Soundtracks da Quarentena #08, por André Takeda
“Estranha”, Hibizco
Ela caminha até a porta do hospital. Seus passos são rápidos, porém cansados. Por alguns segundos penso que estou em um filme de ficção científica. A máscara, o macacão branco, as luvas azuis. Vejo apenas os seus olhos. E seus olhos sempre foram o suficiente.
“Oi”, digo sorrindo por trás da máscara, “nossa, quanto tempo, né?”
Ela olha para os lados, acompanha com atenção um casal de idosos entrando na fila de triagem. “Já disse que tu não pode ver teu pai”, ela diz com pressa. Depois parece lembrar que há anos que não nos encontrávamos e fala “Desculpe, nem te disse oi… é que tá uma loucura por aqui, tu sabe.”
“Sim, eu sei, desculpe ter aparecido mesmo assim, mas é que tou preocupado. Aí tentei arriscar.”
“Passa na hora que te disse, o médico dele vai poder falar contigo. Como te expliquei, tou na emergência.”
“Tá bom, volto mais tarde sim… é que tou meio perdido, não sei o que fazer em Porto Alegre.”
Ela balança a cabeça, ri, mas logo volta a ficar séria: “Fica em casa, é isso que tu tem que fazer, fica em casa e te cuida.” E então ela vê o disco de vinil na minha mão. “O que é isso?”
Mostro a capa para ela. “É um disco do DeFalla.”
“O que tu tá fazendo com um disco do DeFalla em um hospital? No meio de uma pandemia?
“Tu tem cinco minutos?”
“Eu tinha cinco minutos, agora devo ter uns três… mas tá bom vai, fala.”
Começo a sentir culpa porque ela está perdendo tempo comigo. Mas ouvir sua voz me faz bem e decido continuar: “Desde que entrei no avião de volta pra cá tenho essa sensação que meu pai não vai sobreviver, sei lá, é horrível dizer isso, mas é o que sinto, sei que ele tá no grupo de risco e quero estar preparado pro pior.”
Por um momento ela aproxima sua mão do meu corpo, como se quisesse me tocar, e diz: “Não te preocupa sem antes ouvir o médico.”
“Eu sei, eu sei”, continuo, “mas cheguei em casa, no meu velho quarto, e vi meus vinis, aí encontrei o disco do DeFalla. Lembro que ganhei o vinil do meu pai, ele dizia que era amigo da banda, nunca soube se tava mentindo, mas, tu, mais do que qualquer outra pessoa, sabe que sempre achei do caralho ter o pai que tive. E ele dizia que essa capa tinha um efeito 3D, mas nunca consegui ver nada, e ele ria de mim. E contava que os shows do DeFalla nos anos 80 eram fodas, que quase me levou em um quando eu tinha uns dois ou três anos. Então, queria tentar, pela última vez, brincar de enxergar o 3D na capa do DeFalla.”
Ouço ela respirar fundo. “Lembro dessa história. Acho que tu até me fez ser fã do DeFalla por algum tempo.”
“Tu sabe que meu pai te adorava, né?”
“Pena que o filho dele deixou de gostar de mim”, ela espontânea como sempre. “Desculpe, desculpe, esqueci que tinha te prometido que nunca mais iria jogar isso na tua cara.”
“Eu nunca deixei de gostar de ti, só fui embora de Porto Alegre”, respondo segurando com força o disco do DeFalla.
Nós ficamos alguns segundos em silêncio. E então ela diz “Tenho que voltar. Desculpe se não posso te ajudar, aparece mais tarde e fala com o médico, mas tu sabe que não vai poder ver teu pai, né? Se eu souber de algo, te ligo.”
Fico parado ali na porta, imóvel, e vejo ela ir embora até desaparecer de vista. E então começo a sentir meu corpo tremer. Mas não é febre. Não é gripe. Não é vírus. É somente essa sensação vertiginosa de que tudo está voltando ao lugar. E, de repente, tenho certeza de que a coisa mais estranha sobre mim ainda é a mesma e não posso mais evitar. Vou fazer exatamente o que disse e ficar em casa.
“Estranha” é um single da banda gaúcha Hibizco.
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André Takeda (siga @andretakeda) é autor dos livros “O Clube dos Corações Solitários” (2001), “Cassino Hotel” (2004) e “A Menina do Castelinho de Jóias” (2011). É colaborador de primeira hora do Scream & Yell (leia a série “Um Adolescente nos anos 80” na primeira versão do site) e já liberou para download no site a coletânea de textos “Ao Vivo” em PDF. Baixe aqui.