texto por Fernando Yokota
Desde o lançamento de “Daddy’s Home”, o sétimo disco da carreira de St. Vincent, na segunda semana de maio, muito se fala do tom confessional e de uma certa fragilidade autorreflexiva nas letras do álbum. De fato, é possível compreender a tentação de se seguir esse fio narrativo, começando pelo título, em confessa alusão ao seu pai que depois de anos saiu da prisão, mas daí a decretar que temos “o álbum autobiográfico de Annie Clark” ao invés do “novo disco de St. Vincent” seria incorrer, no mínimo, num exagero estético em meio à discografia de uma artista que sempre teve um pé e meio no aspecto introspectivo e pessoal.
Em diversas entrevistas, Clark afirma que tomou a decisão de abraçar uma sonoridade setentista, chegando a especificar os anos entre 1971 e 1976, em mais uma empreitada ao lado do aclamado músico e produtor Jack Antonoff. Outro ponto importante: “Daddy’s Home” é o momento posterior à explosão da supernova pop que foi seu trabalho anterior, “Masseduction” (2017). Dos arranjos desenhados à perfeição, passando pelas infinitas dobras de voz e os incontáveis e quase irreconhecíveis timbres de guitarra embebidos por camadas de modulação e até mesmo os apertados figurinos de látex da produção da última turnê, “Masseduction” tornou-se a gaiola dourada na qual, ao final do ciclo do álbum, Clark se encontrou sufocada.
“Daddy’s Home”, por sua vez, é a antítese de seu predecessor e tudo nele é perfeitamente imperfeito: as dobras de voz foram substituídas por backing vocals “de verdade”, a bateria quase sempre atrás das cabeças dos compassos (o molho não tão secreto do groove), o caminhão de sintetizadores substituído por piano e (muito) Wurlitzer e as guitarras que agora passam a dividir espaço com uma onipresente cítara.
O clima é mais relaxado, mas nem por isso é desleixado e o álbum não deixa de permitir momentos musicalmente inspirados como a performance vocal de Clark no primeiro single, “Pay Your Way In Pain”, a simplicidade harrisoniana do solo de guitarra em “My Baby Wants A Baby”, ou o caloroso abraço melódico que ganhamos em “…At The Holiday Party”.
Sim, Clark fala sobre assinar autógrafos na sala de espera do presídio ao visitar o pai, mas os versos mais inspirados do disco talvez se encontrem em momentos como “Melting Of The Sun” (e seu belíssimo solo de guitarra) e a sua homenagem a grandes mulheres que a inspiraram como Tori Amos, Joni Mitchell e Nina Simone – não é todo dia que você dá de cara com “Nina” rimando como “subpoenaed”. No lado musical, a cereja do bolo é “Live In The Dream”, que é como se alguém tivesse misturado os rolos de fita de “Us and Them”, “Comfortably Numb” e “The Great Gig In The Sky”, do Pink Floyd, com “Sun King”, dos Beatles.
Talvez a mais natural dos herdeiros de David Bowie, St. Vincent é, assim como o Starman, uma artista de fases, com metamorfoses não só musicais como visuais. “Daddy’s Home” e o seu climão setentista marinado em Sly and Family Stone é um “álbum de descompressão”, um momento de se livrar das amarras do electropop polido de “Masseduction”, e o início de um novo momento. Em “Daddy’s Home”, a vodca com energético na pista de dança dá lugar a uma taça de vinho na poltrona favorita no canto da sala (ou, como ela receitou recentemente na Esquire: “Coloque-o em um toca-discos. Sirva-se de um copo de tequila ou bourbon (ou qualquer que seja sua bebida favorita), fume um baseado e ouça”.
Uma estéril análise laboratorial dos dois álbuns talvez aponte que “Masseduction” é um disco mais notável (e, provavelmente, o melhor disco de Clark) mas à artista que se lança ao desafio da mudança constante a pergunta nunca é se este álbum é melhor que o anterior: o constante processo dialético da arte em transformação torna a simples comparação entre álbuns menos relevante que a análise da discografia como um todo. A artistas como Annie Clark, a questão sempre será “qual será o próximo passo?”. Arrisca um palpite?
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br/
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