entrevista por Leonardo Vinhas
“Isla de Encanta” é uma música do Pixies, composta nos tempos em que Black Francis não era lá muito versado no espanhol. O uruguaio Pedro Dalton também não era dos mais proficientes em inglês, e alguns dos versos que ele compôs no idioma bretão também davam suas escorregadas gramaticais. Não que isso aproxime esses dois compositores que, até onde se sabem, não se conhecem pessoalmente. Mas foi um dos pontos de partida para que Dalton e o jornalista Nelson Barceló batizassem o programa de rádio que fazem aos sábados e domingos, 18h, na Emisora del Sur (94.7 FM no dial local).
O nome Isla de Encanta se refere também ao espírito que orienta a transmissão. “A ideia é criar um clima que pareça o de um anoitecer em um acampamento, quando você está comendo alguma coisa e antes de dormir, pega o violão e toca algo. É conversar e depois fazer música sob mínima pressão, do jeito mais básico possível. Não é um programa ‘profissional’, por assim dizer. Não é uma John Peel Session”, conta, por vídeoconferência, um sorridente Pedro – ele e seu companheiro de bancada estavam cada qual em suas casas, devidamente confinados como pedem esses tempos incomuns.
No programa, Dalton e Barceló se somam ao músico e operador Orlando Fernández (irmão de Pedro) para conversar, discutir canções, fazer playlists temáticas e receber músicos. Vira um grande papo sobre música – do tipo que não ouvimos há muito tempo em rádios ou TVs brasileiras, diga-se. A coisa fica ainda mais rica quando se leva em conta que Pedro Dalton é um dos nomes mais emblemáticos do rock uruguaio: além das décadas que leva como vocalista e letrista dos Buenos Muchachos, tem ainda o projeto Dos Daltons (com seu outro irmão e “bueno muchacho” Marcelo Fernández) e é um ilustrador e artista plástico reconhecido.
Os convidados e Pedro se lançam em versões despojadas e semi-improvisadas de canções escolhidas pelo próprio visitante. É frequente que alguma música dos Buenos Muchachos seja escolhida, mas não é regra. De modo geral, a espontaneidade dá o tom, e isso acaba garantindo algumas versões muito particulares. Na verdade, de tão marcantes e particulares, algumas delas acabaram ganhando um vinil. Batizado com o nome do programa, o disco – que pode ser o primeiro volume de uma série – traz nomes de peso da música uruguaia em duetos com Dalton. Quando não há convidados, os formatos podem variar, indo da leitura de textos à análise de períodos e cenas da música pop, ou o trabalho de algum artista específico – e nesse último caso, Orlando e Pedro podem acabar trazendo interpretações próprias do trabalho dos “biografados”.
A amplitude surpreende: veteranos consagrados como Fernando Cabrera e Mandrake Wolf estão ao lado de nomes fortes do underground (Riki Musso, Laura Gutman, o argentino Santiago Moraes) e novatos que merecem atenção, como Camila Sapíne, Lucia Trentini, entre outros. O disco, porém, é uma amostragem pequena do que o programa já produziu ao longo de três anos no ar, que inclui participações do nível de Sebastián Teysera (La Vela Puerca), Juan Casanova (Traidores), Tussi Dematteis (La Hermana Menor), Roberto Musso (El Cuarteto de Nos), Nicolás Molina, Romina Peluffo, Alfonsina e muitos outros,
É curioso que a amizade entre Pedro e Nelson nasceu a partir da audição de vinis. Eles se conheceram ainda no fim dos anos 1990, mas se aproximaram quando o jornalista escrevia o livro “Rengos con Nike” (2013), uma análise do trabalho de Dalton – que inclui ainda literatura e cinema. Em uma das tardes com seu entrevistado, Barceló levou alguns vinis para ouvir e… bem, quem ama música sabe como esse tipo de história costuma se desenvolver.
“Começamos a ter uma relação ali que parecia de um programa ao vivo, totalmente à vontade e com muito… humor, se você quiser chamar assim. Nossa amizade nasceu ao ouvir música, e é interessante que, quando vem um convidado, essa dinâmica muda um pouco, porque tem uma pessoa nova ali. Especialmente pelo Nelson, porque para mim é claro que é ele quem puxa o programa: ele é um cara muito informado, de investigar música mesmo. Sabe tudo o que se passa no mundo musical, principalmente no rock, e isso ajuda demais as conversas a fluírem. Nelson é um grande investigador musical e eu não tenho isso. Minha maneira de me movimentar na música vai para outro lado: sou bastante quieto, e me concentro mais no que é o meu interesse e no que meus companheiros de banda me recomendam”, conta Dalton.
Pergunto a Barceló como é para ele, um notório musicófilo, tocar um programa com um dos artistas cuja obra mais admira e ainda ver isso se tornar um vinil. “É alucinante”, resume. “Desse encontro com convidados saem coisas muito particulares. Quando convidamos o pessoal do 3Pecados (banda quase mítica do underground local), rolaram quatro versões de ‘Diciembra’ (álbum clássico da banda). Ter o prazer de viver esses momentos não tem preço. E foram muitos momentos assim. Quando veio o Fernando Cabrera, por exemplo, fiquei até nervoso antes, mas deixamos rolar. O Hueso, baixista de Los Estomagos, fez uma canção junto com Pedro no programa. Ou quando veio o Fernando Ruiz Días (músico argentino, frontman das bandas Catupecu Machu e Vanthra). Ele chegou em Montevidéu e foi direto para [o bairro] Malvín gravar. A primeira coisa que ele fez ao pisar aqui foi vir para o programa, entende? Essas coisas marcam”.
Outra coisa que marca, na visão de Nelson, é ver como as canções dos Buenos Muchachos ganham outra vida na releitura feita pelos convidados. Embora não seja regra, muitos dos entrevistados fazem questão de fazer pelo menos uma versão de alguma canção da banda de seu parceiro radial. “Mais do que interpretar as canções, eles (Pedro e os convidados) as recriam, e isso é muito especial”, diz o jornalista. “Essa é uma das partes mais interessantes para mim”, conta Pedro. “Levei tempo para relaxar com isso (refazer as canções), e ainda hoje há vezes em que fico nervoso, me perguntando como isso vai soar só com voz e violão. Por isso me parece que, quanto menos ensaiadas, melhor saem essas versões”.
Pedro cita a recriação de “Vamos Todavía Uruguayo” como um dos melhores exemplos desse processo de “tensão e relaxamento”. Ele recorda que “foi Riki [Musso] quem propôs fazer essa, dizendo: ‘ah, vamos com ela, são só duas notas’. E eu: ‘sim, eu sei, não tenho dúvidas de que são só duas notas, mas a dinâmica da canção está nas camadas, nas partes que entram e saem, não tem como funcionar só no violão’. E no fim, fizemos, ele tocando uma guitarra criolla, e funcionou totalmente”.
Já um caso reverso foi com Alfonsina – uma rara exceção de encontro mais ensaiado. “Ela escolheu ‘Temperamento’, que me parece uma escolha atípica, já que requer banda, tem todo um diálogo entre os instrumentos. Eu não conhecia muito a musica dela, e ela ainda pediu que eu fosse à casa dela para ensaiar antes. Quando ela pegou a guitarra e tocou o arranjo que ela imaginou, trazendo sua voz, foi como atravessar um mundo novo”, relembra Pedro.
A escolha de quem vai participar não tem qualquer interferência de rádio ou patrocinadores. “No geral, eu pergunto ao Pedro com quem ele gostaria de fazer algo. Às vezes eu dou minhas sugestões. E começamos cada ano com alguns episódios já planejados, mas sempre aparece algo que nos interessa. Até agora só tivemos dois convidados estrangeiros, que foram Santi Moraes (ex-Los Espiritus, atual Santiago Moraes y Los Transeuntes) e Fernando Ruiz Diaz, e ambos vieram por iniciativa deles. Claro que queremos chamar músicos de fora, mas não temos orçamento para isso. Agora, se alguém vier fazer um show no Uruguai e estiver disponível, por que não?”, propõe Barceló.
Isso leva à óbvia, mas nesse caso deliciosamente inevitável pergunta: há alguém do Brasil com quem gostariam de trabalhar? “O pessoal da Nação Zumbi, sou fã deles”, responde imediatamente Dalton (os Buenos Muchachos regravaram “Inferno” para a compilação “Brasil También Es Latino”). “Também os Paralamas, Titãs, o pessoal da Legião Urbana, que são as bandas de quem tenho mais conhecimento. Também tenho uma relação muito boa com Paulinho Moska e seria ótimo fazer algo com ele (nota: Moska o entrevistou para o programa Encuentros, do Canal Brasil). “E adoraria que contássemos com Caetano, Gilberto Gil, Roberto Carlos, os gigantes, sabe? Mas eu não cantaria com eles. Nem conseguiria”.
Em tempos de quarentena, a audiência do programa aumentou. Ambos entendem que ela pode aumentar em ocasiões pontuais, mas que o programa já tem uma base de ouvintes, que criou uma relação especial com o formato. “Tem gente que tem uma relação mais íntima, de cultura, com algumas coisas. Que vai a determinado teatro independentemente de quem esteja apresentando, vai a uma casa de shows porque confia na curadoria. O publico da Isla de Encanta é assim, e isso pode fazer o programa durar gerações, Os Buenos Muchachos continuam vendendo discos, não são uma banda de Spotify. Para mim, são como Legião, Paralamas, não são novidades, não estão ligados a um estilo. O programa tem isso. Ele nem é só um programa de rock, é de cultura. Se vier o Daniel Melingo, ele vai cantar um tango”. Barceló completa: “Fazemos leituras organizadas de texto, tem muita coisa no programa, e acredito que é isso que faz com que as pessoas se interessem”.
Quem quiser “sintonizar” no site da Emisora del Sur aos sábados e domingos, às 18h, pode testar essa atratividade exercida pelo programa (desde que fale espanhol, claro). Mas para quem quiser uma primeira imersão, o álbum vale como uma excelente porta de entrada. E, como já se disse, é bem possível que venham novos volumes. “Acreditamos que em cada programa há pelo menos uma canção que poderia entrar em disco. Pelo menos. Mas nossa pretensão não é fazer discos. É fazer com que o programa continue sendo o que ele é”, diz Barceló.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.