entrevista por Guilherme Lage
O trabalho do repórter, normalmente, não é o de opinar. Qualquer tom professoral ou autoridade expressada em algum assunto é melhor adaptada a resenhas e não a entrevistas. Ainda que a humildade seja uma característica de quem escreve este texto, posicionar-se em momentos obscuros é, não só um ato de político, mas um dever.
Deixando de lado toda a auto-rasgação-de-seda que tomou o primeiro parágrafo, resta dizer que o EP “Ditadura Assassina” (2019), do Armada, é um dos mais representativos registros musicais lançados no último ano da década passada.
O disco, que conta com duas faixas, não é um tapa na cara dos revisionistas de um dos períodos mais sombrios da história brasileira, mais um soco feroz. Um golpe de punho cerrado e cinco dedos no meio da fuça de quem se atreve a elogiar um tempo marcado por torturas e violações diversas.
“Ditadura Assassina”, segundo registro do grupo paulista nascido dos escombros do Blind Pigs, uma das mais importantes bandas a navegar os mares do punk rock brasileiro, traz um trabalho artístico impecável assinado por Paulo Rocker e a indignação de quem está muito, muito puto.
O vocalista Henrike Baliú falou um pouco sobre o processo de gravação do disco e a necessidade de manter a realidade escancarada em momentos de obscurantismo.
O timing pro lançamento desse disco foi perfeito, né? A intenção era realmente dar um sacode em quem tenta maquiar esse período?
É, foi bem por aí. A gente sempre se posicionou sobre isso desde a época do Blind Pigs. Hoje em dia tem muita gente que elogia o período militar e fala que foi bom ou nega tudo que aconteceu. Não foi nada bom, foi horrível o bagulho. Muita gente morreu, foi torturada. Então a gente queria mesmo dar um tapa na cara de quem faz isso.
“Rua de Trás” é uma faixa que me chamou atenção. Pelo que eu entendi se trata da divisão das pessoas, né? Das barreiras que vem sendo construídas entre elas.
Sim, eu fui por esse caminho mesmo. Quando escrevia eu me lembrei de muitas coisas da minha infância, de brincadeiras e tudo, ninguém mais brinca de polícia e ladrão na rua, igual falo no final (risos). Mas, claro, tem esse ponto de vista da separação sim. Não tem muito o que dizer, cara, você matou.
A arte do disco é sensacional, cara. Ficou realmente algo que remete totalmente aos quadrinhos. Como foi a ideia?
Agradeço demais que você tenha falado isso. Toda arte do Blind Pigs e do Armada foi feita pelo Paulo Rocker. Eu sempre fui muito fã de quadrinhos e toda arte da banda eu começo a pirar, faço uns esboços e depois mando pra ele. Estava focado nos anos 70 e a estética daquela época nas revistinhas, ele conseguiu captar muito bem. Ainda mais com a apresentação de cada membro da banda como procurados pelo regime.
Pro lançamento do EP vocês fizeram um show acústico. Como foi? É estranho tocar punk rock desplugado?
Não, cara, pra gente foi bem comum. Na verdade, todas as músicas do Armada são compostas assim, no violão. Foi também um jeito legal de lançar porque todos os nossos amigos levaram os filhos, as crianças na plateia se divertindo. A gente achou que seria um ambiente mais legal com um show acústico mesmo e foi demais!
Vi um texto seu em que dizia que sua concepção sobre o que é ser punk mudou muito nesses anos. Pode falar um pouco sobre isso aí?
Cara, mudou demais. Quando você é jovem você tem toda uma outra percepção de vida, outra visão de mundo. Com a idade e, claro, com a maturidade também, as coisas vão sossegando. E cara, é isso que eu quero hoje em dia: sossego. Eu tenho 45 anos, não tenho mais as mesmas visões que tinha quando era moleque. O Armada é uma banda que serve de terapia pra mim. Não quero mais perder um fim de semana com a minha esposa ou com meus filhos pra viajar pro interior numa van caindo aos pedaços pra ser explorado por produtor. Hoje eu acho que as coisas têm muito mais equilíbrio.
Uma coisa que reparei nesse EP e também no disco de estreia de vocês é que não rola nenhuma amarra musical. No “Ditadura”, notei uma certa influência de Social Distortion aqui e ali, mas nada muito pesado. É um som bem solto, original. É o que queriam mesmo?
Muito obrigado por falar isso, cara. Quando a gente formou o Armada eu disse que essa era uma banda pra gente não precisar ter nenhuma outra banda (risos). Não vamos ficar nos proibindo de fazer as coisas. Alguém fez uma música que não é tão punk rock? Pode trazer! “Ah, eu quero fazer um ska”. Vamo aí! Dub? Vamo tentar (risos). Como eu falei antes, a banda é uma terapia, é algo pra gente se divertir e não é pra ficar impondo nada a ninguém.
Voltando ao EP, o cenário underground, talvez não as bandas, mas muito do público, é bem cheio de revisionistas desse período. Apoiadores do novo governo. Como você enxerga isso estando inserido no underground há tanto tempo?
Olha, cara, na maneira que eu penso, em primeiro lugar, é uma tristeza isso acontecer. Esse governo é inimigo da cultura, é inimigo da educação, do artista, do professor. Eu como professor e como artista fico muito triste em ver pessoas que trabalham com cultura apoiando esse governo. Aí você entra na cena underground e punk rock. Você vê que tem uma galera que apoia de verdade. Tanto é que quando a gente lançou esse disco veio um ou outro falar “Ah, não acredito. Que coisa horrível! Então agora tudo é culpa do Bolsonaro?”. Acho que o legal desse disco é que quem é fã do Armada e apoia esse governo até gostou do disco, mas fica meio “sei lá”. Outros já falaram “Ah não, desencanei do Armada”. Então, mano, vai com deus. O que me preocupa de verdade é ver bandas que se intitulam punk rock não tomando posição. No final do Blind Pigs era um outro mundo, apesar de ter sido poucos anos atrás. Era um mundo muito diferente. O Blind Pigs era uma banda muito atacada pela cena antifa, não consigo entender porque. A gente já não levantava bandeira, não tinha o que tinha hoje. Mas hoje em dia é outro mundo, acho que é obrigação de uma banda punk rock tomar uma posição. Vejo muitas bandas que ainda gostam de manter esse rótulo apolítico e acho que não é mais hora pra isso. É hora de escolher um lado.
O Armada ainda que faça poucos shows, é uma banda que em estúdio é bem ativa. Ano passado saiu o primeiro disco, esse ano o EP. Em 2020 chega o play novo?
Sim, a gente tem o disco gravado já, falta só colocar a voz. O disco sai ano que vem, só não sei quando. Mas te adianto que sai pela Pirates Press Records nos Estados Unidos e aqui no Brasil sai pela Comandante Records.
Por que fazem tão poucos shows? A vida pessoal ocupando tempo ou pra ser uma coisa mais divertida mesmo?
Como eu falei, banda pra mim é uma terapia, tenho uma banda pra não ficar maluco (risos). Se eu começo a tocar toda hora, não dá. Prefiro dar um ou dois shows por ano, que esses shows sejam eventos. Sejam muito legais. O que eu gosto é entrar em estúdio. Claro que se a cena brasileira fosse diferente eu toparia fazer muito mais shows, mas não é. Não tô a fim de dor de cabeça, então ultimamente eu só quero sossego e você sabe como é a cena do Brasil. A gente escolheu isso pra não se estressar, passar tempo com as nossas famílias e pro Armada ser sempre uma terapia, não virar trabalho como Blind Pigs já era nos últimos anos.
No próximo disco, esse também vai ter convidados especiais como no primeiro?
Olha, cara, inicialmente, não. Acho que todo disco tem que ser diferente do outro. Assim como você pega o “Ditadura Assassina”, que é um compacto com duas músicas, mas você vê que elas são diferentes das músicas do “Bandeira Negra” (o disco de estreia). Esse próximo eu te garanto que vai ser bem diferente do “Bandeira Negra” também. Em termos de participação, eu gosto de fazer com pessoas inusitadas. Nesse, quando ele sair, você vai entender porque não chamei ninguém pra fazer. Ainda não tá fechado, vai que no final a gente fala “puta! Precisa ter!” (risos). As duas participações do “Bandeira Negra” foram o Kiko Zambianchi e o Sergio Reis, e não foi nada planejado, foi rolando. Mas tem que ser alguém que o cara pensa “puta! Não acredito que chamaram esse cara” (risos).
– Guilherme Lage (www.facebook.com/breadandkat) é jornalista e mora em Vila Velha, ES.