entrevista por Bruno Lisboa
A música produzida nas Minas Gerais tem crescido, na última década, de maneira exponencial e multifacetada. E como fruto desta pluralidade é interessante observar que no meio de tantas bandas e artistas, dos mais variados gêneros, aos poucos vem se consolidando uma autêntica cena calcada no indie-folk. Moons, Bernardo Bauer, Sara Não Tem Nome, Young Lights, entre tanto outros, fazem parte desta cena construída. E a Midnight Mocca é mais uma prova desta ascensão.
Fundado em 2016, o grupo aposta em letras agridoces, cantadas em inglês, embaladas pela sonoridade indie folk. Eles já lançaram três EPs, sendo que o mais recente, “Higher Ground” (2020), foi disponibilizado no mês de outubro. Gravado no estúdio Ilha do Corvo (MG) junto ao requisitado produtor Leonardo Marques (Teago Oliveira, Maglore, Hélio Flanders), o registro contou ainda com as participações de Túlio Mourão (ex – Mutantes) e Lucas Noacco.
Em entrevista ao Scream & Yell, o compositor Lucas Mileb (voz, violão, guitarra) fala sobre a pandemia, o processo de gravação e composição “Higher Ground”, o trabalho ao lado do produtor Leonardo Marques, o mercado musical em tempos de enfraquecimento do formato álbum, o cotidiano como inspiração, participações especiais, a cena indie-folk mineira, a música na era do streaming, planos futuros e muito mais.
Primeiramente como vocês estão nestes tempos de pandemia?
Por ora, tudo bem dentro do possível, é o que posso dizer pelo menos da minha parte. E pelo contato que tivemos no último final de semana, quando fizemos a live em VHS, poderia dizer pelos demais que também estão bem. Estamos assustados com os noticiários e um tanto incrédulos com os rumos da nação, mas tudo bem conosco e nossas famílias. O nosso encontro para live, depois de seis meses sem nos encontrar, nos fez muito bem.
Neste terceiro EP a banda segue apostando em letras agridoces embaladas em melodias folk. Como foi o processo de gravação e composição deste trabalho?
Bom, para falar do nosso terceiro EP é importante falar também de todo o processo criativo desde que começamos, lá em 2017. De lá pra cá, nunca estivemos muito distantes do estúdio, e mantivemos certa regularidade nas visitas à Ilha do Corvo. É claro que, com três anos de estrada e tocando com o mesmo time há um entendimento maior do lugar em que cada um ocupa. Posso dizer que a gravação do novo disco foi um processo muito semelhante àquilo que já estávamos fazendo desde o nosso debut no EP “Where Are You Guys From?”, de 2018. E foi também de certa forma, uma continuidade dos EP’s seguintes. Em relação às composições foi tudo muito semelhante também, eu criava as novas canções, mostrava para o Leo Marques e para os amigos da banda, e no estúdio tudo acontecia naturalmente. A diferença maior foram as participações especiais do Lucca Noacco e do Túlio Mourão, além de um certo ‘ar’ de encerramento dessa trilogia inicial que apresentamos com os três EPs.
Leonardo Marques há tempos tem deixado sua assinatura em diversas produções musicais. Por que decidiram trabalhar com ele? Quais as contribuições o produtor trouxe para o resultado final?
O estúdio Ilha do Corvo, que é o estúdio do Leo, é um verdadeiro berço da Midnight Mocca. O Leo se tornou um amigo ao longo dos últimos anos e é difícil nos enxergar trabalhando com outro produtor musical. Ele é o nosso ‘quinto beatle’, o ‘man behind the curtains’ e a sonoridade que alcançamos e pretendemos só é possível por conta de seu talento, e por conta dessa parceria também. É curioso que ao mesmo tempo em que ele é fundamental para nossa existência como conjunto, é difícil pontuar suas contribuições pormenorizadamente. O Leo é aquela pessoa sensível que te orienta de modo certeiro para um caminho/ sonoridade com muita ternura, e esse cuidado é fundamental para o resultado final. Ele é um dos grandes responsáveis pela qualidade de grandes trabalhos da cena mineira, e talvez por isso, contribui também para que cada grupo busque e tenha sua própria identidade, apesar das semelhanças que possam existir entre uma banda e outra. Sem o Leo a Midnight Mocca não existiria como ela é.
Ainda falando sobre formatos, há uma grande discussão relacionada a como o público consome música na atualidade onde muitos dizem que o formato álbum “morreu”, dando lugar aos singles e EPs. A escolha por este formato na discografia de vocês se deve a este fator?
Bom, pra responder essa também preciso voltar lá em 2017 quando resolvemos começar a gravar. Éramos simplesmente quatro caras do interior de Minas, lá de Divinópolis, desconhecidos da maioria da cena em BH. Eu não tinha naquele momento uma ideia clara sobre como apresentar minhas canções, e naturalmente, com as primeiras sessões de gravação, fomos decidindo por fazer o debut com um EP de quatro canções. Num jargão do business, seria uma forma de ‘testarmos’ o nosso produto, nossa banda, como um ‘mínimo produto viável’. Seria esse nosso lançamento/nascimento como banda, um EP com quatro canções. Quando finalizamos o primeiro EP, e começamos a tocar já estávamos gravando outras quatro músicas, que entraram no EP “The Road Goes On”, nosso segundo trabalho. Acredito muito no formato álbum, inclusive tenho desejo de gravar um (quem sabe seja o próximo passo da nossa carreira?), e de forma alguma acho que o formato tenha morrido, mas pra nós, fez mais sentido que nossa ‘apresentação’ para o mundo, como Midnight Mocca, se desse de forma gradual, gravando aos poucos, mas com consistência. Ao fim desses três anos de estrada é bonito ver como há uma ligação entre os três trabalhos, que juntos somam 12 músicas autorais.
O cotidiano soa pra mim como uma força-motriz do trabalho de vocês. O quão complicado (ou não) é lidar com tempos tão tempestuosos e ainda sim conseguir transformar o tempo em arte?
Sim, sem dúvidas o cotidiano é uma força e inspiração para o nosso trabalho. 2020 tem sido um ano muito estranho, por tudo que está acontecendo. Definitivamente são tempos difíceis para quem é sensível. Não seria fácil, a meu ver, produzir, gravar e divulgar um trabalho 100% gerado nesses tempos. Entretanto, o “Higher Ground”, nosso terceiro EP, foi gerado antes da pandemia, e estava pronto para ser lançado em um show no teatro Sesiminas aqui em BH, em maio, quando, por razões óbvias, tivemos que cancelar essa grande festa de lançamento, que contaria com a participação do Túlio Mourão, do André Travassos e do Leo Marques. Diante desse cenário, tivemos que refletir e acabamos optando por fazer o lançamento do EP de modo fracionado, single a single, e agora, olhando para esse processo, parece ter feito mais sentido e dado um rumo, um verdadeiro respiro, nesse horizonte tão tempestuoso. Poxa, a cada dois meses, mais ou menos, nos envolvíamos com um novo lançamento de single, produzindo videoclipes, gerando conteúdo sobre, e isso acabou mantendo a chama acesa também de modo constante. Não foi fácil, mas acabou sendo uma forma interessante de seguirmos ativos apesar do cenário de incertezas.
Túlio Mourão (ex-Mutantes) e Lucas Noacco participam deste novo trabalho. Como se deu a aproximação de ambos e o que eles trouxeram de bagagem para construir o resultado final?
O Lucca é um amigo que conheci em BH, e que convidei para fazer um arranjo de banjo na nossa canção “How Can We Forget?”, do primeiro EP. Na noite anterior ao último dia de gravações daquele disco, fomos a um show da Moons, e na curtição acabamos exagerando na noite, e a participação e o banjo acabaram não acontecendo. É curioso como o solo do Pedro Flora (guitarra) naquela canção é uma das coisas que mais amo em tudo que já fizemos na MidMocca. Três anos depois, a ideia de reunirmos no estúdio permaneceu, e finalmente conseguimos fazer a parceria no início de 2020, quando passamos um dia no estúdio. O banjo ficou pra trás e Lucca além de cantar também gravou o piano em “Hiding All The Traces”.
A história com o Túlio é bem interessante. Primeiro que ele também é natural de Divinópolis, e é muito amigo de nosso baixista Renato Saldanha, que apesar de tocar baixo na MidMocca, é um espetacular violonista, que já ganhou inclusive o prêmio BDMG de música instrumental. Foi num jantar na casa do pianista que o Renatinho apresentou os bounces das canções do “Higher Ground”, e, na ocasião, ao ouvir “Soul of the Street”, o Túlio gostou da música de imediato e começou a tocar piano na sala da sua casa. Renatinho prontamente fez um vídeo pelo celular e nos mandou pelo whatsapp dizendo que o amigo tinha gostado e toparia participar da canção. Realmente uma surpresa maravilhosa pra nós todos, que um músico do calibre do Túlio, tenha desejado gravar uma canção com uma banda independente, ainda pouco conhecida. No estúdio tivemos um dia muito leve também e tudo se deu de um modo muito natural. E o resultado é história. Achei lindo o feat. e esse encontro de gerações.
O Midnight Mocca está inserido numa cena belo-horizontina diversa, plural em diversos sentidos. Mas é também interessante observar que atualmente a sonoridade o folk e o indie tem se tornado a predileção sonora de artistas como o Moons, o Young Lights, Bernardo Bauer, Sara Não Tem Nome, entre outros, criando um certo universo de “camaradagem” local. Como se deu este movimento e quão próxima / unida a cena local está de fato?
Somos mais próximos da turma da Moons, e foi justamente abrindo pra eles que tocamos com a MidMocca pela primeira vez. Já tocamos no interior juntos também em um evento. Fui convidado para acompanhar a gravação do último disco deles, o “Dreaming Fully Awake” (2019), e os considero verdadeiros padrinhos por todo o carinho. O André Travassos, por exemplo, colaborou com os vocais adicionais em nossos dois primeiros EPs, e foi quem me apresentou ao Leo Marques (estúdio Ilha do Corvo) e é um grande amigo de longa data.
No início do ano, quando lançamos o single “It Feels Like the Ocean” e partimos em uma mini-turnê nacional por algumas capitais do sudeste, o Brazin, que gravou a bateria do nosso novo trabalho, não pode nos acompanhar e convidamos o Matheus Fleming, da Young Lights. Ele, que é multi-instrumentista, chegou e assumiu as baquetas nesses shows antes da pandemia e ficamos bem próximos também. É muito querido e acabou assinando também a produção dos vídeos de “Soul of the Street” e “Far From Everyone”.
A Sara Não Tem Nome e o Nadinho Bauer são artistas incríveis que me influenciam muito com seus trabalhos. Eu mesmo no início da pandemia pedi à Sara pra tocar uma canção dela, numa live que fiz para um festival. De um modo geral, acredito que a cena poderia estar mais integrada, de modo a desenvolver alguns eventos juntos, ou mesmo buscando mais espaço e diálogo, com vistas a construir de modo mais organizado essa cena. Há sim uma camaradagem, uma amizade, e é comum nos encontrarmos nos shows uns dos outros.
Pessoalmente penso que talvez exista um receio por parte dos contratantes/ produtores, nessa associação, sendo raro que, por exemplo, quando uma banda entre num festival/ evento uma outra também consiga espaço. Idealmente vejo que há uma grande possibilidade nessa união, de modo que os públicos possam também se unir, o que faria a cena ganhar mais consistência e força. Pois é inegável que exista um verdadeiro movimento, que é originalmente muito especial, pois são muitos artistas talentosos no mesmo lugar, com sonoridade e angústias semelhantes, que se inspiram entre si e com idades próximas. Enfim, dentro das limitações e dificuldades que temos como artistas independentes, acho que cada um ao seu modo está fazendo o seu melhor, e qualquer ouvido mais atento pode perceber a força do talento dessa ‘turminha indie-folk de bh’.
Outra discussão pertinente aos nossos tempos diz respeito a forma de divulgação do trabalho de um artista independente. Sei que a música de vocês hoje está disponível nas principais plataformas de streaming como o Spotify, mas há quem defenda que a melhor forma de ter a sua música comercializada é via Bandcamp, devido a remuneração mais justa. Como vocês lidam com este embate?
Quando decidimos gravar e nos associamos ao Leo Marques como produtor musical, acabamos optando por fazer a distribuição nas principais plataformas de streaming como forma de buscar um alcance mais amplo para a nossa música, mesmo sabendo que a música comercializada via Bandcamp é mais favorável aos artistas. Talvez não estejamos buscando propriamente uma remuneração nesse momento, já que ainda somos uma banda independente pouco conhecida, e quiçá enxergamos nas principais plataformas de streaming um jeito mais fácil de transmitir nosso som com um maior alcance, mesmo com a remuneração não adequada. Confesso que depois dessa pergunta, fiquei com vontade de reativar a conta do Bandcamp e subir por lá alguns sons que ainda não foram gravados oficialmente por nós.
A banda tinha planos de excursionar em 2020, mas que tiveram que ser adiados devido a pandemia. Sei que vocês já realizaram uma live recentemente e têm produzido videoclipes, mas é possível continuar ativo nestes tempos? Quais são os planos futuros?
O ano de 2020 trouxe muitas incertezas e não é fácil se manter ativo, com um cenário tão estranho, né? Foi muito gratificante se manter ativo ao longo do ano com o lançamento dos singles de nosso novo EP, de fato estávamos atuantes, produzindo vídeos, criando conteúdo e divulgando o novo trabalho. A live em VHS que fizemos foi como uma celebração desse encerramento de ciclo, do lançamento do disco, e um encontro com os amigos de banda depois de mais de seis meses sem nos encontrarmos. Pessoalmente, não vejo fazer muito sentido seguir muito ativo nas redes sociais sem ter, de fato, um material novo e bem produzido para trabalhar. Ainda estamos produzindo um último vídeo para a canção “Hiding All The Traces”, mas após essa ‘entrega’ é bem difícil imaginar seguir ativo e presente, sobretudo enquanto perdurar o atual cenário de pandemia.
Entretanto temos sim alguns planos para o futuro, e estamos conversando entre si sobre. Já compus algumas novas canções e adoraria gravar elas. Quem sabe pensar na produção de um disco/álbum cheio, seria um caminho, pra quem já lançou três eps, certo? Ademais fizemos alguns testes de versões acústicas também, num duo de violões, e o resultado foi muito interessante, alguns ouvintes que nos acompanham gostaram muito e enviaram pedidos para que pensássemos com carinho nesse formato. Talvez esse formato acústico seja um caminho possível para o futuro, diante de tantas incertezas, para mantermos a atividade, revisitar algumas canções e ao mesmo tempo apresentar novidades.
– Bruno Lisboa é redator/colunista do O Poder do Resumão. Escreve no Scream & Yell desde 2014.