C6 Fest SP 2023 – Dia 2: Kraftwerk mítico, um insano Mdou Moctar, um farrista Jon Batiste e a fantasia clubber do Underworld

textos por Bruno CapelasMarcelo Costa e Renan Guerra
fotos por Fernando Yokota

DIA 2 – 20 e maio de 2023 – Sábado
introdução por Bruno Capelas

Saiba como foi o Dia 1 e o Dia 3

“Aulas, cria”: em sua segunda noite, a curadoria do C6 Fest permitiu ao público brasileiro não só ter acesso a grandes shows, mas também a verdadeiros cursos rápidos sobre música contemporânea. Na área externa do Auditório Ibirapuera, a disciplina disponível versava sobre a História da Música Eletrônica, em uma ementa que acrescia o Model 500 à cadeira já oferecida no Rio de Janeiro na quinta-feira, com seminários de Kraftwerk e Underworld.

Já o público que se matriculou na tenda Heineken pode assistir a uma exposição de sons da África e da Diáspora Africana, em um curso itinerante que incluía paradas em Camarões (Blick Bassy), Níger (Mdou Moctar), Salvador (Russo Passapusso), Rio de Janeiro (B Negão) e New Orleans (Jon Batiste).

Felizmente, a noite reuniu condições adequadas para o ensino, com temperaturas ligeiramente superiores à friaca do primeiro dia. Talvez isso tenha feito melhorar a frequência dos alunos: estimativas não-oficiais feitas pela equipe de reportagem do Scream & Yell calculam audiência total de cerca de 3 mil pessoas no festival – uma evolução na comparação com a sexta-feira, mas ainda assim bem abaixo da capacidade suportada pelo evento.

Como em quase toda faculdade, algumas cadeiras acabam sendo melhores do que as outras – e é claro que a opinião de quem está presente varia de pessoa para pessoa. Por isso, reunimos mais uma vez não um, mas três repórteres espalhados pelo Parque do Ibirapuera, a fim de registrar melhor o conteúdo total para você, leitor. Aqui abaixo, você confere as lições aprendidas pela equipe do Scream & Yell ao longo das aulas do sábado, 20 de maio, no C6 Fest.

16h-18h

BRUNO CAPELAS: “Pô, mas não é ruim esse negócio de não ter metrô perto do Ibirapuera?”, perguntou um amigo carioca em algum momento do segundo dia do C6 Fest. “É, é ruim sim”, foi o que eu respondi, pensando na viagem de ônibus que eu fiz de casa até o parque – e em todas as vezes ao longo de duas décadas em que eu xinguei algum amigo que propunha “um rolê no Ibira”, que é um parque central, mas é fora de mão. Ranzinzices minhas à parte, a verdade é que a vida às vezes é ruim no assunto transporte público, mas já foi pior – e lá estávamos nós antes das 17h com credencial em punho para mais um dia de cobertura. Depois de uma parada providencial na bela sala de imprensa do Auditório Ibirapuera (recoberta de pôsteres autografados dos shows históricos do espaço), a primeira missão do dia era conferir qual era a do camaronês Blick Bassy, que abriu os trabalhos na tenda Raikkonen do evento. As árvores continuavam lá, mas o ar-condicionado estava desligado. O som que vinha do palco, porém, era frio: bastante próximo à fase inicial da carreira de James Blake, Bassy tem um repertório cheio de canções bonitas e uma voz sensível, mas os arranjos econômicos e a escolha de bateria eletrônica faziam o som carecer de melhor liga para se conectar com o público. Uma pena – um ou dois percussionistas tocando ao vivo teriam feito uma enorme diferença ali. Para acompanhar o show, um gracejo: pode não existir almoço grátis, mas cerveja sem álcool tinha à vontade no segundo dia de festival. Saúde?

Blick Bassy

MARCELO COSTA: Com o caminho das pedras estudado no primeiro dia, a função de chegar, pegar credencial e ir para os espaços de shows foi muito mais sossegado no sábado, permitindo, ainda, aproveitar as Heineken 0.0 distribuídas gratuitamente. A Tenda Heineken, minha escolha principal nesse segundo dia, estava parecendo o Polo Norte quando a adentrei, mas pude flagrar a conversa do técnico responsável pela temperatura do lugar pedindo para “desligar tudo” ali, decisão acertada que manteve o clima agradabilíssimo no restante da noite. O camaronês Blick Bassy abriu os trabalhos mostrando uma voz belíssima. Seu quarto álbuns, “Madibá” (que será lançado na próxima semana), é cantado na língua Baasa, um dos 250 dialetos de seu país, e seus singles recentes trazem um trabalho percussivo empolgante, mas a formação diminuta (ele na guitarra acompanhado de dois músicos se alternando entre programações e teclados) eliminou o lado folclórico e world music de seu som focando na eletrônica a lá James Blake, que soou bonita, mas não deu conta do tamanho de sua musicalidade. Procurem saber nos streamings da vida..

Blick Bassy

RENAN GUERRA: Cheguei cedo no segundo dia e as primeiras horas foram apenas de exploração do espaço para entender a nova logística. Nesse sábado, o palco externo do Auditório Ibirapuera era o meu ponto central e a logística entre ir para a Tenda e voltar para o palco externo ainda estava um tanto quanto confusa. Entre ruídos de comunicação dos funcionários, fui aos poucos descobrindo como fazer as voltas, mas no final das contas nesse primeiro momento já fiquei sentado no gramado à espera dos shows que começariam no final da tarde.

18h-20h

BRUNO CAPELAS: Há algumas semanas, em uma roda de conversa com amigos, fiquei travado em uma pergunta que surgiu entre alguns copos: “como é que o Baiana System, com aquelas letras, virou uma banda que toca em festa de playboy?”. A resposta eu não sei, caro leitor, mas a pergunta voltou à cabeça ao ver Russo Passapusso, acompanhado de B Negão, de Kaê Guajajara e da Nômade Orquestra, cantar o refrão “lucro / máquina de louco / você pra mim é lucro” com a logomarca de um banco ao fundo. Foi o ponto mais caótico de uma apresentação que deu tilt na cabeça: se a intenção de unir os três cantores à sonoridade balançada e vigorosa da orquestra era boa, no palco o resultado foi bem esquisito. Motivo #1: a falta de dinâmica do show, no qual os momentos mais imersivos liderados por Kaê não combinavam com os hits balançados de Russo e B Negão – durante os quais ainda havia certa dúvida se a festa “de bacana” era bacana mesmo. Motivo #2: em um festival cuja curadoria quase irretocável preza pela originalidade, é meio esquisito ver o vocalista de uma banda cantando seus maiores sucessos poucas horas antes de… subir ao palco em outro festival (o Nômade) na mesma cidade (o Villa Lobos) pra cantar as mesmas canções com sua banda. Motivo #3: é triste pensar que esse show – montado apenas para o festival, perfeito holofote para privilegiar a força da Nômade Orquestra – soasse tão… óbvio. Como dizia Paulo Ricardo, “que desperdício”.

B Negão e Russo Passapusso

MARCELO COSTA: Curadorias com a do C6 Fest são instigantes porque permitem ao grupo curatorial propor coisas novas que fogem do óbvio, mas a junção de Nômade Orquestra com Russo Passapusso, B Negão e Kaê Guajajara não se encaixa nessa categoria, ainda mais se contarmos que Russo iria se apresentar duas horas depois com sua banda principal em outro festival na mesma cidade. Ficou com cara de “time reserva”, ainda que, entreouvidos, alguém dizia que essa era a versão “público classe A elitizada” de Russo tocando músicas sobre lucro num festival de banco. Ciranda de maluco. Nada se encaixava no show com o ambiente e se incomodar com o público dançando nessa “festa de bacana” não parecia mero detalhe.

Juan Atkins

RENAN GUERRA: O sol mal se pôs e os trabalhos no palco externo do Auditório Ibirapuera se iniciaram com o Model 500 Live by Juan Atkins. Um dos pioneiros do techno, Atkins já colocou a energia lá no alto e abriu a noite com muita fritação e o tom de que essa seria uma noite entre humanos e máquinas. Com vozes robotizadas, batidas gélidas e quebradiças, Juan Atkins, com seus 60 anos, fez o público que ia chegando se aproximar e se aquecer enquanto dançava. Uma parcela do público que esperava o Kraftwerk ficou ali meio sem dançar muito, aquela cara meio blasé perante o show, porém quem se entregou às batidas pode se divertir e muito.

Kraftwerk

20h-22h

BRUNO CAPELAS: Primeiro eles vieram em 1998 e 2004, mas eu não fui porque era criança. Depois, eles voltaram com o Radiohead e os Los Hermanos, mas eu tinha gasto minhas economias de adolescente pra ver o R.E.M.. Na última chance, no Sonar São Paulo 2012, eu preferi ver os Los Hermanos. Dessa vez, passei semanas brincando que o Kraftwerk da atualidade era o “Demônios da Garoa com robôs”, mas quando aqueles senhores alemães subiram ao palco, eu finalmente estava lá para vê-los – e por mais que eu quisesse me dividir ao meio e ver Mdou Moctar na tenda, eu sabia que não precisava estar em outro lugar no mundo durante aquela hora. Porque ver o Kraftwerk não é só ver uma banda no palco com belíssimas projeções ao fundo – e que belo fundo para essa banda é um prédio de Niemeyer! Ver o Kraftwerk é ter acesso à Pedra de Roseta não só da música contemporânea, mas do nosso mundo: do frenesi por automóveis ao controle de dados pessoais, dos refrões pop atuais mais batidos à ousadia minimalista do funk brasileiro, do culto à beleza às discussões sobre inteligência artificial, em tudo esses alemães maravilhosos botaram a mão nas últimas décadas. Se isso tudo parece papo de palestrinha, então vamos falar de música: que delícia é poder ouvir ao vivo uma canção como “Autobahn” e sua intrincada evolução ao longo de oito minutos, numa melodia que salta de uma Califórnia sonora para percorrer autoestradas progressivas e acelerar nossa cabeça. Isso para não falar na sagacidade de “The Man Machine” (Décio Pignatari aprovaria a projeção) ou na beleza de “Computer Love”, ou na energia de “Tour de France”, ou de… você escolhe, leitor. Se esse Kraftwerk é uma banda robô fadada a existir para sempre, como diz a piada que circulou nas redes sociais, só me cabe dizer uma coisa: sorte a das próximas gerações.

Kraftwerk

MARCELO COSTA: O único ponto positivo da turma de Russo Passapusso foi ter estendido um pouco sua apresentação permitindo, assim, que alguns pudessem assistir ao começo do Kraftwerk enquanto a produção preparava o palco para Mdou Moctar. E lá estávamos nós olhando a “Monalisa” da música eletrônica com sorrisos bestas e apaixonados estampados na cara. Vieram “Numbers / Computer World”, “Spacelab”, “The Man-Machine” e quando começou “Autobahn” precisei pegar o caminho da roça em direção da Tenda Heineken para estar em frente ao guitarrista nigerense, que começou seu show a 180 por hora sem deixar de acelerar um segundo sequer até o final da apresentação, quando deve ter batido nos 320 km por hora. E ainda de Mdou seja o mestre de cerimonias, solando, cantando e fazendo o diabo a quatro nas seis cordas, o motor que impulsiona o quarteto é o baterista Souleymane Ibrahim, uma máquina de dar porrada daquelas que obrigam o espectador a dançar, pular e urrar, de tão contagiante que é sua condução. S-h-o-w-z-a-ç-o.

Mdou Moctar

RENAN GUERRA: Na sequência, até antes do horário combinado, o palco já tocava uma música ambiente e logo os telões ganharam uma contagem regressiva para a chegada do Kraftwerk. Os alemães fizeram um show clássico, passando pelos hits fundamentais da banda, de “Computer Love” a “The Robots”. Um dos pontos altos foi o medley de “Tour de France”, com “Tour de France 1983 / Prologue / Tour de France Étape 1 / Chrono / Tour de France Étape 2”, para fazer o corpo dançar e a mente flutuar. De caráter mais mínimo, o show do Kraftwerk foi até bastante pra cima, tanto que pedia a movimentação do público, porém mesmo assim o pessoal que lotava o espaço do Parque Ibirapuera parecia mais interessado em papear, o que não atrapalha no todo a bela experiência do show, mas que dá aquele tom meio agridoce ao momento.

22h-0h

BRUNO CAPELAS: O show do Kraftwerk terminou lá pelas 20h30, é verdade – embora ele ainda esteja circulando pelos meus neurônios e talvez continue sua rota pelas próximas semanas. Às 0h, eu já estava longe do Ibirapuera há tempos, degustando uma bela pizza de um dos mais honestos bares de São Paulo, o Recanto Paulista (procure saber, caro leitor). Mas antes de fechar a conta desta segunda noite de C6 Fest, ainda preciso dizer uma ou duas coisinhas. A primeira é que o Underworld, que teve a missão de encerrar o palco externo do Auditório Ibirapuera, foi divertido demais. Nostalgia (do que eu não vivi) gostosíssima, bom pra dançar e curtir – e que carisma tem o senhor Karl Hyde, hein? E a segunda é que, em prol do “bom jornalismo”, porém, não fiquei até o final do Underworld: preferi passar alguns minutos na tenda Raikkonen para sacar o Jon Batiste. Quando cheguei lá, entendi finalmente o propósito do palco com árvores: com público esparso, todo mundo cabia à frente delas, então que belo efeito cenográfico. Quanto a Jon Batiste, devo dizer que vi mais pirueta que música, num daqueles espetáculos que o artista quer tanto que a plateia se divirta que ele não deixa ninguém descansar. Mas eu fui mais forte que ele: encerrei este segundo dia de festival sentado numa das aprazíveis cadeiras de praia colocadas na tenda pela produção, vendo o show lá de longe e saindo antes do final – afinal, poupar as pernas é importante numa maratona de três dias. (Eu sei, perdi Lia de Itamaracá, mas já dizia o poeta Alexandre Magno Abrão: “cada escolha, uma renúncia”). Até amanhã, C6.

Jon Batiste

MARCELO COSTA: Diante do provável melhor público da Tenda Heineken no fim de semana (cerca de 2 mil pessoas), Jon Batiste fez o típico show “me engana que eu gosto”, abusando dos clichês e encavalando citações que, no final da noite, pareciam deixar sobrar pouco espaço para ele próprio. Ele tem carisma, isso é óbvio, só abusa do misancene: quando pega a guitarra, posa de Prince; ao piano, encarna Little Richard; com o microfone em mãos sai correndo pelo palco e se joga de joelhos ao melhor estilo James Brown. É tudo extremamente referecial. A banda começa o show tocando samba, na segunda canção ele apela para o “ehhh ohhh” conduzindo o público; na quarta tem solo de bateria. Ali pelas tantas tem base pré-gravada de backing vocal – com uma backing vocal em cena e mais 19 pessoas no palco (incluindo três dançarinas). É show na melhor acepção da palavra, que é quando você se utiliza de todos os recursos para entreter a audiência (que, claro, caiu de amores por Batiste), mas, lá pelas tantas, a sensação que fica é de que a música foi deixada em segundo plano, utilizada apenas como veículo para a farra. Ou seja, show muito mais para os olhos do que para os ouvidos. Há como recriminar? De maneira alguma. Mas se combinasse os dois lados… vixi… No final, teve Lia de Itamaracá, mas eu já estava caminhando atrás de um 99…

Jon Batiste

RENAN GUERRA: Pós-Kraftwerk, ainda um tanto quanto atordoado, decidi arriscar o show de Jon Batiste, porém chegamos por lá e o palco ainda estava sendo organizado, por isso já dei meia volta e decidi guardar meu lugar no palco do Underworld. Banda seminal do universo da música eletrônica, o Underworld transformou o parque do Ibirapuera numa grande rave, com aquele ar de nostalgia anos 90, mas com um saboroso olhar para o futuro. Com amplas projeções nas paredes do Auditório do Ibirapuera, o show do Underwolrd é uma interessante simbiose entre aquela força do rock com a intensidade da música eletrônica. Com vocais ao vivo e uma produção calorosa, a banda sabe muito bem equacionar as diferentes demandas de um show ao vivo, conquistando o público de forma interessante. Claro que para fechar eles cantaram o hit “Born Slippy .NUXX”, sucesso na trilha sonora de “Trainspotting” e que parece não envelhecer. Nesse segundo dia, vivi inteiramente a fantasia clubber anos 90 e me diverti no palco externo do Auditório, tanto que mal passei pela Tenda. Nesse sábado o público circulando pelo C6 Fest era bem maior, gente mais velha, famílias e toda uma horda dos mais variados estilos de pessoas – até uma galera vestida tal qual os Kraftwerk circulava por lá. Com clima de festa, o segundo dia acabou para mim na pista da Festa Luna, lá no Pacubra. Com público animado, a festa ia longe, porém as minhas pernas disseram que não era para mim e foi hora de ir embora. Afinal, o festival segue no domingo…

Saiba como foi o Dia 1 e o Dia 3

Underworld

– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br/
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava. 
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