Eu sei que ninguém estava esperando este livro
por Flávia Dalcin Ballvé

Eu sei que ninguém estava esperando este livro. Não é um desses que se tornarão clássicos no mês mesmo de seu lançamento. Não irei ao programa do Jô nem serei charmosa como a Fernanda Young no Marília Gabriela. Esse é um daqueles livrinhos para se ler na poltrona, com sono, enquanto todo mundo faz qualquer coisa de útil num domingo depois do almoço – depois do almoço mas mesmo assiom as paredes da sala e esse calor gélido nos dão vontade de mastigar qualquer coisa. Qualquer amendoim seria mais interessante que esse livro. Mas não tem amendoim, você esqueceu de comprar, e entre dormir e ler, você está decidinco agora. 

Nessas páginas, nada de muito perturbador ou novo. Uma honestidadezinha ingênua, uma praça de cidade pequena sem a poesia ou a descoberta de achar-se no meio de cidade grande. Livro bife com arroz a R$6, nem caro nem barato, sem nada que desperte paixões ou ódios – justo. Mais um livro pra estante. 

E isso não me ofende nem me faz levantar a sombrancelha; minha ex-psicanalista já tinha me ensinado que não é possível todas as pessoas gostarem de mim (disse isso me interrompendo mais uma vez). Mais um livro pra estante, mais um nome nos cadernos de endereço ou nos registros do governo: 
E, no entanto, este livro faz pra mim toda a diferença que ele não faz pra você.

"Meus poemas são meus, e por isso os quero
Como ninguém mais".

Não estou perdida, não estou achada; a sucessão de didas e eventos (pouco ou nada) memoráveis me movimenta pra frente no calendário. Ontem, perdi meu pai; amanhã, terei um filho, e quem há de me explicar o que acontece entre  uma noite e outra? Em não estando perdida, nem achada, não tenho nenhuma grande inquietação; supostamente não devia me encontrar agora como que em meio às ondas, tentando me agarrar a uma dessas boas rochas que me repele, me rasga, me viola e me arremessa à próxima. Pois sei que, nem perdida nem encontrada, é porque estou parada; porque na caminhada que fazia dentro de mim, ouvi um barulho em meio às folhagens e imobilizei-me para que meus músculos não atrapalhassem meus ouvidos em seu trabalho de me salvar. Atrás das folhagens, eu sei o que há – o tigre que existe em mim e que eu nunca encontrei. Com todos os pensamentos em suspenso, ouvidos dentro da floresta que sou eu, espero o momento de saber quem sobreviverá – eu, o tigre ou uma metamorfose de nós dois? 

Chegou o momento de controlar os impulsos e pensar; o momento que aguardo desde os 13 anos, quando comecei a desenhar no papel isso que sou. Todas as alternativas se apresentam, e eu escolho ficar. Ficar ao lado dele, ficar longe de casa, procurar um emprego, crescer. Mas ficar não é morrer; secretamente freqüento as listas cult, secretamente sobrevivo meus sonhos. Afinal, há tempo tive a chance de matar o tigre bebê, mas escolhi o medo e o arrepio de vê-lo crescer pra poder enfrentá-lo adulto. 

Esse tigre que agora enfrentarei é minha única chance de salvação – assim como a morte, no tarot, é um renascimento e só. Fui eu que escolhi, entende? Depois do nevoeiro que enfrentei na caminhada, depois de ter decidido não continuar e aí ser salva pelo marido, depois de ter seguido falsos profetas que (não foi por mal) me levaram para areias movediças, eu chguei onde queria chegar: nessa clareira de onde saem mil rotas (inclusive a de volta), onde meu tigre querido me espera para me dilacerar com unhas e palavras. E é o que eu quero: renascer. Tirar da mochila o que pesou até agora, lavar as rouas no rio, refazer a bagagem pra próxima rota. Levo os porta-retratos? E esses valores que não sei ainda se quero usar? 

Tá – eu sei que esse simbolismo todo interessa a mim. E é por isso que avisei desde o início: não procure nenhum espirro de gênio aqui. Eu sei que tenho essa tendência quase adolescente de falar demais (é que tento tanto fugir da linguagem de revistas banais, de bobalizados em geral…). Sendo direta: passei por algumas coisas, retratinho 2X3 de uma pessoa de 25 anos hoje. E sempre tentei pensar, entender, escrever. Em momentos duros, não tive a coragem e calei-me; alimentei o tigre com porradas ou promessas. Esse tigre respirando quente em volta de dentro de mim é uma força qualquer que eu mesma criei; mas não basta saber ou admitir isso, é preciso integrá-lo ao que eu sou agora. Como no clichê do quebra-cabeças, onde se encaixa esse animal selvagem que é também eu? No objetivo de vida? Numa rebeldia posada? Numa vontade de fazer a fundo o que eu me propuser? Escrevendo, hoje, é o que eu tento aprender. Esse livro vai mudar a vida; a minha, eu disse, não a sua. Mas você decidiu me acompanhar, ah é, estamos juntos nessa canoinha furada.