texto de Davi Caro
Por mais estranho que pareça, é justo afirmar que a carreira solo de Bruce Dickinson nunca recebeu o nível de atenção que se esperava (ou que merece, dependendo de para quem se perguntar). Lá se vão 35 anos desde o lançamento de “Tattooed Millionaire”, sua estreia sozinho, ainda que preparada em paralelo com suas atividades com o Iron Maiden – na qual desempenhava o papel de frontman há quase uma década àquela altura. De lá pra cá, entre a saída da banda em 1993 e seu retorno, seis anos depois, a freqüência de trabalhos individuais variou bastante: o último álbum de estúdio do lendário Mr. Air Raid Siren foi “The Chemical Wedding”, de um já muito distante 2005. Entre novos discos – quatro, desde então – e turnês “rememorativas” à frente da Donzela de Ferro (com quem deve passar, pela milionésima vez, pelo Brasil ainda este ano – relembre como foi em 2022), o cantor enveredou por outras frentes, que foram de seu longevo hobby como piloto de avião e escritor (já leu “Para Que Serve Esse Botão? Uma Autobiografia”?) ao empreendedorismo cervejeiro, sem nunca negar a vontade de embarcar em um novo projeto solo.
“The Mandrake Project”, o mais recente álbum de Dickinson, portanto, já é uma surpresa por si só. Descrito pelo artista como uma ideia que inicialmente englobaria uma minissérie em quadrinhos, que seria acompanhada por um disco, o trabalho de dez faixas acabou explorando algumas passsagens da narrativa inicialmente prevista, começando a tomar forma pouco após o período mais crítico da pandemia de COVID. Se reunindo com o parceiro criativo de longa data Roy Z (com quem trabalha desde o bacana “Accident of Birth”, de 1997), Bruce começou a desenvolver as canções a partir de fragmentos trabalhados anteriormente, e desenvolveu nas letras conceitos que abandonavam a unidade conceitual em favor de uma abordagem mais individual e menos unificada, ainda que as letras possam ser interpretadas como parte do mesmo universo criativo. Com as composições divididas entre Roy e Dickinson, “Mandrake”, assim, poderia ser analisado como uma obra realizada a quatro mãos, ambas buscando focar a coesão musical ao invés de uma história linear.
Começar os trabalhos com o primeiro single, a mais cadenciada “Afterglow of Ragnarok”, se mostra uma decisão acertada, ainda que possa surpreender ouvintes mais acostumados à escutar a voz do cantor em aberturas aceleradas (“Aces High” e “Be Quick or Be Dead” vêm à memória). A estratégia aqui é outra: principalmente nos refrãos, Bruce mostra que seu mítico registro vocal não perdeu nada ao longo dos anos, e a riqueza de sua interpretação é valorizada tanto nos momentos mais melódicos quanto em trechos onde explora graves mais discretos. Já a seguinte, “Many Doors to Hell”, pisa fundo nas harmonias hard rock, e seus riffs não soariam deslocados se aparecessem em um disco do Scorpions. Mesmo que tão distintas, as duas faixas soam mais frescas em comparação com a canção que se segue – pouco há de tão distinto em “Rain on the Graves”, que, longe de ser uma canção ruim, soa requentada em sua introdução atmosférica e seus timbres de teclados, que parecem um pouco deslocados.
De fato, “Mandrake” não perde em comparação com os trabalhos mais recentes do Maiden, ainda que seja difícil não sentir falta dos baixos cavalgantes de Steve Harris no início de “Resurrection Men”. Trata-se, porém, de uma das canções mais “diferentes” aqui, com seus violões corridos e ritmos mais palatáveis (além de contar com Bruce tocando bongôs). O mesmo pode ser dito de “Fingers in the Wounds”, com suas linhas de piano contribuindo para que seja uma das faixas mais pop no disco. É quase o completo contrário da intricada “Eternity Has Failed”, que conta com percussão quase tribal e uma intrigante flauta para se tornar o mais imersivo corte do álbum – a música, inclusive, inclui arranjos de bateria bastante interessantes do músico Dave Moreno, bem como a participação do guitarrista Gus G, ex-integrante de apoio de Ozzy Osbourne.
O trecho final do álbum conta com faixas fortes, mas que variam menos entre si. “Mistress of Mercy” é uma das mais aceleradas no álbum, e se vale de um refrão daqueles que remontam a “Powerslave” (1984). Já a “balada” do disco, “Face In The Mirror”, é bonita, mas talvez seja a menos memorável no tracklist – é fácil imaginar ouvintes pulando direto para a climática “Shadow Of The Gods”, soturna em seu arranjo de teclas, e muito mais instigante em suas mudanças de andamento e efeitos vocais ao longo de seus 7 minutos de duração. Trata-se de uma das canções mais recentes do repertório, e as influências de sons mais modernos são difíceis de ignorar. Não deixa de ser interessante, portanto, que o fechamento do álbum fique a cargo de uma de suas canções mais antigas: “Sonata (Immortal Beloved)” data do período de preparação que antecedeu “The Chemical Wedding”, ainda que a roupagem dada aqui não a faça soar presa ao contexto no qual foi originalmente concebida. Uma das mais longas composições encontradas aqui – com quase 10 minutos de duração – também ajuda Dickinson a flexionar sua veia teatral como poucas vezes nas últimas décadas, finalizando o trabalho de maneira ao mesmo tempo catártica e intimista.
Visto de modo isolado, é simples constatar a beleza de “The Mandrake Project” e o incluir em meio ao que Bruce fez de melhor enquanto artista solo. Longe de angariar o nível de hype normalmente destinado àquilo lançado por sua banda principal, ou mesmo a polêmica com a qual alguns de seus projetos anteriores foram agraciados – tal como o disco “Skunkworks”, produzido por Jack Endino (“Imagina só você receber uma ligação do Bruce Dickinson”, relembrou o produtor aqui no Scream & Yell) em 1996 e (mau-)entendido como uma tentativa de se aproximar do público alternativo – é um bom álbum com uma grande quantidade de bons momentos, apesar de um ou outro menos memorável, e traz um cantor ainda cheio de vitalidade e capaz de construir verdadeiros épicos por meio de sua marcante voz. Mais do que manter o padrão de qualidade do qual Dickinson passou a ser sinônimo junto ao seu fiel e gigantesco público, é um disco que faz refletir sobre o potencial criativo que seu principal autor é capaz de canalizar em seus projetos individuais, há muito postos de lado. Se ao lado do Maiden o frontman vêm alinhando turnês dedicadas ao material mais reverenciado do sexteto com material novo bissexto (o último, o competente “Senjutsu”, chegou ao público em 2021), “The Mandrake Project” traz evidências de sobra dos altos vôos (sem trocadilho) que o vocalista é capaz de alcançar com as circunstâncias e os colaboradores certos; sua nova turnê, que passa pelo Brasil entre Abril e Maio, e promete alternar sucessos antigos com o novo material, deve ser uma oportunidade de testemunhar Bruce em sua melhor forma. Que venham mais trabalhos assim no futuro que se aproxima – Bruce Dickinson permanece pronto para anunciar a chegada dos dias que virão, e sua voz seguirá soando, potente e incessante como uma sirene.
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.