entrevista por Bruno Capelas
2022 tem sido um ano de reencontros no mundo da música – afinal, depois de duas longas temporadas em casa, público e artistas finalmente podem voltar a se ver. Em Porto Velho, Rondônia, porém, há um retorno ainda mais aguardado para acontecer: a volta do Festival Casarão. Realizado entre 2000 e 2014, o evento ajudou a formatar a cena local e trouxe artistas como Pato Fu, Cachorro Grande, Dead Fish e Emicida para se apresentarem pela primeira vez no Estado. Após um longo período de hibernação, provocado em boa parte pela retração dos editais desde meados da última década, o festival se prepara para uma edição especial em 2022 entre os dias 20 e 23 de maio.
Como se pode imaginar, não foi um retorno simples: inicialmente, o retorno do Casarão estava marcado para acontecer em 2020, quando o festival completaria 20 anos. Mas aí veio a pandemia… e a comemoração acabou ficando para depois – com uma escalação que une nomes de porte nacional, como Emicida, Rashid, Otto e Terno Rei, com talentos locais como Gabriê, Os Últimos, Distopia e Wari (uma das boas surpresas da edição de 2014), somando mais de 40 atrações.
Ao todo, serão quatro dias de shows no espaço de eventos Talismã 2, com capacidade para receber duas mil pessoas a cada dia. Destes, um terá entrada gratuita com a doação de 1 kg de alimento – em uma noite comandada pelo gaúcho Beto Bruno, ex-vocalista da Cachorro Grande, e com diversas bandas da região no cartaz. Além disso, o festival conta ainda com o apoio de dois editais, da Funarte e do Banco da Amazônia, o que dá esperanças à organização.
“Era para ser uma edição comemorativa, para contar a história do festival para uma geração que não viveu aqueles anos”, explica o diretor do festival, Vinicius Lemos. “Mas, com o adiamento, nós ganhamos os editais e, de repente, o Casarão virou algo que o meio cultural apoiou de novo”, afirma ele, que ainda não confirma se o festival terá um retorno em 2023… mas dá boas pistas na entrevista a seguir, em um papo animado com o Scream & Yell, que já esteve no Casarão quatro vezes: 2010, 2012, 2013 e 2014 (e retornará este ano!)
Na conversa, Vinicius conta mais da história do Festival Casarão e fala sobre a expectativa para o evento deste ano, além de fazer uma análise sobre a cena local e o legado da cena de festivais das últimas duas décadas no País. Além disso, ele também fala sobre como é ter uma vida dupla – hoje, além de organizar o Casarão, ele é professor de Direito e processualista respeitado no Brasil todo. Com a palavra, Vinicius Lemos.
O Festival Casarão nasceu nos anos 2000 e teve 15 edições até 2014. Pode parecer piada, mas a pergunta importante pra gente começar é “por que parou?”.
Fizemos o Casarão de forma ininterrupta entre 2000 a 2014, sempre com altos e baixos. Tudo começou com uma festa, que tinha como principal atração o local, um casarão na beira do Rio Madeira, num lugar que é de uma cidade que foi extinta, Santo Antônio do Madeira, um município rival de Porto Velho. Era um lugar bucólico, no meio do mato. Eu comecei a festa com 19 anos, enquanto era acadêmico de Direito. Durante a faculdade, eu não trabalhava, então eu fazia eventos, cheguei a trazer o IRA! para cá na turnê do “Isso é Amor”. E aí tinha uma coisa interessante: na época, quase todos os jovens de Porto Velho iam estudar fora. Se você quisesse fazer um curso bom, que não fosse Direito, você tinha que sair da cidade. Então existia um grupo de 500, mil pessoas, que iam estudar fora, e em julho elas voltavam para passar férias aqui, com uma outra cabeça, de gente que tava em todo canto do Brasil. Eu queria fazer uma festa para esse pessoal, e achei esse casarão. Na primeira festa, eu achei que só os meus amigos iriam, mas acabou dando 800 pessoas. Aos poucos, o Casarão foi se tornando uma festa no calendário da cidade. E aí com o boom da cena independente, ali em 2004, 2005, com bandas como Autoramas e Ludov aparecendo no VMB, a gente transformou a festa em festival. Ficamos uma década assim, mas com a crise do governo Dilma, a coisa foi piorando. O governo Dilma foi muito difícil para a cultura, especialmente quando a Ana de Hollanda assume a Funarte. Era outra visão da cultura, diferente do governo Lula, e a gente vai sendo asfixiado em editais, o festival foi minguando. Em 2013, a gente ganhou só o edital do Banco da Amazônia, que ajudou a segurar, mas em 2014 não rolou nada, e eu percebi que a gente não ia conseguir continuar. Fizemos uma edição mais enxuta para marcar os 15 anos, com artistas soltos, como o Nevilton, o Bruno Souto, o Jair Naves, mais o Los Porongas e o Descordantes do Acre, tentamos gastar o mínimo com passagem. A edição custou R$ 25 mil, não se pagou, mas funcionou. E em 2015, eu acabei começando o mestrado em Direito e decidi que só ia fazer o Casarão se rolasse um edital. E não rolou.
E o que te fez voltar com o festival em 2020?
Eu tenho dois filhos adolescentes, e eles nunca viveram o festival, mas sempre perguntavam do Casarão, quando iam voltar. Eles ficavam olhando minhas camisetas, eu tenho uma coleção de umas 50 camisetas do festival. E eu sempre dizia que o festival ia voltar quando fizesse 20 anos. Quando chegou em 2019, eu tinha acabado o doutorado, estava mais tranquilo, e comecei a fazer os planos com a minha esposa, que dividia a responsabilidade do festival comigo. Antes dela topar, ela perguntou que artistas eu queria trazer – e disse que ia topar se eles aceitassem tocar com a gente. E eu pensei de cara nos dois artistas que tem a aura do Casarão: o Emicida e o Dead Fish. O Emicida tinha vindo pra cá em 2011, e ele contou pra gente uma coisa legal: em 2007, o Casarão foi o primeiro festival que ele mandou um email. A gente não contratou na época porque a gente não tinha uma pegada rap, mas é isso, ele dizia que era um sonho dele tocar no Norte e o Casarão propiciou isso. Depois disso, eu fiquei muito amigo do Fióti, a gente foi curador da Funarte juntos em 2015, e decidi mandar um áudio pra ele. Lembro que eles estavam numa turnê pelo exterior, o Fióti falou assim: “olha, a gente tá num fuso horário meio trocado, vou ouvir o áudio e te falo, mas se for sobre o Casarão, a gente participa”. E não só isso: além do Emicida, vem também o Rashid. Já o Dead Fish foi a última banda a tocar no casarão histórico, lá atrás, e também tocaram aqui em 2011. E com eles foi a mesma coisa: mandei mensagem pro empresário e eles toparam na hora. Então começou a rolar o festival de 2020, que tinha como plano contar a nossa história. Ia ter um lineup de Rondônia atual, com artistas como a Gabriê, mas também com bandas que fizeram parte da nossa história, como o Wado, o Cassino Supernova, a Maria Melamanda, era para ser uma retrospectiva mesmo.
Essa edição comemorativa era para ter sido em maio de 2020, mas aí veio a pandemia…
E aí tudo mudou. Obviamente, tivemos que adiar o festival e aí o contexto começou a mudar. No final de 2020, nós nos inscrevemos no edital da Funarte e passamos entre os 24 festivais contemplados. Em 2021, com a indecisão da pandemia, entramos no edital do Banco da Amazônia. E aí o que era para ser uma comemoração, quase pessoal, virou algo que o meio cultural abraçou de novo. E se a gente não tinha apoio em 2014, conseguimos dois editais, além de vários apoios e permutas, fazendo o valor chegar a quase R$ 100 mil. E com isso a gente percebeu que tinha que mudar o espírito do festival, trocando por bandas mais atuais, como o Terno Rei e o Selvagens à Procura de Lei. Queremos continuar contando nossa história, mas também nos conectarmos com o novo, para talvez continuar no ano que vem. Eu não sei ainda qual é o futuro do Casarão, mas acho que temos tudo para continuar tendo apoio de editais, apoio da cena. Se o festival tivesse rolado em 2020, teria sido uma volta, mas dificilmente a gente teria feito outras edições, mesmo se fosse um sucesso de público.
Antes de falar mais do Casarão, Vinicius, eu queria entender um pouco sobre a tua história. Nas redes sociais, você fala do festival, mas também fala muito de Direito – é professor, tem livros publicados, doutorado… Como é que você concilia essas duas coisas?
Quando eu comecei o Casarão, como eu disse, eu tinha 19 anos. Nos primeiros anos, eu fazia o festival e conciliava com a minha carreira na advocacia. Eu me formei em 2003, sempre tive escritório, fui advogado, era advogado que atendia banco e tocava o festival. Durante muito tempo, eu era conhecido como o Vinicius do Casarão. Mas ao longo do tempo, as coisas mudaram: em 2010 eu comecei a dar aulas, e em 2012, virei conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) aqui em Rondônia. Hoje, eu sou doutor em Direito, tenho livros publicados, vendidos no País todo, dividi minha vida entre ser advogado, professor e acadêmico. Eu acabei de passar no concurso da Universidade Federal do Acre. Acabei invertendo a lógica: tenho 41 anos hoje, há 12 eu formo advogados, e percebi que hoje, a advocacia também me ajudou a abrir portas que eu não conseguia abrir antes. É um pouco essa a situação: eu tenho uma equipe hoje que toca o Casarão, mas não acho que eu vá voltar a ser o Vinicius do Casarão, foi uma transformação grande.
O Casarão tem uma coisa legal na escalação, ao juntar nomes da cena nacional com bandas locais. Que nomes locais você destaca na edição desse ano?
Tem três bandas que contam não só a história do Casarão, mas também do rock de Rondônia. A primeira é a Nitro, que tem 30 anos de história, já gravou com o Rick Bonadio e tocou em festivais como o Porão do Rock. Tem o Quilomboclada, que é o nosso Nação Zumbi, levando a linguagem da terra: se lá é o mangue, aqui é o quilombo, é a beira da beira do rio. E tem a Coveiros, que é uma mistura de Sepultura com Ratos de Porão, uma banda pesadíssima. Das bandas novas, eu destaco a Gabriê, que tem uma MPB numa vertente como a da Céu, e duas bandas pop daqui, a Distopia e Os Últimos. Além disso, tem os rappers: por conta do Rashid e do Emicida, a gente abriu um olhar para a cena rap daqui, trazendo caras como o F2, o O Flores, o Vinicius Mavi, que faz mais um trap. É uma tentativa de mesclar história e novidades.
No Brasil, diversos festivais ajudaram a formatar as cenas de suas cidades – e acho que Goiânia é um ótimo exemplo. Na sua visão, como o Casarão ajudou a cena de Rondônia?
É algo interessante: quando os festivais surgem com força, ali em meados dos anos 2000, eles viram a ponta de lança das cenas, você tem até a formação da Associação Brasileira de Festivais Independentes (Abrafin). Nesse começo, todo mundo queria tocar nos festivais, mas aí aconteceu um fenômeno aqui – e que imagino que tenha rolado em outras cidades também. Não dá para as mesmas bandas tocarem sempre nos mesmos festivais, tem que ter um rodízio… e além disso, muitas bandas começaram a sentir que não podiam fazer seus shows fora dos festivais. E aí chega uma hora que a cena começa a ir contra o festival. Eu ouvi muito, ao longo dos anos, que o Casarão não olhava para as bandas locais, só para as bandas de fora, em termos de prestígio do lineup. Mas tem isso: o que chama o público, muitas vezes, não é a banda local, mas sim a banda de fora. Quando a gente fez a penúltima edição do Casarão, rolou um manifesto das bandas daqui: elas tinham dito que o festival até tinha sido legal, mas não tinha dado destaque das bandas locais. E eu senti naquele momento que a cena estava me dizendo que não precisava mais do festival. Achei que era o momento do Casarão parar e alguém viria para substituir – uma percepção que também rolou com outros organizadores de festivais, como o pessoal do Varadouro. E aí o que aconteceu foi que até teve algo esporádico, mas ninguém fez algo que se fixou. Rolaram algumas iniciativas, shows como o Scalene e o Supercombo, mas o setor de eventos é um mercado difícil: você acerta uma, duas vezes, mas às vezes pode errar muito num evento só e ter um baita prejuízo. E sinto que todo mundo que criticava o Casarão sentiu falta desse diálogo.
E como você sente o clima agora com o retorno do festival?
Hoje, vejo que o Casarão está mais abraçado pela cena local, talvez porque muita gente entendeu que todo festival tem acertos e erros, mas que não ter o festival era pior. De tábua de salvação, a gente depois virou vidraça, mas agora essa volta está sendo legal. A ausência valorizou a marca Casarão – são oito anos sem festival, tem uma geração inteira que não viveu essa coisa de ter show de maneira constante. Espero que, se a gente for contemplado nos editais, a gente consiga fazer mais coisas, é uma das coisas mais legais de se fazer o Casarão. Tem muitos artistas que não teriam vindo até Rondônia se não fosse a gente – nomes como Dead Fish, Matanza, Ratos, Pato Fu, Emicida, são bandas que só vieram com a gente. E tem outra coisa: com a Lei Aldir Blanc, muitas bandas aprenderam a lidar com editais. Antes, eu era o único cara da cena de Rondônia, não só do rock, que olhava para isso – tanto que tinha gente que achava que eu tinha esquema, que saía viajando por aí com a grana dos editais, mas não. Agora, com a Aldir Blanc, as bandas foram chamadas para fazer CDs, lives, e isso é um aprendizado: tem que prestar contas, lidar com imprevistos, saber escrever uma proposta. É um amadurecimento, e isso é muito importante para a cena como um todo.
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e é autor de “Raios e Trovões – A história do fenômeno Castelo Rá-Tim-Bum”, editado pela Summus Editorial. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.
Leia também:
– Assista a 15 vídeos do Festival Casarão 2014, por Marcelo Costa (aqui)
– Balanço: os destaques do Festival Casarão 2013, por Marcelo Costa (aqui)
– Balanço: os destaques do Festival Casarão 2012, por Marcelo Costa (aqui)
– Balanço: os destaques do Festival Casarão 2010, por Tiago Agostini (aqui)
Essa entrevista é sensacional. Recentemente rolou uma polêmica com o se rasgum, um festival de Belém
Que irá ter uma edição em Paris. Tanta mensagem raivosa. E as respostas aqui poderiam ser aplicadas lá.
Marcelo Damaso, do Se Rasgum, esclarece que “Não será uma edição do festival em Paris, mas sim uma turnê feita pela Se Rasgum, com 13 datas na Europa, com Os Amantes, Lucas Estrela & Strobo”.