MEU DISCO FAVORITO DE 2022 #3
“Moacir de Todos os Santos”, Letieres Leite & Orquestra Rumpilezz
escolha de Marco Antonio Barbosa
Artista – Letieres Leite & Orquestra Rumpilezz
Álbum – “Moacir de Todos os Santos”
Lançamento – 19/05/2022
Selo – Rocinante
Ouça: Spotify / Youtube
Em outubro de 2021, o Brasil teve o menor número de mortes por Covid-19 desde que a pandemia foi considerada uma emergência nacional de saúde pelo governo. No entanto, a doença ainda matou cerca de 11 mil brasileiros naquele mês. Entre eles, estava um baiano de 61 chamado Letieres dos Santos Leite. Em meio a tantas tragédias cotidianas, a comoção pelo falecimento se restringiu aos (relativamente) poucos conhecedores de sua obra e de sua importância como músico, professor e agitador cultural.
Letieres não pôde ver a recepção que seu último disco, “Moacir de Todos os Santos”, gravado com a Orquestra Rumpilezz, mereceu. O álbum foi gravado aos trancos & barrancos, durante a pior fase da pandemia. O maestro chegou a ouvir o resultado final pouco antes de morrer, mas não resistiu até o lançamento, em maio de 2022.
Mais que um testamento ou um epitáfio, “Moacir de Todos os Santos” é uma celebração do vigor de Letieres como arranjador e band-leader; da exuberância sonora da Rumpilezz, um coletivo de 21 músicos (mais Letieres na flauta); e da importância da obra de Moacir Santos (1926-2006). O LP repassa sete (das 10) “Coisas” compostas por Santos, lançadas originalmente no disco homônimo de 1965. Como Letieres, Moacir também era nordestino, maestro, arranjador, e mais cultuado do que efetivamente ouvido.
O último álbum de Letieres Leite ainda celebra, acima de tudo, as possibilidades da música brasileira, que pode ser jazz, latina, africana, caribenha, rústica e sofisticada ao mesmo tempo. Se nos anos 1960 Santos pretendia universalizar a música brasileira, Letieres & Rumpilezz provam que o universo todo cabe aqui. Rearranjadas por Letieres “de cabeça”, sem consultar as partituras originais, as “Coisas” de Moacir Santos permanecem reconhecíveis mas ganham fluidez e groove percussivo.
Imagine uma trilha de filme noir passado a bordo de um navio negreiro, e lá está “Coisa nº4”. Imagine um sutil bailão latino, no meio do caminho entre a América Central e o Nordeste, e confira “Coisa nº9”. Imagine um elegíaco pôr do sol à beira-mar (em Havana, Salvador ou em Santa Mônica) e ouça a versão de “Coisa nº 8”. Imagine a gafieira mais elegante que já existiu, e nela a big band toca “Coisa nº7”. Imagine um Brasil com um cenário musical menos monolítico, e pense no sucesso que a versão de “Nanã”, com vocal de Caetano Veloso poderia fazer nos rádios e na TV.
Letieres Leite se despediu com o mais rico e empolgante de seus álbuns. Lamentável que tenha ido como foi; nunca saberemos se sua morte poderia ter sido evitada. Mas o disco tá aí, mostrando tudo que a música brasileira pode ser. Não é um álbum que pertence a 1965 ou a 2022, à Hollywood tropicalizada de Moacir ou à Bahia afro-contemporânea – está lá e cá, ao mesmo tempo.
– Marco Antonio Barbosa é jornalista (medium.com/telhado-de-vidro) e músico (http://borealis.art.br)