entrevista por Bruno Lisboa
Após chamar a atenção com um EP inspirado num mangá (“Também Conhecido como Afro Samurai”, 2016) e circular bastante pela noite paulistana, o rapper Yannick Hara lançou no final do conturbado ano de 2019 o seu primeiro disco cheio, novamente um trabalho temático que, desta vez, tem como inspiração o livro “Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas”, do escritor Philip K. Dick, que originou os filmes “Blade Runner”.
Numa clara alusão aos nossos tempos, em “Yannick Hara é o Caçador de Andróides” (2019), o rapper problematiza a contemporaneidade ao retratar a baixa qualidade de vida de uma sociedade que está â mercê da tecnologia. Com produção de Blakbone, Paulo Júnior e Everton Beatmaker, Yannick promove uma fusão de gêneros musicais diversos, indo do dubstep ao big beat, passando pelo cloud rap, trap, synth pop, punk e pós punk.
Como convidados especiais, Yannick contou com a presença de Rodrigo Lima (Dead Fish), Clemente (Inocentes e Plebe Rude), do poeta Rafael Carnevalli, da cantora mineira Sara Não Tem Nome, de Moah (Lumiére), Rike (NDK), Keops e Raony, e do rapper Cronixta, que contribuíram bastante, cada um a sua maneira, para o bom resultado final do álbum.
Neste entrevista, Yannick fala sobre a sua relação com o escritor Phillip K. Dick, a sua atemporalidade, o processo de composição do novo disco, a necessidade de ter um ouvido atento ao universo da música, a importância da filosofia e da sociologia na sua formação, o engajamento político/social presente na música de hoje, planos futuros e muito mais.
Yannick Hara lança o disco com show no Sesc Belenzinho no dia 31/01
A obra de Philip K. Dick é um clássico da literatura mundial. “Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas?”, que acabaria por originar a saga cinematográfica “Blade Runner”, é, talvez, a maior prova disto. Como nasceu a sua relação com o universo do escritor?
A relação com a obra de Philip K. Dick veio após o conhecimento do filme de Ridley Scott. Eu era uma criança quando vi o filme pela primeira vez e quando vi novamente na adolescência entendi que “Blade Runner’ era inspirado num livro chamado “Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas?”. Foi aí também que comecei a me interessar por leitura de livros de ficção científica. Anos mais tarde, já na fase adulta, me aprofundei na literatura e percebi quão visionário era o autor. Estudei o “Androides Sonham”, mas não consegui absorver ele totalmente, é uma saga muito densa e muito mais caótica que o filme, percebi ali quanto a humanidade tem essa capacidade de se destruir.,
Você optou por seguir uma linha conceitual ao flertar com o universo de “Blade Runner”. Como foi a gênese e o processo de gravação deste projeto?
A origem para a criação do disco partiu primeiro da influência da trilha sonora de Vangelis, queria soar algo muito semelhante a atmosfera realizada por ele. Reuni os mesmos beatmakers do EP “Também Conhecido Como Afro Samurai” (2016), Paulo Junior e Everton Beatmaker, enviei os samples que queria utilizar nas canções e eles magicamente traduziram o que eu os havia solicitado, temos uma química muito boa no trabalho. Inclui também o beatmaker Blakbone que neste disco trouxe elementos diferentes daquilo que eu já estava acostumado a trabalhar no rap, como o dubstep, o pós punk e o big beat. Em seguida dei inicio a escrita das canções mesclando literatura (“Androides Sonham”) e o filme “Blade Runner” (1982) e “Blade Runner 2049” (2017). Foi um processo até que não muito demorado, o fiz enquanto terminava a agenda do EP “Também Conhecido Como Afro Samurai” em 2018. Lembro de ter feito o disco todo em 1 ano, em 2018 mesmo. Em 2019, no período entre janeiro e fevereiro, a obra já estava mixada e masterizada, fiz o planejamento da lançamento e fui só realizando as tarefas que estiveram no cronograma até chegar em novembro de 2019, onde se inicia a era “Blade Runner” no próprio filme, para lança-lo.
A atemporalidade do texto de Dick acabar por ser especular a realidade brasileira contemporânea. A escolha pelo diálogo com esta obra em específico se deve a este fato?
Sim e não é somente a realidade brasileira, é a realidade mundial. A alta tecnologia e a baixa qualidade de vida é real na vida de todos os seres humanos hoje. Estamos reféns da tecnologia e ainda passamos pelos mesmos problemas sociais e políticos.
No disco você permite que a musicalidade flua para vários estilos. Você considera que ter um ouvido atento é um elemento essencial para o fazer artístico musical?
Considero hoje que eu tenho deixado aflorar todas as influências musicais que tive até hoje. Estou na fase da infância, onde ouvi muito rock, muito punk, pós punk, big beat, muito rap, e indo nesse histórico musical. Nessa quase regressão sonora de referências que tive principalmente de família. Meus pais e meu irmão são muito responsáveis por isso, eu ouvi e continuo ouvindo músicas que eles ouvem e isso foi e ainda é muito rico musicalmente e artisticamente para mim. Enquanto estou respondendo a essa entrevista e desde já agradeço imensamente pela oportunidade, estou ouvindo The Cure e acessando uma lembrança maravilhosa da adolescência.
Outro fruto de sua versatilidade está presente nos convidados especiais do disco. Como se deu a seleção e quais as contribuições eles trouxeram para o resultado final do disco?
Me sinto muito privilegiado em ter trabalhado com todas as participações que estão no disco. A seleção se deu de forma espontânea e natural e todos trouxeram suas personalidades artísticas no mais alto nível para o disco. Foi realmente um sonho realizado, trabalhar com amigos e ídolos, hoje novos amigos. A música, a arte proporciona essa humanidade nas relações, nas visões que se convergem e que resultam em algo novo, resultam na criação. É maravilhoso isso.
No faixa a faixa divulgado a imprensa você faz menção a obra de pensadores como Descartes, Sartre e Feuerbach. Qual o papel da filosofia e a sociologia tiveram na sua formação?
O papel da filosofia e sociologia vem desde a adolescência nas aulas de filosofia que tinha na escola. Sou de uma época que tinha filosofia na escola e discutíamos muito sobre Descartes. Sartre e Feuerbach aprendi mais a respeito na faculdade. Tanto a filosofia como a sociologia são estudos que gosto de estar me aperfeiçoando não só como artista, mas também como pessoa, como ser humano. Realizar as analogias desses pensadores com a obra permitiu ampliar o entendimento atemporal do conhecimento. Identificando essas simetrias só me aproximam mais das raízes do pensamento, permitindo comparativos e paridades.
A cena musical nacional vive um de seus melhores momentos não só pela qualidade das produções, mas também pelo discurso de afrontamento aos ideais fascistas adotados pela população e governo. Você acredita que em tempos como os nossos, onde vemos um total esfacelamento da cultura, torna-se imperativa a necessidade da adotar um discurso político através da arte?
Com absoluta certeza, a arte tem um papel importantíssimo na educação e formação intelectual de uma nação, no estabelecimento e crescimento da cultura. Sem ela estamos fadados a alienação e a ignorância. O momento atual clama por um despertar e os artistas que se preocupam com isso estão numa missão muito maior que suas próprias artes, eles são operadores e instrumentos da mudança.
Por outro lado quando se olha o cenário mainstream da música, a parada de sucessos soa um tanto quanto mais do mesmo, sem demostrar a diversidade da música nacional. Nesse sentido a faixa “Replicantes” faz uma reflexão quanto a este estado da repetição da arte. O que aconteceu com o público em geral que tem preferido se relacionar com a arte em seu formato mais palatável em detrimento ao o que é de maior complexidade?
“Replicantes” é uma provocação. Uma provocação justamente a um recorte descrito lindamente por você, a “repetição da arte”, as conhecidas “fórmulas do sucesso”, o mais do mesmo é uma fórmula batida que só quem tem a sensibilidade de entender entende, fiz isso porque no rap não há mais originalidade, não há mais pioneirismo e é aquilo, “Yannick aceite e modifique o que você pode modificar, aceite o que você não pode e tenha sabedoria para distinguir uma da outra”. Em relação ao público, ele recebe o que quer e quem dá isso a ele dá o que dá, não há certo ou errado. Só há uma preocupação, até quando. A complexidade de algumas linguagens da arte tem o seu público da mesma maneira que a linguagem palatável também tem o seu.
O álbum foi lançado no fim do ano passado. Como tem sido a receptividade?
Estou muito feliz com a resposta do público de diversas gerações. Como o primeiro filme é de 1982 tenho recebido um retorno positivo das pessoas que viveram essa época, da mesma maneira da geração do filme de 2017, e também daqueles que leram o livro. Ainda há muito o que explorar sobre essa temática cyberpunk presente no disco e nas obras literária e cinematográfica. Em 2020 sairão alguns singles que fazem parte da continuação desta narrativa que o disco trouxe. No geral estou bem satisfeito, hoje é o meu melhor trabalho.
Você tem uma apresentação agendada para o fim de janeiro em São Paulo. Em seu Facebook você tem divulgado parte dos ensaios. Nesse sentido o que o público pode esperar?
Pode esperar um espetáculo teatral com muita performance e referências diretas dos filmes.
Quais são os planos futuros?
Lançar os singles que farão parte de uma versão estendida do disco O Caçador de Androides, gravar e lançar todos os videoclipes das 12 faixas e correr o Brasil com esse disco.
– Bruno Lisboa é redator/colunista do O Poder do Resumão. Escreve no Scream & Yell desde 2014. A foto que abre o texto é de Tiago Santana / Divulgação.