Texto e fotos por Nelson Oliveira
Letícia Novaes até poderia ter subido ao palco do Largo Tereza Batista, no sábado, 26 de outubro, como a personagem central do livro de Jorge Amado, que batiza o espaço: cansada de guerra. Afinal, se encerrava em Salvador a longa turnê “Letrux Em Climão de Despedida”, que passou por 13 cidades entre setembro e outubro. A cantora e compositora, porém, fez a noite render: cantou na íntegra o premiado álbum “Em Noite de Climão” (2017), fez releituras de canções de outros artistas, declamou poesias e atiçou o público com sua costumeira performance teatral.
O público, a propósito, estava sedento por Letrux. Os portões foram abertos às 20 horas, 1h30 antes do início previsto do show, e os fãs da carioca lotaram rapidamente o largo, que – diria Tom Zé – não é bastante largo para abrigar tal mundaréu, mas acanhado, seguindo o padrão dos antigos becos do Pelourinho. Os mais apaixonados se acotovelavam para ficar o mais próximo possível do palco e clamavam por Letícia.
A algazarra da plateia era um aperitivo de como “a palavra do climão” – como Letrux gosta de dizer – conquistou apreciadores em Salvador. Cerca de um ano atrás, a carioca fez um show vigoroso na quarta edição do Festival Radioca, numa praça vizinha à Tereza Batista, e certamente arrebanhou novas ovelhas. Neste sábado, o público mostrou um nível de euforia raramente visto mesmo na Bahia, onde a audiência costuma ser bastante calorosa.
Envolta num véu vermelho translúcido e usando óculos escuros, Letícia Novaes entrou no palco como se fosse uma ninja, cortando a nuvem de gelo seco até alcançar o microfone. O show começou com as promessas de “Vai Render”, e todos sabiam que Letrux não passaria batida naquela noite. Desde os segundos iniciais, a carioca tinha a atenção total dos presentes e o domínio do que acontecia no Largo Tereza Batista.
O show continuou em clima festivo nas canções seguintes (“Ninguém Perguntou por Você” e “Além de Cavalos”) e teve um mar de mãozinhas para o alto em “Puro Disfarce” e “Coisa Banho de Mar”. Nos intervalos, Letrux aproveitava para se refrescar com água colocada num jarro plástico vermelho bastante kitsch, e também emendava discursos políticos. Quando os presentes começaram a “pedir a Anitta”, Letícia intercedeu – não por causa do destinatário, é claro. “Cuidado com as palavras. Elas têm um peso. Podemos pensar em outras formas de protesto que não envolvam preconceito homoafetivo – e também heteroafetivo, por que não?”, ponderou.
Antes de entrar num ponto de virada da apresentação, Letrux cantou um trecho de “Unchained Melody”, canção gravada em 1965 pelos Righteous Brothers, e que ficou famosa a partir de 1990 como tema romântico do filme “Ghost”, e emendou com “Amoruim”, para delírio do público local. Na sequência, Letícia relembrou a trajetória de “Em Noite de Climão”, que iniciara com o crowdfunding que permitiu a gravação do álbum e fluíra para um biênio de hype e turnês – como a que acabava naquele momento, em Salvador.
Em seu discurso, a carioca trouxe à baila um de seus temas favoritos: a astrologia. “Em 2017, eu tinha 9 reais na minha conta do Banco do Brasil. Era uma quarta-feira de cinzas e eu decidi ir ao astrólogo. Fiquei com saldo negativo, mas ele me falou para eu confiar no financiamento coletivo. ‘Mas o povo tá no bloquinho bebendo, como é que vão me dar dinheiro?’, eu respondi. Acabou que deu tudo certo”, confidenciou.
Letrux não fez esta digressão à toa. Além de ter querido contar a história por conta do encerramento da turnê, outras questões simbólicas estimulavam as sinapses dessa capricorniana com ascendente em virgem. No dia seguinte, ainda em Salvador, ela gravaria o clipe da canção que cantou, sozinha no palco, logo após conversar com o público: “5 Years Old”, que conclui o seu álbum de forma nostálgica. O clipe, com a direção da soteropolitana Mariana Falcão, será lançado ainda neste ano.
Caminhando para o final do espetáculo, Letrux passou pelo transe de “Hypnotized”, pelo hit “Que Estrago” e fez uma releitura de “Ouro Puro” (canção de Elba Ramalho que lançará como single no início de 2020). Em êxtase, a cantora ainda teve fôlego para descer do palco e dançar com os fãs em “Flerte Revival”.
Depois de brincar que ficava feliz por ninguém ter se machucado, Letícia se despediu com “Noite Estranha, Geral Sentiu”. Muito comovida, Letrux chegou a ir às lágrimas pelo afeto do público e pelo fim da turnê. Para encerrar de vez, a banda voltou ao palco para o bis e tocou novamente “Ninguém Perguntou por Você”.
Letrux voltará aos palcos apenas em 2020, depois que concluir a gravação de um novo álbum, previsto para o ano que vem, e apresentar um show reformulado. Na espera de um trabalho tão potente e bem-sucedido quanto “Em Noite de Climão”, a carioca certamente contará com pregadores bastante dedicados a espalhar a “palavra do climão” para os ímpios. Ao menos em Salvador.
– Nelson Oliveira é graduado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, atua como jornalista e fotógrafo, sobretudo nas áreas de esporte, cultura e comportamento. É diretor e editor-chefe da Calciopédia, site especializado em futebol italiano. Foi correspondente de Esportes para o Terra em Salvador e já frilou para Trivela e VICE.