A
França
Flávia
Dalcin Ballvé
Imagine
o que é estar num lugar onde você vai discutir
com quase todas as pessoas que encontrar pela rua, cada uma
falando mais alto que a outra. Onde volta e meia você
não pode ir onde quer porque tem uma greve de alguma
coisa barrando as estradas, as ruas. Onde os cachorros fazem
cocô por todas as calçadas e os donos nem pensam
em limpar; onde você espera numa fila horas e horas e
alguém passa à sua frente na maior cara de pau
e ainda briga com você se você resolver reclamar.
O inferno? Não, a França.
Não
me diga que eu estou sendo implicante ou chatinha, porque eu
realmente estou, mas não quero que você me diga.
A França tem isso tudo. Tem também um montão
de gente que acha que tomar banho é algo totalmente supérfluo,
e aqui você compra o presunto por fatia, e não
por quilo – duas fatiazinhas podem custar uns 5 reais.
Meu marido é francês. Às vezes eu sou estúpida
o bastante pra perguntar, “tô bonita?”. Ele me responde
com a maior sinceridade que não. Divórcio!!!!
E nem passa pela cabeça dele porque eu faço greve.
O
caso é que francês é um povo diferente do
brasileiro, é só isso. Como são, aliás,
todos os outros povos do mundo. E eu, metida em antropóloga
(mas tenho uma tese em antropologia de qualquer maneira, então
nem pensem em criticar agora), digo que a gente tem sempre tendência
a julgar o outro segundo os nossos próprios valores.
Em várias tribos antigas, a palavra que dava o nome à
tribo era a mesma que significava “Homem”. Forçosamente
isso quer dizer que “o outro” é “não-Homem”, nem
mesmo pertence à Humanidade, de tão diferente
que é.
Aaaah, mas agora nós somos tão civilizados e não
fazemos mais isso de julgar os outros, né? A gente só
acha os franceses meio grossos, mas é tudo. Tolinhos.
Desde criança, os franceses aprendem a defender seu ponto
de vista custe o que custar. É genial, uma nação
inteira discutindo! E debatem, debatem, na TV só tem
programa de debate. Há toda uma dramatização
que deve ser feita. Logo que cheguei aqui, eu tinha medo da
família do maridão se matar com a faca do queijo
após o jantar, de tão alto era o tom de voz de
cada um. Me encolhia na cadeira, só pra dali a 5 minutos
não entender nada quando eles estavam rindo juntos.
No
Brasil, a gente acha que dar uma opinião contrária
é falta de educação. E mais, entende tudo
como ofensa pessoal. No início, se alguém fazia
um comentário do tipo “no Brasil, vocês mataram
várias crianças em frente a uma Igreja uma vez,
não?” eu seguia um raciocínio mais ou menos assim:
“ele acha que nós matamos criancinhas o tempo todo, que
nós somos bárbaros sub-desenvolvidos, e eu sou
terceiro-mundo, eu sou um lixo, eu também não
valho nada” e por aí ia. Eu chorava, ficava pensando
como fazer pra mostrar que meu país é maravilhoso
também etc. Até que entendi: o meu raciocínio
fatalista após ouvir o comentário era típico
da minha cultura!!! O francês que tinha feito o comentário
não disse em hora nenhuma que a) a gente mata criancinhas
o tempo todo, ou b) que a gente só faz isso no Brasil,
nem que c) o Brasil não tem nada de bom. Ele só
disse um fato, que realmente aconteceu; toda a carga emocional
foi dada pela minha cultura.
Depois
disso tudo ficou bem mais fácil pra minha integração.
Agora eu procuro puxar briga em todos os lugares que vou: padaria,
repartição pública, banco, eu me divirto.
Discordo de todo mundo, dou minha opinião com toda a
parafernália necessária: gestos de levantar o
ombro, o típico “sopro” francês de desprezo, falar
ao mesmo tempo que o outro etc. Agora fui aceita!!! No final
de cada briga a gente se despede com calorosos “Au revoir” e
“merci”, não só pelo serviço prestado (comprar
o pão, frequentar aquele banco) mas principalmente por
termos tido a chance de exercitar nossa oratória. Um
pouco como o John Travolta naquele filme “Michael”, ele é
um anjo que está por aqui e grita o tempo todo “Fight!!!”
e parte pra porrada, não pra machucar, mas pra deixar
sua natureza fazer o que ela mais gosta.
E toda a parte dos cocôs de cachorro na rua, das greves,
da falta de banho, tudo isso é verdade. Ao mesmo tempo
eles têm um sistema social incrível, onde as pessoas
são respeitadas nas suas diferenças (discute-se,
mas respeita-se), um pouco porque ninguém se importa
muito com o que o outro faz. Eles têm uma cultura fenomenal,
as crianças aprendem filosofia na escola, desde a 5a
série, e aqui você anda na rua ou pára no
sinal de trânsito e nem passa pela cabeça olhar
em volta pra ver se vai ser assaltado. Os queijos, os vinhos,
os lagos onde você pode fazer piquenique. Claro que dá
saudades de guaraná Antarctica, mas sempre dá
pra achar um mercadinho de produtos exóticos e comprar
aipim, goiabada ou manga.
Aliás,
falando em comida: no Brasil a gente decide tudo sempre em cima
da hora, e aqui eles decidem com a maior antecedência.
Em abril eu tive que decidir se no final de agosto eu iria querer
acampar um fim de semana na praia. Mesmo pra ir jantar na casa
dos meus sogros, a gente tem que avisar de manhã, no
máximo. Por que, neurose de fazer planos a longo prazo?
Um pouco, mas também pra calcular quantas fatias de bife
comprar. Seis pessoas? Seis bifes, ora. Quando você chega
pra jantar já tem que decidir se no final vai querer
cafezinho ou não. No Brasil, mesmo em famílias
mais pobrinhas há sempre a noção de abundância;
se um vizinho chegar na hora do almoço, sacamos o “põe
mais água no feijão!” do bolso e tudo se resolve.
Aqui – país que passou por guerras – a comida é
pensada em porções. Uma torta, 7 pessoas, é
cortada em 7 fatias – como, ainda não entendi – cada
um ganha sua “ração” de torta e tem que comer,
e só aquela. Isso em todos os estágios da refeição,
com diferentes níveis de negociação: se
você quer comer mais da batata, tem que abrir mão
de uma parte da sua salada. Quando você recebe o prato
pra se servir, deve colocar o que quer comer (calculando a sua
porção); se botar a menos pensando em repetir
depois, vai dançar, porque as pessoas que se servirem
depois de você vão recalcular suas porções
de acordo com o que ainda tem na tigela. Imaginem quantas vezes
passei fome no início.
Mas
depois aprendi. O legal de morar em outro país é
isso: relativizar. A gente aprende (levando na cara) que nada
é absoluto. Algo que é considerado esquisito na
sua cultura seré normal em outra, e sempre vice-versa
– meu marido até hoje tem pesadelos com os abraços
e tapas nas costas que ele levou dos homens da minha família,
no nosso casamento. Nossos filhos já vão nascer
aprendendo a relativizar – não é a família
do papai que é grossa e nem a da mamãe que é
maluca, mas cada um que é diferente do outro.
Vamos
aprender as diferenças, achar interessante e respeitar,
aprender o que der, deixar pra lá o que for muito esquisito.
Imaginem: se todo mundo morasse fora do seu país em uma
época ou outra, ou se todos os casamentos fossem internacionais,
será que ainda haveria ódios entre povos? Ou ainda,
se todo mundo olhasse um pouquinho além do seu umbigo,
será que não veríamos outros deliciosos
e valiosos umbigos por aí?
Flavia
Ballve B, 25 anos, procurando emprego e comendo menos do que
o razoável.
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