Ao vivo em São Paulo, Madeleine Peyroux distribui bom humor, cutucadas em Donald Trump e música maravilhosa

texto por Marcelo Costa
fotos por Liliane Callegari

“Muito obrigado por nos receber em sua cidade espantosa”, saudou Madeleine Peyroux em um português charmoso logo após cantar “Summer Wind”, clássico imortalizado por Frank Sinatra e regravado por Madeleine em 2006 no álbum “Half the Perfect World”, na abertura do sexto show de sua turnê brasileira 2017, o segundo consecutivo em São Paulo (após duas datas no Rio de Janeiro, uma em Porto Alegre e outra Brasília – e antes de Curitiba e Belo Horizonte, onde ela encerra a tour nacional) numa segunda-feira de manifestações (contra a PEC 181) que congestionaram a cidade no começo da noite.

Nada mais oportuno, então, que a primeira parte do show de Madeleine em São Paulo fosse amplamente politizada. “Todos nós somos de lugares diferentes”, contou apontando para o guitarrista Jon Herington e o baixista Barak Mori, “e nos encontramos em Nova York… e tem uma pessoa que nasceu em Nova York que está nos dando uma enorme dor de cabeça”, disse tentando tirar a culpa da cidade por seu filho mimado. A citação puxa a canção “Hello Babe”, um delicioso blues dos anos 30 composto por Lil Green e Kansas Joe McCoy (e gravado pelo primeiro) que (para delírio do público) traz Madeleine simulando uma conversa ao telefone com um Donald Trump do outro lado que ela odeia – suas caretas são divertidíssimas.

“Hello Babe” é um dos hinos seculares que compõe “Secular Hymns” (2016), que Madeleine gravou com Jon e Barak numa pequena igreja do século 12 na Inglaterra. A opção pelo intimismo do formato trio despe o show de grandiosidade e entrega delicadeza e charme, e ainda que o disco tenha sido gravado numa pequena capela com capacidade para 200 pessoas, seu repertório funciona em um grande espaço, como o Teatro Bradesco, em São Paulo, e seus quase 1.500 assentos, muito pelo tom respeitoso do público, que não cedeu a Madeleine nem quando ela provocou-o balançando as pernas na cadeira em meio a “um número alegre… o único do show”, segundo ela mesma, a deliciosa cover de “Getting Better”, dos Beatles.

Um pouco mais “recente”, de 1985, a belíssima “Tango Till They’re Sore”, do clássico álbum “Rain Dogs”, de Tom Waits, é antecedida por mais uma espetada política (com Madeleine sempre falando em português): “A próxima música é para aqueles que não se sentem representados por seus governantes, para você que está só”. No Rio de Janeiro rolou coro de #ForaTemer, mas São Paulo sorriu amarelo. Impagável, ela continuou (repetindo uma “anedota” que sempre conta em seus shows): “Eu só canto três tipos de música: jazz, blues e músicas para beber. Essa próxima é tudo isso junto”, confidencia, e “Guilty”, de Randy Newman, entorpece a audiência com álcool, cocaína e tristeza. Logo depois, “If the Sea Was Whiskey”, de Willie Dixon, mantém a temática.

Os músicos então a deixam sozinha no palco e ela emenda ao violão Joséphine Baker (“J’ai Deux Amours”), Bessie Smith (“Hop Scop Blues”) e Patti Smith (a canção tradicional “Tramplin’”) encerrando o solo de maneira deliciosa: “Sou uma mendiga tentando fazer do céu minha casa em New Orleans, em Paris, no Brooklyn… ou em São Paulo”. Os músicos voltam em “A Good Man Is Hard To Find” e seguem-se uma canção para as mulheres (“Shout, Sister, Shout!”, de Sister Rosetta Tharpe), outra para os homens (“Everythin’ I Do Gohn Be Funky, From Now On”, de Allen Tousaint) e um set de canções de amor com “Careless Love”, “No Soy de Aquí”, do argentino Facundo Cabral, e as bossas brasileiras “Corcovado” e “Água de Beber”. No final, claro, sua maravilhosa cover para “Dance Me To The End of Love”, de Leonard Cohen.

O trio então se prepara para deixar o palco e os 1500 ocupantes do teatro ficam de pé, reverenciando Madeleine, que  cumpre o protocolo de sair de cena e voltar atendendo ao pedido de bis da plateia. “Me desculpem por eu não falar português”, ela diz em inglês após ter explicado quase todas as canções da noite em português. “É sério, eu não falo português! Eu estava lendo”, desculpa-se sorridente mostrando a “colinha”. Com o teatro de pé, ela despede-se emocionada: “O mundo está muito difícil, tudo, mas a música é o paraíso para mim”, e saca Billie Holiday da cartola: “When I hear them say / There’s better living / Let them go their way / To that new living / I won’t ever stray / ‘Cause this is heaven to me”. Um belo final para uma bela noite.

– Marcelo Costa (@screamyell) edita o Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
– Liliane Callegari (@licallegari) é fotógrafa e arquiteta. Site oficial: http://lilianecallegari.com.br

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