texto por Marcelo Costa
fotos por Fernando Yokota
Após dez dias perambulando encantada por seis capitais brasileiras, afirmação que ela fará no final deste show, a Madeleine Peyroux que chega a São Paulo está muito mais leve e menos política do que aquela que espezinhou divertidamente Donald Trump neste mesmo Teatro do Bradesco, seis anos atrás. Ela segue misturando português e inglês de maneira fofa enquanto apresenta as canções e, desta vez, vêm acompanhada de Andy Ezrin nos teclados, Barak Mori no baixo e Graham Hawthorne na bateria, um trio afiadíssimo.
Ela é a primeira a entrar em cena, e já chega apresentando em português: “A primeira música chama-se ‘Divertir-se na Vida”, e “(Getting Some) Fun Out of Life”, de seu disco de estreia, “Dreamland” (1996), que costumamente abre todos os seus shows, já chega dando o clima da noite, com um fio de som delicioso saindo do palco e um público respeitoso num silêncio impressionante (que, inclusive, impressionará Madeleine a ponto dela elogiar a audiência dizendo que “ama o silêncio”) ouvindo tudo de maneira respeitosa e apaixonada.
“Don’t Cry Baby”, de Bessie Smith, é a primeira do multiplatinado “Careless Love” a pintar no set (o disco mais conhecido de Madeleine dá nome a essa turnê de sucessos, “Careless Love Forever”), e basta um solo de baixo de Barak para a audiência cair de joelhos. “Bare Bones”, seu disco totalmente autoral de 2009, é representado por “Our Lady Of Pigalle” e, na sequência, Peyroux repete uma anedota que sempre conta nos shows: “Eu canto três tipos de música: canções de amor, canções de blues e canções para beber. Essa próxima música é as três ao mesmo tempo”. Em 2017 a escolhida havia sido “Guilty”, e desta vez a canção ébria do repertório é “Between the Bars”, a cover festejada de Ellioth Smith (outra de “Careless Love”).
O público nem se recupera e ela já emenda: “A próxima canção se chama ‘Dance comigo até o fim do amor’”, e, em meio a gritos da plateia, a cover de Leonard Cohen que chamou a atenção do público para Madeleine (mais uma de “Careless Love”) surge galopante, emocionante, bela, e traz consigo outra do bardo canadense, “Half the Perfect World”, canção que Cohen escreveu para o disco solo de sua backing vocal e extensa colaboradora, Anjani Thomas – e que dá nome ao quarto álbum de Madeleine, lançado em 2006.
O palco, despido de qualquer adereço cênico, é a antítese da Sphere, que tomou conta do noticiário pop nos últimos dias: aqui só há espaço para a música. E Madeleine então anuncia que irá mostrar três números novos, que estarão em seu novo disco, a ser lançado em 2024. Ela apresenta as três canções em português “Como Eu Desejo” (“How I Wish”), “Encontrar o Amor Verdadeiro” (“Find True Love”) e “Blues do Paraíso” (“Paradise Blues”) e o que chama a atenção é a passagem de Andy Ezrin do piano para o teclado Yamaha, com o instrumento ganhando destaque nas novas canções e deixando uma curiosidade pelo que vem por aí.
O trio que junta “On a Sunday Afternoon”, do álbum “Anthem” (2019), “I Hear Music” e “Lonesome Road” (as duas últimas de “Careless Love”) deixa o show mais alegre e festivo, com Madeleine se divertindo e fazendo farra durante o solo de seus amigos. Seguem-se “There’ll Be Some Changes Made”, a aplaudidíssima “J’ai Deux Amours” e “Don’t Wait Too Long”, que deixam os fãs do disco “Careless Love” no modo flutuar. Impagável, Madeleine conta: “A próxima canção eu fiz… para uma abelha. Eu ia tocar e ela ficava bizzzzzzzzzzz. Eu parava e ia recomeçar e ela bizzzzzzzzzzzz. Disse pra ela: ‘Vamos fazer uma parceria então’. E assim nasceu a deliciosa “Honey Party”, outra do disco “Anthem”.
A faixa que dá título a seu álbum mais famoso, “Careless Love”, é última do set e é apresentada como uma canção muita antiga (com quase 100 anos: de 1925) e surge num arranjo empolgante, com um crescendo poderoso. De pé, as 1500 pessoas que lotaram o Teatro Bradesco e permaneceram em silêncio durante todo o show, saúdam o quarteto, e Madeleine diz que espera que nós aprovemos as escolhas dela para bis, e “Samba do Avião” e “Água de Beber” emocionam a plateia, cantadas em um ótimo português de gringa, que raramente consegue falar os “ão” das letras, mas, ainda assim, emocionam.
O show acaba, mas deixa a certeza de que a música ao vivo segue imbatível em seu poder incomensurável de contagiar corações. Durante quase uma hora e quarenta e cinco minutos, Madeleine e sua banda se apoiaram em instrumentos como violão, baixolão (tocando com arco de violino em alguns momentos), bateria, piano, teclados e voz para recuperar canções perdidas no tempo tanto quanto para mostrar músicas que ainda vão chegar oficialmente. Entre os dois polos, jazz, blues, folk, rock e canções para encher a cara tocadas com paixão e devoção, uma sonoridade diminuta que, porém, se amplifica dentro da alma.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br/