texto, fotos e vídeos por Bruno Capelas
Saiba como foi o dia 1 / dia 2
Com quase 30 anos de história, é fácil notar a existência da mitologia em torno do Goiânia Noise – não só pela trajetória de existência & resistência do evento, mas também por ser o maior responsável por colocar a capital de Goiás no mapa do rock brasileiro. Justamente por isso, é curioso o fato de que, até o começo do último dia de festival em 2024, os principais destaques do Noise foram todos de fora do Estado, como pode acompanhar o leitor nos textos do dia 1 e dia 2 desta cobertura. Mas isso mudou no domingo, 14 de abril: quem foi ao Centro Cultural Oscar Niemeyer testemunhou duas das maiores bandas da história de Goiás se reencontrando com seu público, cada qual à sua maneira, de maneiras muito especiais.
De um lado, o Violins, que gravou alguns dos discos mais importantes da década de 2000 e fez um show que olhou, ao mesmo tempo, pro passado e pro futuro de forma digna. Do outro, o Boogarins, que a despeito de ter despontado para o mundo nos últimos 10 anos, fez apenas seu primeiro show no Noise neste 2024. Entre as duas, há ainda que se apontar entre os destaques do dia a bem-vinda “intrusa” Blastfemme – que vem do Rio de Janeiro, mas teve seus mais recentes trabalhos lançados pela Monstro Discos, o selo de Léo Bigode, Léo Razuk e Tosh Kimura, responsável pela organização do festival. Um passo de cada vez, porém.
Ao contrário dos dois primeiros dias de festival, que tinham ingressos entre R$ 50 (meia, seja por carteirinha ou com doação de 1 litro de leite) e R$ 100, o domingo tinha entrada gratuita, com retirada de ingressos pelo site do Noise durante a semana. Segundo a organização, 4 mil bilhetes foram disponibilizados, mas a sensação, seja pelo trânsito fácil no espaço ou pelas filas em caixas e bares, é de que apenas cerca de 70% do total compareceu de fato ao festival. Foi também o único dia do evento que teve a entrada de crianças – os outros dois contavam com censura 18 anos.
Depois da intensa programação de sábado, finda lá pelas 3h da manhã, a reportagem do Scream & Yell teve de recarregar suas baterias, chegando ao festival por volta das 17h30. Tempo suficiente para ver a mineira Verbase se apresentar no palco da Esplanada, no “térreo” do Centro Cultural Oscar Niemeyer. Fundada em 1994 e com disco novo na mala (“Febre de Primavera”, lançado na sexta-feira nas plataformas digitais), a banda de Ubá faz um som que corresponde à sua década de nascedouro, com influências claras de grupos como Lemonheads, Dinosaur Jr. e até um bocadinho de Teenage Fanclub – mas sem refrãos ganchudos e contundentes como as de suas inspirações.
Contundência também foi o que faltou ao Blowdivers, que subiu ao palco meia hora depois no Palácio da Música. Fazendo um hard rock de poucas concessões, o grupo local não exatamente faz feio, mas parece levar a sério demais suas intenções criativas em um caminho que não tem muito aonde ir parar. Do mesmo sintoma sofre a Red Sand King, que também tocou no palco do Palácio: ambas fazem um som competente, mas altamente derivativo de um classic rock não tão inspirado.
Entre Blowdivers e Red Sand King, quem tocou na Esplanada foi a brasiliense Galinha Preta, instituição punk do estado vizinho do Noise. Talvez a banda mais inspirada por Ramones de todos os três dias de festival, o grupo liderado pelo vocalista Frango Kaos tem canções tão divertidas quanto estrambóticas, como “Ratoburguer” (do refrão “que pastel e caldo que nada/eu vou comer ratoburguer na rodoviária”) ou “Vá Se Fuder” (essa dá pra adivinhar a letra, né?).
Fosse só por elas, o show teria sido extremamente divertido, mas faltou ritmo: entre uma música e outra, Kaos entrava num stand-up particular quase sempre sem arrancar risos da plateia. Algumas das frases até eram certeiras (“Netanyahu é o anticristo”), mas a maioria delas ficava apenas no constrangimento (“Léo Bigode, bota as bolas para fora que eu lambo, você é muito foda!”). Em meio a tantas intervenções e uma visível necessidade de Kaos ler suas próprias letras em boas partes do show, a piada perdeu a graça, fazendo a galinha… não alçar voo. (Desculpe, caro leitor, foi difícil resistir ao trocadilho).
Em compensação, quem soube usar seu tempo com muito valor foi a banda carioca Blastfemme: em meia hora, o quarteto fundado em 2016 não só passou sua mensagem, mas também soube enfileirar deliciosos momentos sem fazer firula. O que não significa deixar o charme de lado, tanto nos graves precisos de Jhou Rocha ou na presença avassaladora de Dani Vallejo, para quem todos os palcos parecem pequenos.
Amparada por uma banda azeitadíssima, Dani (que também está à frente do Esquadrão Sonzera Total) tem espaço para ser uma frontwoman completa. Isso significa não só poder trocar de figurinos várias vezes entre as faixas, usando de poucos mas eficazes recursos, mas principalmente seduzir a plateia em alto nível. Foi difícil resistir a Dani exibindo tesão, raiva, energia e astúcia em canções de estirpe roqueira e viés feminista, como “Vem Vem”, “Obrigado Pela Parte Que Me Tocas” ou “Malícia” – dos marcantes versos “tome cuidado com quem você se deita/muito cuidado para quem você se doa”. Outro nome para anotar no caderninho de shows a não perder se passar perto do seu rolê.
“Tá massa curtir um popzinho no festival de rock? De boa né?”, brincou a cantora Maduli no começo de seu show no palco subterrâneo do Palácio da Música. Em outros festivais, talvez sua música até passasse batida, muito por conta das inspirações visíveis de cantoras como Duda Beat ou Marina Sena, ambas conhecidas por terem trafegado do independente para o pop em conexão direta sem escalas. No Noise, porém, a mistura de Maduli até chamou a atenção pela disparidade com a média das atrações, colocando a ala jovem da plateia para rebolar devagarinho. Mas a goiana foi prejudicada pela sequência: ao ter que se apresentar logo depois de Dani Vallejo, o que Maduli faz parece brincadeira de criança na comparação.
Em meados dos anos 2000, quando a cidade começou a ganhar o apelido de Goiânia Rock City, sinais difusos chegavam até o resto do País. Por entre as ruidosas e até agressivas bandas-símbolo da cena da época, como MQN e Mechanics, um nome se destacava justamente por enveredar pelo caminho oposto: o Violins, singular graças às letras sensíveis de Beto Cupertino. Em sua primeira década de existência, o grupo foi dos mais prolíficos da geração: foram seis álbuns, com destaque especial para a trinca inicial “Aurora Prisma”, “Grandes Infiéis” (com excelente produção de Iuri Freiberger e 10º álbum mais votado no especial de Melhores Discos dos Anos 2000 no Scream & Yell) e “Tribunal Surdo”, talvez um dos trabalhos que melhor tenham previsto o Brasil dos últimos anos. Mas, enquanto os grupos de extermínio de aberrações saíam da ficção para se tornarem triste realidade dos trópicos, o Violins se recolheu – seu mais recente álbum é “A Era do Vacilo”, do já distante 2018.
Feito esse preâmbulo, a expectativa era mista antes de Beto Cupertino (voz e guitarra), Pedro Saddi (teclados), Thiago Ricco (baixo) e Fred Valle (bateria) subirem ao palco da Esplanada. De um lado, era feliz a possibilidade do reencontro; do outro, havia dúvidas sobre como o Violins estaria soando depois de tanto tempo. Felizmente, o otimismo venceu: oferecendo ao público uma viagem pelo repertório de quase todos os discos, o quarteto mostrou energia, coesão e coerência raros a quem se dispõe a tal trajeto pelo passado. O começo foi arrasador, com “Medo de Dar Certo”, “Atriz” e a excelente “Auto Paparazzi”.
O mesmo se pode dizer de “Comercial de Papelaria”, lado-B de “A Greve das Navalhas” que ganhou colorido especial com o passar dos anos: se antes poderia passar batido, o verso “para ver nossos pais envelhecerem saudáveis” chega hoje a dar arrepios. Cortesia de uma banda que não só nunca teve medo de explorar a psiquê do “homem branco heterossexual de classe média”, esse ser cheio de limitações e contradições, como soube fazer justamente dessa análise seu principal trunfo. O aspecto mais animador da apresentação do Violins, mais do que a execução digna das canções antigas, foram duas faixas recentes: “Sossego Tenso”, single lançado em 2023, e “Doce Privilégio”, que deve chegar às plataformas digitais nas próximas semanas. Em ambas, Cupertino mostra que não perdeu a mão para explorar sentimentos ambíguos em meio a arranjos intrincados.
É claro que, para uma banda prolífica, cada um dos presentes poderia ter lá sua lista de canções desejadas para ouvir, de maneira que os 45 minutos destinados ao Violins pareceram não só passar rápido demais, mas bastante insuficientes para dar conta de todos os pedidos gritados pela audiência. (Os deste repórter, caso o leitor queira saber, seriam “Grupo de Extermínio de Aberrações”, claro, “Vendedor de Rins” e “O Anti-Herói, pt.1”, enquanto o colaborador do Scream & Yell Leo Vinhas, também presente no Noise, pediria por “Manobrista de Homens”). Privilegiando o repertório de “Direito de Ser Nada”, porém, Beto Cupertino encerrou a fatura com “O Grande Esforço”, sem poder acolher aos pedidos de “mais um” – minutos depois do último acorde, o palco já começava a ser desmontado pela equipe técnica do festival. Tudo bem: um mundo que tem o Violins ativo é, sem dúvida, um mundo mais interessante.
Encerradas as atividades na Esplanada, coube ao Rancore seguir com a programação no Palácio da Música. Capitaneado pelo vocalista Teco Martins, a banda faz parte de uma safra bastante específica do rock nacional, tendo sido um dos últimos conjuntos a aproveitar as frequências da MTV Brasil para chegar aos ouvidos do público. Em hiato desde meados dos anos 2010, o grupo tem movido pequenas multidões pelo Brasil com sua turnê de retorno “Relâmpago”, produzida pela Balaclava Records. Em Goiânia, porém, não chegou a lotar metade do espaço destinado para sua performance. Talvez não tenha feito tanta diferença: no palco, Teco Martins se movimentava por todo o espaço disponível com palavras de positividade, enquanto conclamava os espectadores a se abraçarem “que nem time de futebol” e pular pela pista.
Muito barulho por pouco – e sabendo que o Boogarins prometia muito na sequência, a reportagem preferiu descansar os ouvidos fazendo sua última refeição no Centro Cultural Oscar Niemeyer. As pedidas da noite foram um cachorro quente gourmet (R$ 35, na versão com bacon, apenas OK), um churros de doce de leite (R$ 10) e um correto Campari Tônica (R$ 20), executado pela equipe do Shiva Alt Bar, local que tem sido casa de alguns dos principais shows da cena goiana na atualidade. (E se vale o momento “crítico gastronômico”, talvez seja necessário dizer que um dos poucos pontos fracos deste Noise foi a oferta de comida: além de se pautar praticamente em comida rápida e não necessariamente leve, havia ainda pouca atenção para opções veganas/vegetarianas).
Última atração das 40 bandas a se apresentarem no Goiânia Noise em 2024, o Boogarins chegou ao palco do Palácio da Música muito à vontade, em meio à turnê comemorativa de 10 anos do disco de estreia “As Plantas Que Curam”, lançado originalmente em 2013. Em outros locais, a proposta poderia até soar como revivalismo apressado para alguns. No entanto, é bonito ver o grupo dos guitarristas Dinho Almeida e Benke Ferraz retornar à cativante psicodelia do primeiro trabalho, após tantas transformações sonoras ao longo de uma década. Em Goiânia, esse retorno é ainda mais especial: é um reencontro com a adolescência, com dias mais inocentes, como quem visita a casa dos pais e encontra uma biblioteca cheia de livros antigos responsáveis por formar caráter, mas sem nostalgia barata. “Não é para voltar ao passado, é saber onde a gente está”, comentou Dinho em meio ao show.
No Palácio da Música, é fácil perceber os efeitos positivos da passagem do tempo sob os Boogarins: calejado por anos de estrada e por um entrosamento entre quatro grandes instrumentistas, cada um em sua especialidade, o grupo tem habilidade mais do que suficiente para transformar um disco ainda precoce de 30 minutos em uma viagem sonora com mais do que o dobro do tempo. Tão interessante quanto os arroubos instrumentais de Dinho, Benke, Raphael ‘Fefel’ Vaz (baixo) e Ynaiã Benthroldo (bateria) – como sempre, um espetáculo à parte –, porém, é notar o apelo pop de uma banda estranha, enquanto há tanta banda pop sem apelo algum.
Três momentos são particularmente marcantes nesse sentido: “Paul”, “Doce” e “Lucifernandis”, todas cantadas a plenos pulmões pela plateia e provas vivas da emoção que pode surgir quando a trajetória de evolução do Boogarins se coloca a serviço de boas canções. Esse mesmo efeito se repete no bis avassalador de “Foi Mal”, única faixa da noite deslocada no tempo-espaço de “As Plantas Que Curam”. Ao final de 1h15 de show, o grupo não só fez um passeio no tempo, mas parece estar especialmente antenado com uma das lições máximas fornecidas pelo filósofo Paulinho da Viola – aquela que diz “quando penso no futuro, não me esqueço do passado”.
Enquanto excursiona pelo Brasil comemorando seu disco de estreia e também celebrando o Clube da Esquina, o Boogarins arquiteta seu próximo álbum – em entrevistas recentes, a banda também deu a impressão de estar a fim não só de olhar mais atentamente para o País, mas também de fazer suas canções chegarem a cada vez mais gente. Nesse sentido, voltar para o passado e repisar um caminho com passos diferentes pode dar uma energia singular ao grupo. É cedo para dizer o que vai acontecer, mas dado que parte do universo da crítica musical é feito de conjecturas, não é leviano dizer que, a partir do Goiânia Noise, o Boogarins parece novamente pronto para conquistar os quatro cantos do mundo. Não é pouca coisa.
Ao final de três dias, a 28ª edição do Goiânia Noise Festival não foi só uma coleção de grandes shows, mas também uma amostra muito interessante do legado de uma das capitais do rock no Brasil e dos caminhos e ramificações que esse tal de roque enrow pode ter por aqui no futuro, mesmo sendo um estilo septuagenário. É preciso ressaltar ainda a beleza do esforço heróico da Monstro Discos em chegar à terceira década de vida do festival, algo que por si só deve ser celebrado. Ir a um Goiânia Noise e comprovar a mitologia é missão que todo leitor deste site (e todo fã de música popular do Chuí ao Caburaí, por consequência rápida) deveria fazer uma vez na vida. Vida longa ao Noise, de fato e de direito, a grande festa do rock independente brasileiro.
Saiba como foi o dia 1 / dia 2
PS: Mesmo sem ser roqueiro, Geraldo Vandré já dizia que a vida não se resume a festivais. Esta cobertura, por sua vez, é apenas uma visão de um evento multifacetado, de maneira que achamos por bem oferecer, além da cobertura e de quase 60 vídeos no YouTube, uma lista dos shows favoritos de críticos, repórteres, fotógrafos e produtores que também estiveram em Goiânia. Cada uma delas guarda uma visão especial do festival e das bandas que lá se apresentaram. Vale conferir.
TOP 5 GOIÂNIA NOISE FESTIVAL
Bruno Capelas (Scream & Yell/Programa de Indie)
1 – Boogarins
2 – Violins
3 – YPU
4 – Letrux
5 – Blastfemme
Leonardo Vinhas (Scream & Yell)
1 – Nação Zumbi
2 – YPU
3 – Letrux
4 – Blastfemme
5 – Dorsal Atlântica
Mariana Lima (Alto Falante/Rede Minas)
1 – Boogarins
2 – Letrux
3 – Carne Doce
4 – Terra Cabula
5 – Galinha Preta
Marcelo Damaso (Se Rasgum/Buk)*
1 – YPU
2 – Dorsal Atlântica
3 – Mechanics
4 – Nação Zumbi
5 – Devotos
Marcelo Domingues (DemoSul)*
1 – Nação Zumbi
2 – Devotos
3 – Francisco el Hombre
4 – Los Clandestinos Trio
5 – Dorsal Atlântica
Pedro Margherito (@cinemargherito)
1 – Mechanics
2 – Devotos
3 – Rancore
4 – Boogarins
5 – Nação Zumbi
Terence Machado (Alto Falante/Rede Minas)
1 – Boogarins
2 – Letrux
3 – Devotos
4 – Carne Doce
5 – Violins
TOP 10 DO GOIANIA NOISE 2024
1) Boogarins (17 pontos, 4 votos)
2) Letrux / Nação Zumbi (13 pontos, 4 votos)
4) YPU / Devotos (12 pontos, 3 votos)
6) Mechanics (8 pontos, 2 votos)
7) Dorsal Atlântica (6 pontos, 3 votos)
8) Violins / Carne Doce (5 pontos, 2 votos)
10) Blastfemme (3 pontos, 2 votos)
*Damaso e Domingues só assistiram aos dois primeiros dias do festival
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.