Por Dulce Quental
Ele tinha quase a mesma idade que eu, apenas um ano a mais. Suas canções guiaram os meus primeiros passos na pista de dança ao som do Jackson Five. “É a Natureza Humana, Why? Why ?”, eu cantava no inicio dos anos 80, na versão dos irmãos Jorge e Waly Salomão para a canção de Steve Porcaro e Joni Bettis, eternizada na sua voz . Voz de menino homem, um homem menino que com seu talento extraordinário iria balançar os quadris do mundo assim como Elvis. Nossos corpos nunca mais seriam os mesmos.
Um “bad boy” da Terra do Nunca; ícone da nossa juventude; um capítulo da nossa história que também termina; por que também somos estranhos a esse novo mundo que se apresenta?
A idade madura – que não chegou nunca para algum de nós, ou para muitos da nossa geração – talvez por isso tantos tenham ficado no caminho, ou outros tenham se recolhido ao ostracismo – enfim se escancara. Definitivamente entramos numa nova era; hoje a dança é diferente. Uma expressão artística tão corajosa como a de Michael é cada vez mais rara. Amy Winehouse, uma exceção. Quem estaria disposto a arriscar alguma coisa por alguém ou por alguma idéia ? Por que resistir as demandas de toda sorte de compensações; toda variedade de efeitos especiais; de sensações artificiais; de ilusões a disposição do nosso corpo; quando podemos nos livrar de nós mesmos; dos nossos desejos incomodativos; da nossa sexualidade mal resolvida; comprando formulas prontas de vida?
Por que se aventurar por universos não explorados pelas massas? Por que resistir a um sistema de gratificações imediatas? Quem se importa? Quem está velando pelos nossos sonhos? Se não há platéia não há show; assim o sistema nos faz crer. Por que acreditar nas próprias escolhas? Por que respeitar o tempo perdido; o desejo interrompido; a vida anônima, inegociável e não matável de cada um?
Michael é o sintoma mais agudo desse tempo em que o bio-poder se infiltrou em todas as nossas instâncias. Na sua arte podemos encontrar a tentativa de resistir a ultima fronteira da servidão voluntária: o corpo endiabrado; o corpo violado se expressa; dá voz a voz calada e muda da infância atropelada pelo desejo do outro.
Negro que quer ser branco? Corpo que quer ser santo? Sexo que quer ser outro? Pudor, pedofilia; morfina. Alegria, furor, crucificação. Maus tratos; inseminação artificial; espetáculo midiático; o rei do pop abre as artérias da América em crise ao mundo globalizado. A vida pode ser um lixo.
Tudo virou massa de tomate depois dos anos 80. Um enorme pastelão. E o pop que Michael ajudou a criar nas imagens e nos clipes reflete bem essa via crucies. Uma crucificação publica; numa total diluição das fronteiras entre o publico e o privado; confundindo ficção e realidade; e fazendo da realidade uma ficção: “num clipe sem nexo; um terror retrocesso; meio Bossa Nova e Rock and Roll”. Faz parte do show pop. That’s entertainment!
Enfrentar os demônios em publico; lutar pela verdade; por uma razão sem defesa; pelo direito a fraqueza (franqueza?); pela defesa da vida frágil e devastada. Um artista gigante numa época covarde. Uma alegria raivosa e radiante num fundo de melancolia e devastação. O inferno e o paraíso num só corpo humano; demasiado humano; como todos nós.
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Dulce Quental é cantora e compositora e assina o blog Caleidoscópicas
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Nota do Editor: Dulce me enviou este texto no dia 28 de junho, quando eu havia começado minha viagem de 40 dias pelo Velho Mundo. Fui, voltei e só hoje fui abrar o texto em world atachado ao email com o recado: “Achei que vc ia gostar de receber”. Me permiti publica-lo hoje pois o distanciamento da data faz com o texto seja lido com mais leveza e menos publicidade. E é o que nós todos temos a falar sobre o assunto. Por mim, basta.
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Leia as colunas anteriores:
01 – Em Paris, Cancun ou Rio, a revolução somos nós!
02 – O Pensador Independente
03 – Pra Falar de Cinema
04 – Um Fim de Semana nos Anos 80
05 – Patrulhas da contra-cultura
06 – Por que gostamos de Woody Allen
07 – Cinema, morte, êxtase, provas de amor
08 – As Dores do Crescimento
09 – Desejos de Mulher
10 – Os Sonhadores
11 – Humano, Demasiado Humano!
12 – Como se renovar sem se tornar cinza?
13 – Se até o king-kong me entende por que os homens não?
14 – “2046” – Overdose de ficção e realidade
15 – A Voz da Chuva
16 – O Ponto Final de Woody Allen
17 – Polaroides Frias
18 – Confissões de Divã
19 – Downloadiar ou não, eis a questão?
20 – Ideologia, não quero uma pra viver!
21 – Uma Impossibilidade Possível
22 – Educação Sentimental
23 – Um Gato Aos Pés do Rio
24 – Saudades de Dylan e Caetano
25 – Guerrilha no Harém
26 – Como Caem os Amores
27 – Palavras Vivas Em Sentimentos de Pedra
28 – A realidade imitará a ficção?
29 – “O Expresso do Oriente Leva Tanta Gente”, Eu Já Te Contei?
30 – Sexo, Drogas e Bebop
31 – O Poder do Desejo
32 – Tragédia ou Comédia
33 – Amantes Inconscientes
34 – Politica Voz
35 – Toc! Toc! Toc! Pode Haver Ninguém Interessado!
36 – Política, Resistência e Composição
37 – A Resistência Silenciosa de Carly Simon
38 – Entrevista com a Vampira
39 – Detalhes tão pequenos de nós dois
40 – Sobre O Ladrão De Fogo E O Mercado De Ilusões
41 – Como ser forte e sozinho num mundo como esse?
42 – Vida longa para Amy Winehouse
43 – Autômatos Erectus ?
44 – Beleza Convulsiva
E os bons tempos estão de volta =)
Pensei que jamais pudesse sentir isso, mas a morte de MJ me fez sentir um enorme vazio artístico. Num mundo que valoriza as celebridades, não vale nada a intenção do artísta…..
A morte do cara e o circo de horror que se armou em seguida são das coisas mais nojentas dos últimos anos e sintoma dos tempos em que vivemos: curiosidade mórbida por celebridades vazias, alimentada por uma mídia baixa e sanguessuga, uma novelinha da vida real (havia restado algo de real no cara????). Um final escroto para um homem talentoso….