Polaroid
por Flávia  Ballvé B.

- Esses aí são os quadros do David. Não é pintura não, é foto ! – disse ela, me apresentando as imagens emolduradas em madeira clara. 

Eu já sabia que era foto, ou xerox colorida de fotos, e senti  uma rápida irritação com a alegria dela. Apaixonada, cega, fácil, que seja ; mas daí a duvidar que eu tenha visto que eram fotos, ou antes nem duvidar, e já tomar como certo… Não quis brigar, afinal estava na casa dela :

- Isso, fotos… ele que fez as cópias pra você ? – perguntei, querendo entender o processo daquele caso unilateralmente amoroso – ele mostrou as fotos pra ela e ela, sem poder fazer cópias diretamente do negativo, tirou uma xerox colorida ? Ou ele mesmo já tinha tirado algumas xerox coloridas de suas fotos, cuidado de fotógrafo? Mas que droga de xerox é essa, imagens embaçadas… Ela explica antes que eu pergunte : 

- Ele tira fotos em Polaroid.
- Polaroid ? – interrompi, falando mais alto do que meu costume, não sei por quê. 
- É, Polaroid, e depois ele… 
- Depois ele tira uma xerox explodindo os pontos da imagem? 
- Isso ! – ela concordou, satisfeita na sua paixão por ele, porque eu tinha entendido que os pontos de imagem são explodidos de propósito. Explodidos – é assim que se diz em gráficas, eu aprendi no meu trabalho, ou alguém um dia disse isso e eu guardei. 

Olhei de novo a moldura clara e profunda, levando o olhar até a imagem, e vi que realmente em volta da foto, colorida e no centro na moldura de madeira, havia a marca dos limites de uma foto Polaroid, menor em cima, mais larga embaixo, espécie de passe-partout acinzentado e disforme, acompanhado do resto da folha de papel da xerox. 

Com carinho, doçura, acariciei os contornos do que teria sido o quadradinho original daquela foto : 
- É verdade, é uma Polaroid… 

Jantamos. De vez em quando eu olhava as 3 fotos : pássaros em vôo (manchas marrons em um céu de nuvens), uma praia sem pessoa, um velho rabino frente a uma porta, com uma cadeira de plástico vermelho a seu lado. Só à noite, antes de dormir, entendi minha ternura face àquelas imagens embaçadas, de pontos explodidos da ampliação da foto. Meu avô – de quem tenho tanta saudade – ganhou uma Polaroid há poucos anos, e tirava fotos de tudo que ele achava belo ; temos em família vários registros de almoços, brincadeiras com cachorros, piscinas, pássaros num fio de telefone. Todas imagens não muito nítidas de nossos sorrisos, de um cachorro preto saindo pelo canto direito, em movimento, uma mancha com pernas, rabo e orelhas aloucadas. E ele tirava as fotos sem se cansar, com dedicação de mestre, de artista, e fazia mini-vernissages a cada foto que começava a aparecer : « Fofa ! », falava, sacudindo a foto para acelerar a imagem, « vem ver essa aqui, que beleza ! que cores ! olha aqui o malucão ! he he he » - uma risadinha feliz com ele mesmo, com a vida tranqüila ali, com suas fotos, com a graça de participarmos juntos de um momento banal e bom – desses que moldam nossa memória de família, esses simples nadas carinhosos que são o que de mais valioso temos. 

E nos reuníamos todos – « deixa eu ver ! passa aqui pra mim ! ih, essa eu ainda não vi… », secretamente achando foto nenhuma fica tão boa em Polaroid, « mas que coisa, não é que eu saí bem aqui nessa ? E olha aqui o Spike que engraçado, caindo na piscina… », e gostávamos das fotos sem nem saber porquê – talvez porque registravam algo muito maior do que a imagem que víamos ali. 

O que me enterneceu foi pensar que alguém, um fotógrago, um artista, persiga essa forma de fazer arte ; não é apenas capturar um momento, mas sim fazê-lo em especificamente em Polaroid, depois tirar xerox colorida e ampliá-la para os pontos ficarem blurred, esboçados, completando o processo de criação da obra de arte. E pensei que meu avô já fazia isso tudo, movido pelo orgulho ingênuo que tinha das suas fotinhos, querendo ampliar aquele quadradinho Polaroid e dignificá-lo com uma moldura na parede. 

Lembrei da foto do pôr-do-sol que a vó conservou na parede (talvez fosse um nascer-do-sol, mas para mim hoje tornou-se o sol se despedindo). Um canto de varanda, cores no céu, laranja, azul escuro; manchas, manchas; e levei na cara a porrada de ver essa foto embaçada como o fotógrafo a veria – linda, completa. Na mesma hora quis contar pro vô que, em Paris, um fotógrafo... «imagine, vô! um artista! Aí, hein, vô, vai fazer exposições no Louvre?! », e toda a família reunida, rindo contente desse novo chiste entre nós, e ele respondendo «tá vendo, fofa? não disse, não disse? iiih, que chique esse vô, hein! ». 

Que coisa : ver fotos e ter um instante de graça desses, tão íntimo, tão triste e doce, tão saudoso.

Flávia, 25 anos, que há tempos nao sabe o que é andar descalça na areia.