Textos por Marcelo Costa
“High Fidelity” (Hulu)
O que uma história que acontece numa loja de discos (esse maravilhoso território condenado à extinção) tem a dizer em 2020? E o que uma história que revelava absurdos do homem de fim de século, um adultescente umbiguista (redundante, ok) apaixonado por cultura pop e com medo de compromisso, tem a acrescentar num mundo (felizmente) cada vez mais feminista? Olha, muita coisa. Lançado em 1995, “Alta Fidelidade”, o livro de Nick Hornby, marcou uma geração. Se o filme lançado em 2000 cumpriu com méritos a função de condensar a trama em pouco mais de 110 minutos enquanto a adaptação feita pela Sutil Cia de Teatro (“A Vida é Cheia de Som e Fúria”) soava mais completista com suas três horas de duração, essa reinvenção do Hulu capitaneada por Veronica West e Sarah Kucserka consegue uma delicada façanha: ir além do livro, fazendo com que “High Fidelity 20” soe um (divertidíssimo) spin-off da versão literária, e não apenas a versão literária adaptada para a TV. As mudanças ajudaram muito: quase como um corretivo para os novos tempos, Rob agora é Robin, uma mulher (Zoe Kravitz), Simon é gay (David H. Holmes) e Cherise atualiza o Barry de Jack Black para uma mulher negra (Da’Vine Joy Randolph). A loja agora se localiza no Brooklyn nova-iorquino, Rob é muito mais humana do que seu irmão gêmeo do livro, mas sofre tanto quanto com seu Top 5 de corações partidos (sendo que um deles é uma típica influencer, coitada). Há muito do livro em cena, mas também há atualizações deliciosas, como quando o número 5, o namoro que durou seis horas, pergunta o que ela está ouvindo nos fones, e ela diz Weezer (“Menti. Era Frank Zappa. Falei porque todos os homens brancos amam Weezer”) ou quando o cancelamento de Michael Jackson entra em discussão na loja, mas o que faz de “High Fidelity 20” imperdível é uma sensação de maturidade, de crescimento, que o livro quase negava aos personagens, os obrigando a carregar sua masculinidade toxica e seu mansplaining eternidade a dentro entre vinis empoeirados. “Alta Fidelidade” ainda é deliciosamente pop, mas soa mais… inteligente. Vale mergulhar nessas quase três horas divididas em 10 episódios (e aguardar o que vem por ai). E, claro, mergulhar na excelente trilha sonora…
Nota: 9 (os 10 episódios estão disponíveis no Hulu – há trial disponível).
“My Brillant Friend” (HBO)
Responsável por uma correria desenfreada às livrarias de quase todo o mundo cada vez que um volume de sua tetralogia napolitana (lançada entre 2011 e 2014) atracava na prateleira, a escritora italiana (de pseudônimo) Elena Ferrante (que publica desde 1992) viu sua obra mestra transportada para as telas de TV a partir de 2018, com duas temporadas (sobre os dois primeiros livros) já finalizadas – a terceira já ganhou sinal positivo para ser filmada. Com a autora envolvida na produção, criada por Saverio Costanzo, “A Amiga Genial” têm atualmente 16 episódios disponíveis – de uma hora cada – que contam a amizade (tóxica) de duas amigas, Lila e Lenu, vivendo em um bairro pobre e violento de Nápoles no pós-guerra, com todas as dores e nenhuma delícia de ser quem são. Se nos livros, a narrativa soa mais detalhista (permitindo algumas fugas da trama) nas observações acerca do modo de vida, da posição das mulheres naquele núcleo social torto e do momento politico pelo qual passava a Itália, a série consegue fisgar o espectador com um elenco (totalmente italiano e com o núcleo central com quase nenhuma experiência em atuação) convincente, uma recriação detalhista de época e um roteiro que acelera devagar na primeira temporada até bater fundo no peito do espectador no meio da segunda, em um belíssimo episódio que escancara a tristeza e o desespero de ter o destino escrito antes de nascer, e pouco poder fazer para muda-lo a cada hora, dia, semana, mês e anos. Desde o começo, na infância, quando os códigos de amizade são selados, permitindo perceber as nuances de cada uma – Lila é explosiva, Lenu é tímida. Lila está sempre um passo à frente de Lenu, que tendo a amiga como modelo, não quer nunca ficar para trás – esse duelo interno as moverá, e as tornará inseparáveis. Você passará bastante raiva (muitas vezes como uma, de vez em quando com as duas), poderá se impressionar com a violência (não apenas domestica) e irá se familiarizar com pequenos núcleos mafiosos em “A Amiga Genial”. Sobretudo, partirá seu coração (caso você tenha um). Anote.
Nota: 9 (duas temporadas disponíveis na HBO, , podendo ser acessados via NOW)
“Chernobyl” (HBO)
Eleita melhor produto televisivo de 2019 na votação do Scream & Yell (abrindo seis votos de diferença da segunda colocada, “Fleabag”) e indicada a nada menos do que 19 Emmys em 2019, e vencendo três categorias badaladíssimas – Melhor Minissérie, Melhor Direção e Melhor Roteiro – a minissérie de cinco episódios “Chernobyl” dramatiza um dos eventos históricos marcantes que sacudiram o mundo nos anos 80: o desastre ocorrido entre 25 e 26 de abril de 1986 no reator nuclear nº 4 da Usina Nuclear de Chernobil, perto da cidade de Pripiat, no norte da Ucrânia Soviética, próximo da fronteira com a Bielorrússia Soviética. Em pouco mais de cinco horas de duração (cada episódio tem, em média, uma hora), o criador Craig Mazin conta a história de que como erros cometidos aos montes atrás da cortina de ferro da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas colocaram em risco a vida de centenas de milhares de pessoas, levando um grande número deles à morte. São cinco episódios “pesados”, quase traumatizantes (no caso do terceiro capítulo), mas extremamente educativos. Ainda que, visando atender a demandas de dramaturgia, parte da trama não seja realmente como aconteceu (essas duas reportagens listam o real e o irreal na série: aqui e aqui), o grande recado de “Chernobyl” é: continuamos nas mãos de mentirosos e incompetentes. Em diversas entrevistas, Mazin reforça que um dos temas caros da série é a força que as fake news tiveram na manipulação do povo soviético, e como essas fake news retornaram com força em tempos de internet (grifo do resenhista: contaminando diversos países, como Estados Unidos e Brasil). No caso do desastre nuclear, o número de mortos é até hoje nublado porque o governo soviético sempre escondeu os dados – o que só reforça a importância de um país com imprensa livre e governabilidade transparente. Série tensa para se assistir em tempos de pandemia, ainda que necessária, “Chernobyl” não amacia nada para o espectador, e é essencial para se refletir o mundo moderno.
Nota: 10 (os cinco episódios estão disponíveis na HBO, podendo ser acessados via NOW).
Ps. Vale emendar a leitura de “Vozes de Tchernóbil“, livro tão doloroso quanto de Svetlana Aleksiévitch
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.
Sobre o Alta Fidelidade 2.0,assisti um episódio,vi uns trailers como esse e….achei muito mala.Muita lição de moral pra pouca música.Só faltou um personagem vegano e um comunista.Aguardando se arrependerem como fizeram com Os Caça-Fantasmas versão feminista e filmarem do jeito que gostamos.
Do jeito que você gosta, Humberto.
Chernobyl não ser falada em russo me incomoda demais, por isso até hoje não consegui assisti-la…
Vou dizer que me incomodou tb, viu.