Entrevista: “Entendi que era possível falar da televisão usando as melhores ferramentas do jornalismo”, diz Mauricio Stycer

entrevista por Leonardo Vinhas

No jornalismo brasileiro, Mauricio Stycer é um dos poucos a tratar a televisão como objeto de seu trabalho. Cabe esclarecer que estamos falando da acepção mais essencial da palavra, que diz respeito à investigação e apuração, porque gente repercutindo lançamentos, “noticiando” fofocas e capitalizando em cima de polêmicas tem bastante. Além disso, Stycer escreve vários artigos e pensatas sobre seu objeto de estudo, sempre sem cair nas armadilhas fáceis do pedantismo ou elitismo. Ao contrário: examina de perto a programação de apelo popular, com o mesmo olhar cuidadoso que dedicada a produtos esquecidos da TV a cabo ou à máquina de parir programas dos streamings.

Diante disso, é seguro recomendar os livros que escreveu sobre personagens desse universo. “Adeus, Controle Remoto – Uma crônica do fim da TV como a conhecemos” (Arquipélago Editorial, 2016) flagrou instantâneos da migração do modelo televisivo para o streaming, enquanto “Topa Tudo por Dinheiro: As muitas faces do empresário Silvio Santos” (Todavia, 2018) examinou de perto as relações do apresentador e empresário com os altos escalões do poder. E, mais recentemente, chegou às livrarias “O Homem do Sapato Branco: a vida do inventor do mundo cão na televisão brasileira” (também pela Todavia, 2023).

O livro examina a história do repórter e apresentador Jacinto Figueira Júnior, que criou para si o personagem que dá título ao livro, e que alcançou grande popularidade com programas sensacionalistas na TV brasileira ao longo dos anos 1960. A carreira de Jacinto continuaria pelas décadas seguintes, com cada vez menos sucesso popular, até o personagem e seu intérprete sucumbirem ao ostracismo, ao ressentimento e à péssima administração de suas finanças. Mas antes disso acontecer, houve um mandato como deputado, a cassação pelo governo militar, as tentativas de ressurreição de sua carreira e dezenas de “filhotes”, que extrapolaram a ideia de transformar crime, sofrimento, bizarrices e humilhação em matéria de entretenimento sensacionalista.

O livro serviu de pretexto para uma conversa vespertina com seu autor, na qual não se falou apenas da obra mais recente, mas também do retrospecto de sua carreira. Mauricio Stycer sempre quis ser jornalista na área cultural. Passou pelos cadernos de cultura do Jornal do Brasil, Estadão e Folha – isso nos anos 1980, época em que essas publicações eram a referência maior na crítica e cobertura cultural. Também esteve à frente de editorias de Turismo e Cidades, comandou grande parte da equipe do diário esportivo Lance, foi repórter especial, correspondente em Roma e editor de cultura. Só em 2008 começou a atuar na crônica televisiva, em um blog que tinha no hoje extinto portal iG. Nesses 15 anos, Stycer fixou-se como o nome mais interessante a analisar e pensar a TV brasileira na grande mídia. Por isso, vem comigo que o papo é bom!

Você é jornalista de TV, não psicólogo (risos), mas essa é uma pergunta que faço pra você como jornalista que se debruça sobre o tema: o espectador brasileiro é sádico?
Acho que não é exclusivo do brasileiro, não. É uma coisa da natureza humana mesmo, esse gosto pelo bizarro. Tem uma coisa meio atávica que é o lance de curtir ver a miséria alheia, ver o outro se ferrar. Não estou dizendo que seja algo bom, mas que é da natureza humana. A prova mais explícita disso é quando você está na numa estrada e tem congestionamento porquê do outro lado da pista tem um carro parado. Você nem sabe o que aconteceu, às vezes não aconteceu nada, mas o que acaba rolando é que todo mundo começa a diminuir a velocidade para ver o que aconteceu. E quando você ultrapassa aquilo, sente uma raiva, que é uma raiva de você mesmo também, que estava curioso para saber o que estava acontecendo ali. Isso não é só no Brasil, a apelação não é um privilégio brasileiro, as ferramentas usadas para atrair a audiência não são exclusivas do brasileiro. Esses programas lidam muito com o medo, porque provocar medo gera interesse, um certo tipo de satisfação também.

A TV brasileira sempre bebeu muito nos formatos criados pelas emissoras de outros países, especialmente dos Estados Unidos e da Itália. Sei que foi muito difícil achar material mais antigo sobre o Jacinto, mas ainda assim, queria saber se ele foi, de fato, pioneiro nesse formato mais popularesco de TV como ele gostava de dizer, ou se também copiou os modelos estrangeiros.
É difícil dizer. Eu o trato como pioneiro usando uma autodeclaração do próprio Jacinto. Quando ele assiste ao filme “Mondo Cane” (1962), ele fala: “Pô, eu que fiz isso”. Ele se identifica com o filme. Não lembro a frase em sua literalidade, mas ele diz algo como “eu que inventei o mundo cão”. Acredito que ele foi um dos primeiros, mas não o primeiro. Acho que cabe até uma escavação arqueológica de quem teria sido o primeiro. Olha o caso do Chuck Barris (nota: autor de “Confissões de uma Mente Perigosa”, ex-executivo e apresentador de TV, autor do hit “Palisades Park” e mitomaníaco consumado). O cara inventou o formato do “Namoro na TV”, inventou o “Show de Calouros”, mas o Ary Barroso já tinha feito isso de usar um gongo no rádio, depois o Chacrinha pegou isso dele. Isso tudo nos anos 1950! Os programas do Chuck Barris surgiram nos anos 1960. Então realmente é difícil precisar um pioneiro. E acredito que sempre existe uma confluência de gente pensando coisas parecidas em diferentes lugares, sabe? Gente que está descobrindo as ferramentas que a televisão oferece, que são específicas do meio e diferentes do cinema, por exemplo. Essa sua pergunta é difícil, mas levanta uma boa discussão sobre essa confluência de gente louca, com a cabeça a mil, pensando em coisas que podem ser feitas em novos formatos.

A televisão sempre se propôs a ser veículo de massa. Muitas coisas entram pra história como programas cult, claro, mas nada é feito pensando em virar cult. Seja como for, sempre que um programa de TV cumpre seu objetivo de falar com a massa, ele já ganha o olhar enviesado da maior parte da imprensa e do meio acadêmico. Seus dois últimos livros tratam de personagens extremamente populares, Silvio Santos e Jacinto Figueira Junior, nomes sobre quem tinha se escrito muito pouco, ou quase nada mesmo. Então acho que ainda temos aquela coisa da classe média ter uma certa soberba, uma dissimulação no que diz respeito à TV. Aquele lance de “eu estava passando pela sala”, “a empregada estava assistindo” (risos).
O Jacinto estava embaixo do tapete, sabe? O que ele fez é tratado como uma coisa menor, que não presta, mas aquilo existiu, gerou filhotes, teve influência, teve impacto, a audiência era enorme… Quando você olha isso tendo passado tantos anos, vê que ninguém mais fala dele, que ninguém conhece direito a história dele. Já o Silvio é incontornável. Mas ainda assim, existe um certo preconceito, uma vontade de não falar de nada disso. Eu mesmo tive dúvida, hesitei se fazia sentido fazer o livro. Mas quando eu mergulhei mesmo, fiquei três meses lendo jornais dos anos 1960, vendo os poucos vídeos disponíveis, eu vi que tinha que contar essa história, entendeu?

Uma coisa que me intriga muito é que o seu objeto de investigação foi um cara popular, extremamente popular, durante alguns anos, e depois caiu no esquecimento. A televisão atrai tanta gente para ela, em grande parte, pela fama que ela proporciona, pela notoriedade, pela validação que vem com isso tudo, etc. Mas a coisa toda pode ser transitória, efêmera até. Quem hoje lembra do Bolinha, por exemplo, e de tantos outros? A TV é, de alguma forma, cruel com seus ídolos, ou essa voracidade e fugacidade são parte do funcionamento dela?
Eu não sei se é a televisão ou a própria indústria cultural. Na indústria cultural, esses ciclos são muito intensos, e existe essa permanente busca do novo pela novidade em si, né? Veja que, quando o Jacinto retoma em 1979 para fazer o mesmo programa que ele fazia nos anos 60, já não é mais algo novo, tem coisas no ar que são versões melhoradas do que ele já tinha feito. O próprio Jacinto se toca disso, ele começa a reclamar dos imitadores, ele tem essa constatação de que foi superado por pessoas que faziam coisas parecidas. E isso não é restrito à televisão popular. Na música, que você acompanha bem, você tem a indústria da música pop que também é voraz. Poucos conseguem se reciclar. Eu tenho citado muito o caso do Ratinho como um exemplo de quem consegue isso. Ele era um cara que começou na linha do Jacinto, com cassetete na mão, mas em dado momento, alguém falou para ele que ele era bom em fazer os outros rir – não lembro quem disse isso para ele. E aí ele se vira para o entretenimento, e está aí na televisão há mais de 30 anos. Essa guinada dele foi bem aceita pelo público, pela emissora. Mas casos como o dele não são frequentes. O interesse das pessoas diminui muito, alguns poucos têm um carisma especial, como o Silvio Santos, que tem algo inexplicável, as pessoas acham graça se divertem com ele da mesma forma há anos, sem perder o viço, continuando a causar polêmica, a atrair audiência. Nunca precisou se reciclar: ele mudava os quadros, mas na real, ele fazia sempre a mesma coisa. Mas ele é um caso excepcional.

No documentário “Eu Sou Carlos Imperial”, o [biógrafo] Denilson Monteiro fala que hoje, com tecnologia móvel e afins, o Imperial teria um alcance ainda muito maior do que teve…
Ele era uma máquina de criar boatos, né? Fake news mesmo.

Sim. E é um exercício interessante pensar como esses caras, que foram muito populares quando não existiam tantas ferramentas tecnológicas, lidariam hoje com os recursos à disposição. Pensando nisso, você acha que o Jacinto seria um cara que talvez tivesse até mais repercussão?
É provável. Realmente provável. É só olhar os tipos que floresceram durante esse período – vamos chamar de revolução tecnológica, do jornalismo digital, da multiplicação de formas de expressão. Olha essas plataformas de vídeos curtos, elas são uma loucura! Todo mundo faz igual ao Tik Tok, o YouTube tem os Shorts, o Instagram tem o Reels … Tudo isso é linguagem rápida, para causar impacto instantâneo, e que viraliza e é esquecido 30 segundos depois. O Jacinto encarnou um personagem mesmo, ele gostava desse personagem que ele representava, e isso é uma coisa muito de rede social. Muitos dos que se dão bem nas redes sociais são gente que constrói um bom personagem, é seguem fieis a esse personagem, sem tirar a fantasia. No caso dele, ele vinha com um discurso muitas vezes moralista, preconceituoso, com palavras ofensivas. Ele certamente encontraria um nicho, não sei de que tamanho, mas teria esse nicho para se tornar poderoso e ficar à vontade ali.

Como começou essa história de ter a TV como foco do seu trabalho? Você tinha passado por vários veículos e só começou a escrever sobre TV quando estava no iG, como repórter especial, não cobria. O que te levou a esse caminho?
Na época, lá por 2008, tinha essa coisa de blog. Todo mundo no iG tinha blog, só eu que não. Aí fizeram um blog pra mim (risos). No meu tempo livre, eu ia ver filme, peça de teatro, exposição, assistia TV, e falava dessas coisas no blog. Os posts de televisão bombavam! O Twitter estava começando a ganhar importância no Brasil, e o iG me colocou naquela rede social. Eu comecei a achar muito interessante essa coisa de que estava rolando um programa na TV e aí tinha 50 pessoas falando ao mesmo tempo no Twitter. Fiquei fascinado mesmo por aquilo, e aí eu comecei a escrever mais sobre televisão, até que em 2010 fui para o UOL. já com a ideia de que a televisão era uma coisa muito importante, com um mercado interessante pra trabalhar como jornalista. Não tinha muita gente escrevendo daquela forma que eu escrevia, e meus textos iam despertando interesse, gerando repercussão. As pessoas discutiam, respondiam, criticavam. Acabei desenvolvendo um nicho em especial, que foram os reality shows. Enfim, entendi que era possível escrever sobre televisão usando as melhores ferramentas do jornalismo. Não precisava fazer um negócio de puxação de saco, de promoção de celebridade, eu podia tentar entender televisão na sua base: o que está por trás, como ela é feita. Talvez seja um pouco de presunção da minha parte, mas eu achei que estava conseguindo dialogar com algumas pessoas da televisão, como se elas tivessem querendo ter um interlocutor do outro lado, sabe? Era como se eu, de alguma maneira, preenchesse algum tipo de vazio. Parecia que precisava existir uma discussão, ter alguém que, mesmo que falasse mal, olhasse aquilo de forma séria e respeitosa, falando mal de todo mundo democraticamente (risos).

Então, de certa forma, foi uma coisa meio intuitiva.
Bastante. Eu gostei, me senti muito à vontade fazendo, e acho que deu certo.

Nesse caminho, não foram poucas as vezes que vimos alguns nomes da TV te criticarem publicamente, quando não comprarem briga mesmo. De Walcyr Carrasco a Tiago Leifert, muita gente se incomodou com artigos e reportagens que você fez. O outro lado nunca aconteceu, de você receber um feedback positivo? Porque há pouco você falou que parecia que tinha gente da indústria que encontrou no seu trabalho algo que preenchia uma lacuna que eles mesmos identificavam.
Teve sim, e esse foi um dos maiores prazeres que eu tive e ainda tenho. Em diferentes subcategorias da profissão, tem gente que curte essa discussão que eu proporciono: atores, roteiristas, diretores, eventualmente até executivos. É gente que entende que ali, no meu espaço editorial, existe um canal para discutir ideias. Mas são reconhecimentos que quase sempre acontecem por mensagem privada. Tem muito pouca manifestação pública. Manifestação pública de ódio tem muita, né? (risos) Vários casos. Até tem quem vai pro Twitter ou Facebook reclamar de mim, falar que eu sou pago para falar mal, umas coisas assim (risos). Mas elogios são internos. Às vezes, a própria pessoa que é tema de artigo comenta, diz que foi uma coisa respeitosa, mas quase tudo em privado.

Pra fechar, queria te perguntar sobre uma situação que não se manifesta apenas na TV, mas em toda a indústria cultural, que é a falta de memória histórica e a falta de referências sobre o que veio antes. Seu livro trata de um personagem que ou criou ou ajudou a popularizar vários formatos de programas televisivos, e morreu esquecido, estava praticamente num limbo antes do seu livro ser publicado. Quais os efeitos dessa falta de memória, desse desapego ao passado?
Não vejo nenhum efeito positivo. Pra mim, a memória é uma coisa básica pro conhecimento; Conhecimento sem memória é algo empobrecido, ela é uma ferramenta essencial pra gente poder entender o presente e discutir o que pode vir pela frente. Se você está vendo um filme e não tem conhecimento que aquilo ali é uma repetição de algo que foi feito 20 anos atrás, a fruição é diferente de quem tem essa referência. Com a memória, você consegue dialogar melhor com os produtos culturais, e pra isso é preciso ter algum conhecimento da história daquele gênero ou daquele tipo de produto. É empobrecedor você abrir mão desse conhecimento histórico. No meu caso em particular, eu descobri na última década que tenho um grande prazer em pesquisar. Eu sempre gostei de saber dos antecedentes das coisas que eu gosto, mas descobri um prazer enorme nesse tipo de trabalho. As ferramentas para se fazer isso são muito melhores também, há menos justificativas hoje para você ignorar a história, sabe? A revolução digital facilitou muita coisa pra quem quer conhecer o passado. O que existe hoje é um pouco de preguiça, talvez até por parte do jornalismo cultural, às vezes, em não querer explicar o contexto das coisas.

– Leonardo Vinhas é jornalista, escritor e produtor cultural. Colabora com o Scream & Yell desde 2000, onde também assina a coluna Conexão Latina. É também colaborador eventual dos sites Music Non Stop (Brasil) e Zona de Obras (Espanha). A foto que abre o texto é de Renato Parada / Divulgação

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