Cinema: “Army of the Dead – Invasão em Las Vegas”, de Zack Snyder

Texto por João Paulo Barreto

Há um momento de “Army of the Dead – Invasão em Las Vegas” (2021, Netflix) no qual um tigre zumbi (!!) aparece em cena. Com seu rugido estrondoso e ameaçador, metade do corpo apodrecido pela putrefação cadavérica e ossos aparentes logo abaixo da superfície de seu pelo carcomido, a besta digital adentra em cena, caminhando por uma Vegas devastada em destroços. O momento serve como um preparo de terreno do filme a criar expectativa e temor. Pelo fato de não ser abatida logo de cara pelo grupo liderado por Dave Bautista, percebe-se que se trata exatamente disso. Uma apresentação inicial para algum momento catártico que veremos mais à frente. E que momento! Mas, não se preocupe. O que acaba de ler não foi um spoiler, mas apenas uma percepção e explicação concreta de como o cineasta Zack Snyder busca nesse seu revisitar o tema “filmes de zumbis”, 17 anos após “Madrugada dos Mortos” (2004), saídas para as não repetições (ou minimizá-las ao máximo) de ideias já vistas em outras obras dentro desse gênero. Mesmo não sendo mais novidade neste tipo de filme (já vimos animais zumbis antes), a proposta de um tigre zumbi tão brutal, ágil e violento quanto um animal “vivo”, entrega bem a proposta do cineasta na busca por trazer algo para além do convencional quando falamos de mortos-vivos.

O desafio é grande. Afinal, não somente o mestre George Romero como referência que já guiava o, até então, futuro diretor de “300” e “Watchmen” na sua primeira incursão pelo estilo há quase duas décadas com a refilmagem de um clássico, mas, hoje, some-se a isso uma quase banalização do tipo de obra, com a demasiada quantidade de temporadas de “The Walking Dead” e suas derivadas, além de outros filmes que abordaram essa proposta nestas duas décadas do século XXI, sendo alguns com esmero e outros deixando a desejar. Dentre os da primeira opção, está o excelente sul-coreano “Train to Busan” (no Brasil, lançado sob o pobre título de “Invasão Zumbi” – perceptível a falta de originalidade por aqui na proposta de nomes nacionais), filme de 2016 que trabalhava de maneira frenética a criação da ferocidade das criaturas mortas (tais quais as que vemos com Snyder), bem como a inserção de um drama/conflito familiar entre os personagens principais.

Na história vista aqui, um comboio das forças armadas estadunidenses leva uma carga secreta pelo deserto de Nevada (estado onde fica a cidade de Las Vegas), quando sofre um acidente brutal, deixando-a escapar de seu confinamento. É quando se revela o conteúdo de tal container como um zumbi ágil e dotado de inteligência, cujos ataques transformam as vítimas em seres tão brutais quanto ele. A partir daí, temos a violência gráfica (e muito bem-vinda) já notória nos filmes de Zack Snyder, sendo, aqui, apresentada como um bônus da sua montagem econômica, no qual todo o prólogo da obra, contextualizando a tal “invasão em Las Vegas” do título, surge de forma enérgica e dinâmica ainda nos créditos iniciais, e ao som, claro, do clássico “Viva Las Vegas”. A capital dos cassinos dos Estados Unidos torna-se sitiada pela proliferação de zumbis e todo dinheiro de um cofre vira o objeto de caça de um grupo liderado por Dave Bautista (o Drax, de “Guardiões da Galáxia”), que segue em direção local condenado.

Na coletiva de imprensa para divulgação do filme, Snyder falou sobre esse propósito de buscar escapar das ideias pré-concebidas do gênero “filme de zumbi”, bem como acerca das possibilidades que a proposta de novos direcionamentos poderia trazer. “Eu meio que desenvolvi essa ideia de um zumbi que escapa da área 51 e termina em Las Vegas. Um muro é construído ao redor da cidade. E isso remete a vários filmes que eu cresci vendo, como ‘Fuga de Nova York’ (filme de 1981, dirigido por John Carpenter). Sempre fui fascinado pelas regras desses filmes. O que o público iria esperar de uma ideia pré-concebida que fazem de um filme de zumbi? O quão longe o público iria conosco dentro dessas regras? E foi assim que começou. Era algo que estava conosco (Zack e a produtora Deborah Snyder) há anos”, explica o diretor.

Dentre as possibilidades, claro, estava a de investir em um tom de comédia, mas sem extrapolar para a sátira, como o sucesso “Zumbilândia” e o excelente exemplar britânico “Todo Mundo Quase Morto”. O filme de Zack Snyder, no entanto, apesar de inserir momentos que levam sua audiência a sorrir em pequenas tiradas cômicas, prefere não se entregar de vez a essa veia como saída para variar o estilo de filmes de zumbi. A produtora Deborah Snyder aborda esse limiar no qual “Army of the Dead’ caminha em sua construção temática. “Em termos de tom, podemos dizer que (o filme) tem graça, mas não faz graça. Às vezes, há essas pequenas inserções de humor, mas não significam que você está a salvo. É sempre caminhando no fio da navalha. sabe? “, explica.

Como exemplificado com as diversas obras citadas, em um gênero cinematográfico já tão explorado no decorrer dos anos e que enveredou por estilos que variam entre o terror, o suspense, a ação frenética e a comédia, há uma opção interessante para o espectador atento que almeja algo além da diversão catártica trazida pelo jogo de caça e caçadores entre vivos e morto-vivos. Funcionando, desde os clássicos iniciais de George Romero, como metáforas para a paranoia estadunidense com o comunismo, além das alusões precisas ao consumismo e à escravidão advinda do capitalismo, os filmes de zumbi têm essa verve intrínseca às suas propostas. Em “Army of the Dead”, porém, mesmo talvez inserida sem tal propósito de análise, está a ideia de um grupo de vivos que se arrisca (ao ponto de morrer nas presas de zumbis) no resgate de um fortuna situada dentro de um cofre no meio de uma cidade condenada.

Bom, ver a ironia do fato de que nas pérolas iniciais de Romero, os zumbis caminhavam por entre corredores de shoppings em uma alusão exata ao que somos, e que nós, os vivos, tentávamos salvar o que mais interessava (nossa pele), é, no mínimo, curioso de se observar como a mesa virou. Hoje, adentramos no covil das feras na tentativa de deixarmos de ser exatamente os zumbis da base da pirâmide. E não estou falando apenas do roteiro de Snyder. Touché!

Texto publicado originalmente no jornal A Tarde, de Salvador (BA)

– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual

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