Texto por Renan Guerra
Fotos de Vitória Proença e Marcelo Cabala
Realmente em meio aos morros, a 11ª edição do Festival Morrostock aconteceu durante três dias em Santa Maria, no centro do Rio Grande do Sul. Com apresentações de mais de 40 artistas, além de oficinas, trilhas e outras atividades, o que prevaleceu nesses dias de evento foi um discurso de liberdade e igualdade, numa edição que foi certamente dominada pela força das mulheres. Realizado no Balneário Ouro Verde, que fica a cerca de 25 km do centro de Santa Maria, o conceito ideal era acampar no evento. Eu, que nunca tinha acampado, já fiquei naquela tensão: armar barraca, levar todas as tralhas, dormir “na natureza”, etc e tal. Adendo inicial: eu iria completamente sozinho, conhecendo quase ninguém que estaria no evento.
DIA 1
Após uma carona num carro lotado e novas amizades, chegamos ao festival. Montei a barraca (uma vitória) e corri para ir à primeira trilha numa caminhada de meia hora para chegar a uma cachoeira linda, água limpinha e natureza intocada com os trabalhos sendo abertos com um banho e mais amigos. De volta ao acampamento, era hora de se preparar para a maratona de shows. Com dois palcos, Pacal, o menor, e Pachamama, o principal, o primeiro dia iniciou com shows de bandas locais de Santa Maria: no palco menor, The Césaros e, na sequência, o ótimo show da Alpargatos. No palco principal, os santamarienses da Geringonça surgiram às nove da noite de forma divertidíssima: vestidos com macacões de trabalho, a formação “em obras” da banda apresentou um som que empolgou o público, numa vibe meio Grupo Rumo meio Tom Zé. O momento fofo da apresentação foi quando a vocalista anunciou no palco sua gravidez, fato que nem sua mãe sabia ainda.
Ainda no palco principal, bons shows dos gaúchos da Cuscobayo e da Rinoceronte, ambos animados e potentes, muito bem quistos pelo público do festival. Já pela uma da manhã, os cearenses do Selvagens à Procura de Lei, com show enérgico, fez o público cantar junto. Depois disso, no palco menor, surgiram as meninas do 3D, rock pesado, barulheira, diversão pura. De todo modo, o melhor momento do primeiro dia foi o show do Dingo Bells: público cantando junto, pulando e, inclusive, subindo no palco e culminando em uma menina transmitindo sua mensagem pelo microfone da banda. O som alto ainda ecoava com The Outs e Cartolas, mas o sono (e o cansaço do dia) foi mais forte.
DIA 2
O sábado começou cedo com sol fortíssimo, café preto, banho gelado de rio, fila pro banho e aquela cerveja logo de manhã, pois onze e meia já tinha show no palco menor: Devilish, Transneptunia e Cactus Flor abriram o dia, que ainda ia longe. Logo depois do almoço, rolou um dos melhores shows do Palco Pacal: My Magical Glowing Lens. Acompanhada por músicos das bandas Catavento e da Salve Jurema, a pequena Gabriela Deptulski mostrou faixas do seu disco “Cosmos” e levou psicodelia, viagens e muito barulho para o palco e para o chão, onde Gabriela largou sua guitarra e tirou alguns sons em meio ao público. Às 4 da tarde, o Palco Pachamama era aberto com o Bloco da Laje, grupo de Porto Alegre muito esperado pelos presentes. Com panos coloridos e maquiagens fortes, o Bloco da Laje fez um show carnavalesco, teatral e exagerado, que levantou a platéia que pulava e cantava as faixas em coro. O momento mais icônico da apresentação foi a entrada de Jesus no palco, trazendo sua mensagem de amor, para na sequência se despir e pelado cantar a canção “Pregadão”, dos versos “eu to pregadão / eu to peladão”. Festa dionisíaca no maior estilo Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona, o show da Laje levantou os ânimos e mostrou que o segundo dia ainda prometia.
Na sequência, Estrela Leminski e Teó Ruiz numa vibe mais calma, com o público sentado na grama. De poesia um tanto rasteira, a dupla não convenceu: falta carisma para Estrela, as canções não ajudam e seu “iPad como instrumento” é a cereja de um bolo realmente amargo. Uma cervejinha na beira do rio estava mais convidativa. Mais tarde, foi a vez de Paola Kirst surgir acompanhada do grupo Kiai. Entre o samba e o jazz, o show de Paola cativou o público por sua delicadeza: galera sentada no gramado, Paola passeando entre canções e poemas, a banda com pequenos arroubos de free jazz, um show realmente instigante, do tipo que dá vontade de ouvir mais. A deliciosa faixa “Pão com Mel” foi o destaque.
Sete da noite e a chuva começa a cair no inicio o show da Mulamba, aberto com a excelente faixa “Mulamba”. Na sequência, um medley em que transformaram faixas de funk em canções quase punks, indo de Deize Tigrona a Linn da Quebrada. Ainda rolou uma versão para “Não Recomendado”, de Caio Prado, e a forte faixa “P.U.T.A.”, cantada de forma quase teatral por Amanda Pacífico e Cacau de Sá. Destaca-se o fato de que Fer Koppe tocou seu violoncelo de peito nu, inspiração que se espalhou pela platéia, recheada de mulheres seminuas. Com força sonora e canções intensas, as mulheres do Mulamba fizeram, certamente, o melhor show de todo o festival. Amanda e Cacau conseguem cativar a atenção, divertem, fazem rir e não têm medo de colocar o dedo na ferida num show catártico, de forte cunho político, mas ainda assim uma festa de libertação que merece ser assistido por todos o quanto antes.
Depois disso subiram ao palco Pacal as bandas Joe Silhueta e Bardos da Pangeia, rock potente e basicão, que esquentou para o que tantos esperavam: Os Mutantes. Curiosamente, na programação do festival (inclusive no copo reutilizável) estava escrito “Os Murantes”, um simples erro de digitação (o r e o t ficam lado a lado no teclado) que deu pano para as piadas. Todo mundo falava dos tais Murantes, tanto que na passagem de som o pessoal gritou em coro “Murantes! Murantes!”. Como era de se esperar, “Os Murantes” atraíram o maior público do festival, com a galera realmente animada para assistir à banda clássica. Porém, o grupo iniciou tocando o novo single, “Black And Gray”, recebido com certa apatia pelo público. As primeiras canções ainda seguiram pelo repertório novo da banda, mas o que chamou a atenção foi Sérgio Dias incomodado com a afinação das guitarras, tanto que em certo momento ele falou ao microfone, olhando para sua banda, “quem foi que afinou essas guitarras?”. O tom era de deboche, o que soou desnecessário de ser dito ao microfone.
O show só animou um tanto quando eles resolveram tocar “Technicolor”, depois ganhou força realmente com “Minha Menina”. De qualquer modo, mesmos nos momentos mais clássicos, as versões tocadas eram um tanto enfadonhas, recheadas de firulas e pendendo mais para o rock progressivo e bem menos para a psicodelia. “Bat Macumba”, por exemplo, virou um mar de firulas quando chegou a sua metade. Enfim, um show enfadonho e que vale só pela nostalgia de ver um ícone como Sérgio Dias ao vivo. De qualquer modo, “Os Murantes” não baixaram a bola da noite, pois ainda tinha muita coisa boa pela frente: os cariocas da Ventre quebraram tudo no palco principal, com um show pesado, ágil e forte. Larrisa Conforto, baterista da banda, foi a estrela da apresentação: conclamou as minas no microfone, quebrou tudo nos pratos e levantou a galera. Logo em seguida, no palco Pacal, o Musa Híbrida trouxe psicodelia e uma viagem eletrônica que embalou o pessoal, que se aglomerou sob a cobertura, já que simplesmente começou a cair a maior chuva.
A chuvarada cessou bem na hora dos canadenses do Les Deuxluxes entrarem no palco Pachamama. Anna surgiu de saltos altos brilhantes e mangas bufantes, num set que começou já na porradaria. O público foi se aproximando aos poucos, ainda receoso do chão molhado, até ser cativado pela força da banda e a fofura do pouco português de Anna. Da metade pro final, a platéia já estava em êxtase, fazendo roda punk, pulando e gritando junto. No final do show, Anna revelou que sua maior alegria foi a chuva ter parado, ela estava se sentido um tanto mágica & mística por ter feito o temporal cessar com a guitarra. Depois do duo canadense ainda teve Snow Twins, no palco Pacal, mas as pernas queriam descanso. A chuva levou um pouco de água para dentro da barraca, e enquanto a secava era possível ouvir, ao fundo, o show do Hierofante Púrpura. Partiu sono e, enquanto sonhava, Tagore se apresentava – naquele que, no dia seguinte, seria considerado um showzão por quem venceu o avançado da hora.
DIA 3
No domingo o clima era de desmontar acampamento com muita gente desarmando barracas e arrumando sacolas em meio a um mormaço, que ora trazia pancadas de chuva ora sol forte. O dia começou com um show mais rural, do Nino, no Palco Pacal. Após mais um banho de rio – uma despedida – foi possível conferir a passagem de som da Francisco, El Hombre, que se apresentaria à tarde: um público já se reuniu pra acompanhar o trabalho da banda e dançou ali mesmo. A chuva começou a cair e muita gente aproveitou para se banhar ao som dos acordes da banda. Logo depois, Thiago Ramil, tranquilo e belo, casou muito bem com a chuva fraca que ainda caia. Às duas da tarde abriram-se os trabalhos no palco principal: abaixo de muita chuva, o grupo argentino Tamboorbeat animou os presentes, que não se afugentaram pela água e só aumentou com as batidas eletrônicas do duo, uma espécie de trance psicodélico, que transformou o festival numa rave debaixo d’água.
A chuva cessou um pouquinho logo depois e muitos se posicionaram para assistir ao Boogarins num showzão barulhento, que fez o público dançar, cantar e viajar junto. Entre chuva e sol, os goianos fizeram um dos grandes shows do dia, com psicodelia em altas doses e uma qualidade sonora fantástica. No palco menor, a norte-americana Coleen Green, sozinha no palco com sua guitarra e quase escondida sob seu boné, fez um show tímido, interessante, mas um tanto banal, que contrastou com a Francisco, El Hombre, que lançou “Calor da Rua” logo de cara e levantou o público. Além da energia potente da banda, o que chamou a atenção de todo mundo foi o cachorrinho que também se posicionou no palco, entre os músicos – ele ficaria no palco até o final do show, participando inclusive da foto oficial da banda.
Faixas como “Bolso Nada” e “Tá com Dólar, Tá com Deus” levantaram o público, que pulava e cantava junto, porém o momento mais catártico foi em “Triste, Louca ou Má”, com um coro que cantava alto e muitas mulheres indo as lágrimas ao ouvir os versos de Julianna Strassacapa. Depois da catarse, tudo virou festa, com o pessoal aglomerado, pulando, fazendo danças quase coreografas e seguindo os comandos da banda. Outro dos muitos momentos marcantes do show foi quando Larrisa, da Ventre, se jogou, dando um mosh na galera. Além dela, era possível ver no fundo do palco a galera da Ventre e do Les Deuxluxes dançando a milhão com a Francisco, el Hombre. Na plateia, os organizadores do próprio Morro também extravasavam, já que esse era o show que tinha cara de finaleira.
Na sequencia vieram os uruguaios do Milongas Extremas e os argentinos da El Sonidero y Fantarria Insurgente, porém o ônibus em direção ao centro de Santa Maria já estava a postos. De qualquer forma, o show da Francisco cumpriu o papel de “encerrar” o evento com altas doses de energia boa, fazendo muita gente ir embora de sorriso no rosto. Em três dias de Morrostock foi possível presenciar muitas mulheres fodas se apresentando nos dois palcos (Mulamba, Ventre, Francisco El Hombre, My Magical Glowing Lens, Paola Kirst, 3D, Geringonça, Tamboorbeat, Musa Híbrida e outras) e muitas minas trabalhando em diferentes espaços do festival, provando que esse era um evento de força e liberdade feminina. Havia mulheres cantando, tocando instrumentos, tirando as camisetas, trabalhando, correndo e festejando, mas acima de tudo mostrando que o lugar delas é aonde elas quiserem.
No final das contas, o saldo da a 11ª edição do Festival Morrostock foi positivíssimo: três dias de chuva, suor & cerveja, como diz uma velha canção, num evento organizado, tranquilo, com poucas filas, cerveja sempre gelada, comida gostosa e uma energia boa demais. Para quem começou o festival sozinho, fiz muitos amigos, que sorriam, acenavam, abraçavam e ajudavam sempre que preciso, numa energia de comunhão e confraternização. A imagem que o Morrostock costuma passar e a de um evento (em grande parte) feito para hippies, porém a boa surpresa nesses três dias foi ver a diversidade que circulava pelo Balneário, desde hippies (claro!) até metaleiros, hipsters, viados, sapatões e toda diversidade de identidades de gênero que alguns querem calar, todo mundo junto, com muitas famílias, crianças e cachorros (muito fofos, passeando pela galera e ganhando carinho aqui e acolá) curtindo o festival. A imagem que fica é de um espaço de liberdade em que vivenciamos uma possibilidade maior de harmonia, tranquilidade e respeito. Portanto, que venha o(s) próximo(s)!
– Renan Guerra é jornalista e colabora com o sites A Escotilha. Escreve para o Scream & Yell desde 2014.
Que pena que não viu Caramurú e Julião!