão é de ontem e está
duro e seco.
Bom, a (muito) grosso modo, esse problema
(o de ter um "recheio" interessante, mas uma introdução comum
e um final meia-boca) é a principal dificuldade que enfrenta O Náufrago,
a exemplo do que enfrentou o interessante e subestimado Missão:
Marte.
Tom Hanks
é Chuck Noland, funcionário da Federal Express (que
por conta disso, transforma o filme no mais longo comercial jamais feito,
apesar de os produtores do filme jurarem que não ganharam nada com
isso), escravo total da vida moderna e que sofre as conseqüências
do que isso representa, como falta de tempo para si mesmo e para a sua
noiva Kelly Frears (Helen Hunt) ... E, para completar, quando estão
para resolver isso, ele é surpreendentemente chamado para uma viagem
de emergência às vésperas do Natal.
E é aqui que acaba a introdução
e começamos a curtir o recheio gostosinho. A exemplo de Missão:
Marte, isso começa com um acidente (aqui, o de um avião;
em seqüência quase tão interessante quanto a da nave
espacial) em que é utilizado um recurso narrativo interessante,
o de não se usar trilha sonora (o que só volta a ocorrer
na parte final do filme) para acompanhar qualquer uma das cenas. Ou seja:
não há, para o diretor ou para o espectador, nenhum apoio
a facilitar a tarefa. Não há o acompanhamento musical que
avisa a hora de se emocionar ou de se empolgar. Isso, para alguns, deve
ser como assistir a um jogo no estádio, sem o Galvão Bueno
a dizer se ele está gostando ou não da partida. Imagine ter
que comer pipoca e pensar ao mesmo tempo. Horrível, eu sei.
E não é só: mais
horrível ainda pode ser acompanhar o resto do filme se você
não gosta de Tom Hanks, o único ator vivo a dar as caras
por um bom tempo (o que, à falta de trilha sonora, junta a falta
de diálogos - monólogos não contam, claro). Mas, justiça
seja feita, ele encara bem a tarefa de ter que segurar o filme sozinho,
o que lhe deve valer o Oscar de melhor ator. E há quem diga que
o personagem Wilson (espécie de Sexta-feira, para Chuck), deveria
valer ao menos uma indicação de melhor ator-coadjuvante para
o seu intérprete, o que é, evidentemente, um exagero.
E a partir daí (da chegada
de Chuch à ilha), o filme vira a história básica de
um náufrago tentando sobreviver em uma ilha deserta (que para piorar
a situação, não passa de um pedaço de rocha
no meio do nada), com todo o pacote "metafórico" que isso pode carregar.
Mas não se preocupe, pois tudo é muito bem explicadinho e
ninguém vai ter dificuldade em entender.
E se você está disposto(a)
a pensar um pouco sobre o tema proposto, e conseqüentemente, sobre
a sua vida, pode tirar algumas conclusões interessantes. Em última
análise, na verdade, a vida de Chuck não mudou (como talvez
não mudasse a minha ou a sua), pois mesmo na sua vida anterior ele
não tinha um contato humano verdadeiro com o resto do mundo. Tudo
o que lhe dava sentido à vida, na verdade, ele encontrou na ilha.
Continua a ter a sua noiva através
de uma foto, em uma relação, talvez, com mais calor humano
e sinceridade do que a anterior; continua a ter o seu trabalho, através
de algumas caixas de encomendas que foram dar à praia levadas pela
maré e que ele acaba utilizando para sobreviver (exceto por uma
delas, guardada por ele para ser entregue um dia; sendo isso que lhe dará,
talvez, mais do que tudo um motivo para sair dali) e ainda tinha um único
amigo (Wilson - sim, ele! -, uma bola de vôlei também trazida
pela maré), em uma relação de amizade mais verdadeira
até do que as experimentadas na sua vida anterior. E assim Chuck
leva a vida até que a maré lhe traz uma última surpresa.
Uma última surpresa para ele
e uma maior para nós: constatar que depois de tudo feito e com o
mais difícil realizado, o filme perde-se em um final bobinho ...
Mas tudo bem, pois isso não
chega a estragar o resultado e é necessário dar-se um crédito
a uma iniciativa como a desse filme, em tempos em que uma boa seqüência
de perseguição ou explosões espetaculares valem mais
do que um bom roteiro. Da mesma forma que deve-se fazer a ressalva de que
o filme poder ser realmente aborrecido, arrastado e longo para quem espera
só alguma diversão sem compromisso.
hugo
( hugolt@hotmail.com ) colabora
com este zine e aguarda otimista o que a maré pode lhe trazer enquanto
se diverte com vários "Wilsons" através do seu ICQ e ouve
o mesmo cd do Elvis que aparece no filme. |