John Fante Trabalha no Esquimó


Por Alessandro Garcia

O incauto que se deixar levar tão somente pelo que sugere o texto de contracapa de “John Fante Trabalha no Esquimó” (Calibán), poderá achar que este livro é uma daquelas obras literárias que encanta apenas aos literato: é ressaltada a lição que escritor carioca Mariel Reis assimilou da obra de Drummond, é destacado o fato de sua contemporaneidade com os escritores que ama e é sugerido que seus personagens acompanham os passos de João do Rio, Marques Rebelo ou Moacir C. Lopes. Natural, já que não é preciso um mergulho tão profundo na obra de Mariel para se abobalhar com a quantidade de referências literárias que um bom conhecedor pode encontrar em subcamadas dos textos do autor. Daí a quase inevitável predisposição a querermos analisar sua escrita sob o ponto de vista das sua referências, como se Mariel fosse mais um destes escritores que, envaidecido-se de sua própria função, produz literatura somente para seus iguais, num tatibitate exercício de emular a obra dos autores que o influenciam, para ver-se reconhecido e reverenciado nas conversas de mesa de bar dos “malditos”.

É certo que, nesta primeira impressão que as intenções de sua obra podem passar, depõe contra o exposto acima o fato do título do livro já trazer em si um possível aviso de que o mesmo se pretende partícipe da orgia auto-centrada da qual a literatura contemporânea está encharcada. Afinal, John Fante, um mito para os mesmos adoradores de Bukowski, trabalhando no Esquimó? E, a propósito, que diabos é o Esquimó? Aqui, outro fato infeliz a depor contra o autor na escolha do título: Esquimó, saberão os mais informados (ou aqueles que lerem a apresentação do livro, feita por Marcelino Freire, o que vier primeiro), é um restaurante do Rio de Janeiro – ok, referência local que se explica quando lido o conto-título, mas, Mariel, detalhe dispensável para uma literatura que consegue, felizmente, alçar a difícil condição de suplantar a esfera dos círculos cariocas.

Então, esclarecido o que a ficção de Mariel não é (exercício literário feito para literatos), vamos ao que é de fato: uma obra que consegue dialogar com muita clareza com a tradição literária, sim, uma vez que Mariel transita com liberdade e domínio absoluto em textos que carregam tanto as tintas da literatura clássica, formal; mas, mais do que isto, o texto de Mariel neste seu segundo livro (a estréia foi com “Linha de Recuo e outras histórias”, pela Editora Paradoxo) atesta o que o autor há tempos vem deixando claro, que é uma habilidade de prosador que transcende as tentações de exibir sua vastíssima bagagem literária, criando uma obra acessível em que as particularidades da cena carioca são ferramentas para a construção de peças urbanas – algumas vezes imersas na inevitável sordidez que relatos na “cidade maravilhosa” se fazem necessários – repletas de malemolências e voleios que conseguem o feito contraditório de manter verossimilhança mesmo em prosas que por vezes se descobrem terríveis fábulas. Muitas vezes metaficcionais, iniciando como se pacatas crônicas autobiográficas fossem e se desdobrando para nos revelar a acidez de um autor não muito predisposto aos finais felizes.

Mariel constrói, em poucas linhas, retratos minuciosos de tipos marginais, duros, ocres, entregando-se a relatos suburbanos com destreza e, diferente de seus contemporâneos, não se deixando levar pelo fascínio que textos desta natureza notavelmente exercem aos seus autores. O conto “A Viagem”, é exemplo claro disto. Em seus contos, o relato ocasional de episódios acima da linha de asfalto que separa os cariocas burgueses dos menos afortunados não apresenta aquele quase fetiche da criminalidade e da pobreza que embriaga prosas urbanas atuais, fruto da imersão de autores desconhecedores deste lado menos glamoroso da urbanidade carioca, mas ainda assim sedentos de relatá-lo, inebriados pela estética violenta e tarantinesca que julgam ser capazes de compor. Vã ilusão. Transitar em terrenos perigosos assim não é para os incautos. Mariel consegue se safar incólume. Aliás, o autor é tão destro na ficção desta natureza, que causa estranhamento que neste mesmo livro uma quase novela, “Por mil demônios”, esteja também inserida. O texto, de temática fantástica, com idas e vindas no foco narrativo, quebra com a uniformidade que o livro até então vinha alcançando. “Jonas, a baleia”, é outro conto que destoa em uma obra que, com exceção destes, consegue manter algo tão importante em um exemplar de contos: regularidade e coerência.

Ainda que no conto que dá título ao livro, o autor (se pressuposto que há autobiografia ali) acalente o “sonho de um dia cruzar, mesmo que com um sósia, com Lima Barreto ou Machado de Assis ou João do Rio”, todos escritores vinculados à tradição de autores observadores da cidade carioca, é fato que não se pode definir a obra de Mariel como prosa de observação. Mesmo quanto flerta com a crônica, Mariel consegue corromper sua fórmula, empregando principalmente grossas camadas de uma ironia que perpassa muitos dos dezesseis contos do livro. Ao fim de tudo, Mariel consegue se firmar como um dos mais lúcidos autores da nossa safra brasileira. Ao criar principalmente narrativas que transitam na realidade urbana das grandes cidades, o autor mostra destreza ao não filiar-se ao fascínio que este tema costuma exercer, mantendo não distanciamento para que isto não ocorra, mas usando de toda sua habilidade para tentar perscrutar aquilo o que, no fim das contas, é o objetivo de todo grande escritor: a alma humana.

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Alessandro Garcia é escritor, publicitário e assina o blog Suburbana

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