texto por Homero Pivotto Jr.
“O rock é minha religião”, dizem alguns. Quem nunca ouviu isso daquele rockista ‘abençoado’, pronto pra ungir incautos com verdades incontestáveis sobre o gênero? O problema é que esse dogmatismo que beira o sacro tende a afastar novas ovelhas do rebanho. Porque né, quando se é jovem, a gente não quer que nos digam o que e como fazer as coisas. E o rock — ao menos pra mim — foi meio que a personificação da rebeldia, de não aceitar o que dizem ser assim ou assado, de contestar, de questionar. Ele conseguiu se conectar comigo, mostrar que havia possibilidades (algo que, em determinadas fases da vida, os coroas não conseguem). Só que, atualmente, o estilo parece ter se tornado o tiozão do Led (nada contra a banda, ressalte-se) que adora pregar como o passado foi glorioso e o presente é apocalíptico para esse tipo de som. É uma cobrança carola de regras e posturas que até parece embasada por algum livro sagrado. Mas se o rock é libertador (para este pai de família que vos escreve foi o que ele significou), porque tanta doutrina? O mundo mudou, as pessoas não são as mesmas de ontem, os tempos são outros e o contexto da porra toda se modifica mais rápido que uma audição de “You Suffer” do Napalm Death. Esse conservadorismo não tem sentido e afasta a possibilidade de identificação que fideliza um amante do gênero desde a adolescência.
O rock, assim como as divindades que regem crenças de quem frequenta igrejas, não morre. Há ciclos em que tá na graça do povo, e outros em que amarga um inferno astral. Isso é normal. Perigo mesmo é a interpretação que parcela considerável de seus seguidores fazem daquilo que ele representa. Isso tem o tornado, cada vez mais, um ser superior inacessível. As novas gerações não gostam dessa cagação de lei e não se sentem cativadas. Sim, é possível ser roqueiro e gostar de outras sonoridades. Esse lance xiita de que é preciso um monoteísmo musical para ser trOO é um mau espírito que acompanha o rock. E, veja bem irmão: já fui desses que intima galera mais nova com camisa de banda pra ver se são dignos de vestir tal manto. Mas eu tô me regenerando. Ainda me incomoda um pouco ver gente com peita do Ramones sem conhecer os fast four, mas trabalho com fé pra superar isso. Esses comportamentos de medir o grau de rockismo do outro são trouxas e geram antipatia. Vá de retro!
Com o mundo na ponta dos dedos, porque, em nome de g-zus, a criatura precisa ser devota apenas ao rock? Ela pode apreciar outros sonoridades sim! Se o deus do rock tá vendo não interessa. A eucaristia roquística deve acolher a todos os que quiserem partilhar dela, mesmo que a comunhão ocorra sem tanta frequência. A bolha das redes sociais já é suficiente para que vivamos ensimesmados em uma espécie de seita que reza a cartilha das afinidades e condena as diferenças. A arte, e o gosto por ela, devem ser livres.
No primeiro episódio d’O Ben par todo mal, o Jão (guitarrista do Ratos de Porão) diz que os pais têm mesmo de catequizar as crias para que o rock se perpetue. Até pode ser. Mas é preciso cuidado pra que essa evangelização seja sutil, e não colocada como obrigação. Mostrar para a gurizadinha as virtudes do gênero pode ser um caminho. Fazer com que eles percebam que aquilo é importante para determinado grupo, incluindo os progenitores, é um começo. Apontar como há lições que podem ser tomadas naquela locuragem sonora também é um bom mandamento pra se ter em mente. Quem nunca aprendeu inglês traduzindo temas que gosta? E geografia, analisando a origem das bandas (galera do punk/hc da costa leste e da oeste dos EUA, por exemplo)? Aulinhas de história com o Iron Maiden ou de acontecimentos recentes do Brasil com o Ratos de Porão também podem constar no currículo.
Tenho pouco embasamento teórico sobre o que acabei de relatar. Trata-se mais de uma reflexão empírica, da percepção de que o rock perdeu espaço na mídia e no interesse da turma mais nova. Até catei na internet alguma pesquisa, mas não encontrei nada além de relatórios sobre consumo digital X analógico de formatos para se ouvir música. Na real, tem uma análise de 2017 da Nielsen Music que corrobora com o que escrevi. Segundo esse material, o R&B/Hip-Hop ficou à frente do rock na preferência dos estadunidenses pela primeira vez na história: 24,5% contra 20.8% em relação ao consumo total de música. Tá, é outro país. Contudo, se importarmos a métrica para o território nacional, talvez só seja necessário trocar R&B/Hip-Hop por algum outro estilo em evidência aqui na terra do Carnaval. Outro apontamento que chamou atenção está num artigo publicado no site Tenho Mais Discos que Amigos. Diz o seguinte: “Se todos já se contentassem apenas com Chuck Berry e Elvis, os Beatles não teriam surgido, nem o Sabbath, ou os Stones ou tudo que veio depois!”. É isso: é preciso estar aberto ao novo, disposto a entender que o momento em que vivemos está tendo tantos desdobramentos quanto o metal ganha novos subgêneros. O culto tem de ser aberto para praticantes e curiosos.
O rock do passado, por mais atemporal que seja, foi criado lá atrás, inspirado em situações e vivências que talvez não conversem tão bem com quem vive conectado ao mundo de hoje e à infinidade de informações que isso possibilita. Incluindo um acervo discográfico online que, outrora, até pareceria obra divina. É duro aceitar isso, mas é verdade que o rock — os fãs, melhor colocando — tem de estabelecer um diálogo com as novas gerações. Do contrário falhamos miseravelmente. E, aí sim, é bem provável que tenhamos de operar um milagre para que o destino do estilo não seja o esquecimento. Ou mesmo a vala cultural.
– Homero Pivotto Jr. é jornalista, vocalista da Diokane e responsável pelo videocast O Ben Para Todo Mal.