Cinema: Sexo, desejo e desassossego se misturam em “Motel Destino”, de Karim Aïnouz

texto de Leandro Luz

Sexo, desejo e desassossego se misturam no novo filme de Karim Aïnouz, “Motel Destino” (2024), ovacionado na competição oficial do Festival de Cannes em maio deste ano e que agora chega ao circuito comercial brasileiro. A jornada do protagonista Heraldo, interpretado pelo novato Iago Xavier, começa e termina nas areias do litoral do Ceará, e ganha nuances de suspense e policial enquanto brinca com o noir e com o legado do erotismo no cinema brasileiro.

Heraldo quer ir embora. O roteiro de Wislan Esmeraldo, Karim Aïnouz e Mauricio Zacharias estabelece desde muito cedo o desejo central do personagem, que precisará enfrentar obstáculos muito duros antes que possa sequer cogitar realizá-lo. O primeiro deles é a morte do irmão, cujo incidente ele acaba sendo responsabilizado, o que o leva a procurar um abrigo que o aprisiona durante boa parte da trama. O Motel Destino que dá nome ao filme é, em si, o segundo obstáculo, uma vez que Heraldo passará a se ver preso nos corredores libidinosos do estabelecimento. Esse confinamento consegue ser o elemento mais atrativo da narrativa, porém revela algumas de suas limitações estruturais.

Falando em roteiro, o filme nasceu da parceria de Aïnouz com o Laboratório de Cinema (CENA 15) da Porto Iracema das Artes, escola de formação em artes da Secretaria de Cultura do Ceará, gerida em parceria com o Instituto Dragão do Mar, com sede em Fortaleza. O diretor é um dos criadores do laboratório e foi justamente esse ambiente que permitiu que o projeto fosse desenvolvido, a partir do convite feito ao roteirista Wislan Esmeraldo e, mais tarde, a Mauricio Zacharias (que já havia sido seu parceiro em “Madame Satã” e “O Céu de Suely”). É curioso notar que, imediatamente após se enveredar pela sua primeira grande produção internacional, “Firebrand” (2023), estrelada por atores de peso como Alicia Vikander e Jude Law, o diretor cearense Karim Aïnouz tenha resolvido voltar para casa e rodar, pela primeira vez desde 2006, um filme inteiro em seu estado. E dá para notar o quanto a paisagem, o sotaque e os corpos nordestinos são caros ao diretor, que enfatiza o trabalho com o elenco acima de qualquer coisa.

Mas voltemos ao filme. Ora governado pela lascividade emanada pelo local, ora angustiado pelas sombras que povoam as relações que ali se delineiam, nosso protagonista mergulha de cabeça no cotidiano ao mesmo tempo trivial e intimidador do motel e abraça a concupiscência da carne sem qualquer pudor. No Motel, Heraldo conhece o casal Dayana e Elias, proprietários que cuidam da rotina laboral praticamente sozinhos, à exceção de outro funcionário que aparece vez ou outra para cobrir a recepção (e que será responsável por uma ação desestabilizadora mais adiante no filme). Dayana é vivida com muito frescor por Nataly Rocha, que consegue, desde a sua primeira aparição, instaurar uma atmosfera de sensualidade e risco que, aliás, é reforçada ainda mais pela maneira como Fábio Assunção compõe o seu Elias, homem tosco, sempre se revezando entre gestos sedutores e grotescos. Boa parte do que funciona em “Motel Destino”, inclusive, tem a ver com o triângulo Heraldo, Dayana e Elias.

Há um senso de perigo que toma conta da narrativa desde a primeira vez que Heraldo põe os pés no Motel. A primeira cena com sexo que testemunhamos já é banhada pelo vermelho que também enxarcará muitas outras dali em diante. A direção de fotografia é assinada pela francesa Hélène Louvart, colaboradora de cineastas como a também francesa Mia Hansen-Løve, a italiana Alice Rohrwacher e os brasileiros Marco Dutra e Caetano Gotardo. Louvart já tinha trabalhado antes com Aïnouz em seus dois últimos longas de ficção, “Firebrand” e “A Vida Invisível” (2019), que também estrearam em Cannes. A fotógrafa é inteligente na medida em que compõe, desde os primeiros planos, ainda nos créditos iniciais, as paisagens e as pessoas banhadas por cores muito quentes. A transição entre o amarelo e o azul do litoral para o vermelho e o neon do motel caracteriza bem os dilemas das personagens. Louvart, de certo modo, assim como todo o filme, habita um campo fronteiriço entre a realidade e o devaneio, entre o gozo e o pesadelo.

É uma pena que “Motel Destino” não mergulhe totalmente no frisson proposto pela fotografia. Há um tom de alienação e psicose que muitas vezes é sugerido, sobretudo pelo excelente jogo proposto pelo design de som, mas jamais abraçado pela direção. Apesar de eventos inusitados surgirem de maneira intermitente na trama, o caos verdadeiro não irrompe, dando a impressão de que falta algo que consolide todo o conceito e que amarre as relações entre as personagens. Faltou a Aïnouz negar um pouco o realismo e abraçar de forma mais livre o experimental.

Quem se aproxima um pouco dessa liberdade é Fábio Assunção. O experiente ator tem completa noção de como trabalhar a sua persona de galã perigoso a seu favor e está muito bem no papel de um ex-policial bronco incorrigível. O seu Elias navega, como dito acima, por meio da sedução e da violência, e a junção das duas coisas acende a faísca mais desafiadora e instigante do filme. Quando interage com a esposa, Dayana, Elias é frio e grosseiro, mas quando está com Heraldo é charmoso e quase afável. Assunção expressa bem tudo isso com habilidade, sempre roubando as cenas em que aparece.

Justiça seja feita à Nataly Rocha, também muito habilidosa no ato de equilibrar emoções complexas. Já em sua primeira aparição, Dayana dá uma resposta atravessada e inesperada para Heraldo, que ameaça estrangulá-la. Mais para o fim da trama ela encarna a femme fatale e até faz o espectador duvidar de que lado está. A sua conexão com Heraldo se intensifica, mas acaba chegando em um beco sem saída que prejudica a resolução.

Outra colaboração que merece destaque é com a montadora Nelly Quettier, parceira de longa data de Leos Carax e Claire Denis, só para citar duas grandes e influentes figuras do cinema europeu. “Motel Destino” se beneficia muito da montagem de Quettier na medida em que todo o encontro bem-sucedido entre a tensão e o tesão se dá com base no controle de ritmo e na maneira como a troca de olhares entre Heraldo e Dayana, sobretudo, se harmonizam com os planos dos quartos e corredores fantasmagóricos do motel. Quando os dois transam no quarto, no corredor, na rede de dormir e não-sei-mais-onde, a coreografia dos corpos se apruma pela montagem. O corte e o gozo andam juntos.

Aliás, corpo e suor sempre foram elementos muito presentes no cinema de Karim Aïnouz. O torso nu e purpurinado de Lázaro Ramos em “Madame Satã”, a volúpia de Hermila Guedes em “O Céu de Suely” ou Alessandra Negrini se acabando na pista de dança em “O Abismo Prateado” são exemplos memoráveis. Desta vez, os corpos e os fluidos se multiplicam, os gemidos estouram na banda sonora e sobra pouco espaço para a caretice. Assim como a instituição motel, no seu sentido mais transgressor, “Motel Destino” é uma invenção tipicamente brasileira.

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– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.

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