por Marcio Guariba
Fotos: Viviane Nunes (Vicky)
Essa nova turnê do U2 é um atestado de que eles são maiores do que realmente aparentam ser. São precursores da geração ‘parque de diversão’ de shows, onde arrastam multidões que, na maioria das vezes, só estão ali pelo evento em si. Que pulam fervorosamente em “Sunday Bloody Sunday” e “Pride” e vão buscar cerveja em “Mothers of the Disappeared”, ou vão ao banheiro em “Running to Stand Still”.
Porém, mesmo quando entregam o que o público espera, e eles sempre pelo menos tentam entregar, há um viés artístico/poético muito significativo. Os quatro em um diminuto palco no meio de 80 mil pessoas sem nenhum efeito visual. Depois, iniciam o tributo ao seu disco mais famoso com três hits avassaladores, mas que funcionam como trilha sonora de um road-movie árido, frio e belíssimo sendo apresentado em uma tela/filme fotográfico gigante. Somem, desaparecem pela arte.
A euforia extasiante que a sequência inicial causa na massa é repentinamente substituída por uma sensação geral de admiração e total falta de interesse. Apesar de famosíssimo iconograficamente e de ter vendido mais de 25 milhões de cópias em um período que isso ainda era possível e alcançável na indústria da música, “The Joshua Tree”, o disco aniversariante em questão, não teve suas músicas trabalhadas através dos (30) anos. A única canção que sobreviveu ao período que cobriu a divulgação do álbum e do seu disco-irmão lançado em 1988 (“Rattle and Hum”) e foi até 1989, foi “Bullet the Blue Sky”, um rock zeppeliano pesado e teatral, com letra complicada e frequentemente alterada de difícil memorização, que não se conecta com coros e, consequentemente, com grandes estádios e suas massas. No mais, há sete canções pouquíssimo ou nunca executadas ao vivo que somente fãs ouviram e guardaram em seus corações através desse longo tempo.
E é nesse momento que o show tenta se comunicar um pouco mais. Mas só um pouco. Talvez pela consciência da dificuldade de relacionamento do público, a banda começa a aparecer mais no maravilhoso telão, passa a caminhar mais pelas passarelas. Porém, mesmo nesse momento e, especialmente nesse momento, é aonde o show aparece fantasticamente para os fãs mais “antigos”. Ali, quando os celulares abaixaram, os espaços na multidão se abriram e muitos olhavam perdidos e admirados para o que viam, esses fãs reencontravam o U2 que amam e admiram.
A furiosa e já citada “Bullet the Blue Sky”, a delicadamente triste “Running to Stand Still”, que é quase uma antítese do que se tocar em grandes espaços, mas que os preenche com uma gaita solitária ao seu final. Uma nova versão de “Red Hill Mining Town” que, mesmo inferior a original, ainda é melhor que todo o repertório da banda produzido nos últimos 20 anos. “In God’s Country”, tocada literalmente no deserto debaixo da árvore que da título ao álbum, recriados em um 3D impressionantemente lindo. “Trip Through Your Wires” e sua Cowgirl (Morleigh Steinberg, esposa do guitarrista The Edge) rodando seu laço enquanto uma bandeira norte-americana é pintada em uma casa velha e suja.
“One Tree Hill”, outra pérola, e sua lua cheia, e suas referência indígenas. “Exit”, um petardo gravado de improviso que ganhou um tratamento teatral digno dos grandes momentos de inspiração de Bono nos anos noventa, e a ecumênica “Mothers of the Disappeared”.
Um filme ao vivo. Um grande drive-in, aqueles cinemas antigos que se assistia de dentro do próprio carro nos anos cinquenta e sessenta. Imagens iconográficas da cultura norte-americana. Seu lado negro. Bandeiras, sexo, religião, insanidade, estradas, desertos, guerras. Signos visuais iconográficos. Palmas para o diretor e fotógrafo Anton Corbjin. Palmas para os produtores Brian Eno e Daniel Lanois, quinto e sexto membros ‘não-oficiais’ do U2 por mais de duas décadas. E palmas para Bono, Edge, Larry e Adam.
Arte. A-R-T-E. ARTE!!!!!
Sim, arte.
Mas, cadê o parque de diversões que eu comprei no meu ingresso? Eu paguei caro pra andar de barco Viking, sentir medo na montanha russa, beijar minha garota na roda-gigante, me molhar no splash. Quero gritar meus Ooohhhs. Quero tirar o pé do chão, fazer minha selfie no meio da música. ‘O U2, cadê você, eu vim aqui só pra te ver’…
E o U2 volta. Volta e com o pé no peito e sem medo de ser feliz. Uma versão Coldplay de “Beautiful Day”, o rock farofa de “Elevation” e o último hit da banda, “Vertigo’, de 2004.
Ai meu amigo, é onde o povo de bandana e camiseta comprada no dia vai a loucura. E os fãs mais antigos caminham pro fundo.
“You’re the Best Thing About Me”, a mais recente tentativa da banda de ter um hit, vem esquálida depois de tantas canções fantásticas dentro das suas propostas. “Ultra Violet”, uma fan-favorite que se encaixou na mensagem pró-feminismo que Bono está a fim de falar dessa vez, ao invés da Etiópia, da fome ou do perdão da dívida externa. E “One”, que finaliza pra que você vá embora pensando ‘Meu Deus, que puta show’.
E é um puta show. Eles fazem um grande esforço para que o público não se lembre que são uma banda com espírito artístico fantástico. Não tem vergonha de ser macaco de auditório nesse business do circo/show/parque de diversões. Mas fazem questão de nos mostrar que ali, no meio de tantos ohs e uhs, existem quatro caras que se preocupam com sua arte e sua obra.
SET LIST
Sunday Bloody Sunday
New Year’s Day
Bad (citação de “Águas de Março”)
Pride (In the Name of Love)
The Joshua Tree
Where the Streets Have No Name (citação de “California (There Is No End to Love))
I Still Haven’t Found What I’m Looking For
With or Without You
Bullet the Blue Sky (citação de “War” e “America”de “West Side Story” )
Running to Stand Still
Red Hill Mining Town
In God’s Country
Trip Through Your Wires
One Tree Hill
Exit (citação de “Wise Blood” e “Eeny Meeny Miny Moe)
Mothers of the Disappeared
BIS
Beautiful Day (citação de “Mas Que Nada”)
Elevation
Vertigo (citação de (I Can’t Get No) Satisfaction” e “It’s Only Rock ‘n’ Roll (But I Like It)”)
SEGUNDO BIS
You’re the Best Thing About Me
Ultraviolet (Light My Way)
One (citação de “Invisible”)
Leia também:
– Especial ‘Zooropa’ 20 anos – Seja tudo o que puder ser, por Marcio Guariba (aqui)
– Especial ‘War’ 30 anos – Os meninos vão à guerra, por Marcio Guariba (aqui)
– Live Youtube: a tecnologia caminha de mãos dadas com o U2, por Marcelo Costa (aqui)
– Os três primeiros álbuns do U2 relançados em versão deluxe, por Marcelo Costa (aqui)
– U2 em São Paulo: um megashow com jeito de festinha particular, por Tiago Agostini (aqui)
– “How To Dismantle An Atomic Bomb“: um disco frouxo do U2, por Jonas Lopes (aqui)
– “All That You Can’t Leave Behind”: a volta do U2 ao rock básico, por Marcelo Costa (aqui)
– Bono: um gênio de coração mole ou um completo imbecil?, por Diego Fernandes (aqui)
Falar o quê? Perfeito.
Texto e análise perfeitos!
Melhor texto que li sobre o show. No meio de tantos equívocos escritos nos grandes jornais, é um alívio ler alguém que de fato conhece o artista em questão. Parabéns, Márcio!
Marcio….Not questions…..sintetizou tudo e todo o sentimento de um fã de verdade…..
Perfeita análise, parabéns.
Eu já fui a mais de 20 shows do U2 e confesso que achei a turnê Joshua Tree 2017 previsível e coreografada demais. Quase como “viu 1 show, viu todos”. Mesmo assim eu fui a 7. O motivo? Exatamente para poder ouvir o Joshua Tree ao vivo da faixa 4 pra frente. As outras a gente ouve o tempo todo.
Me emocionei no dia 25 pensando que eu provavelmente estava presenciando a última vez que o U2 tocava muitas daquelas músicas ao vivo. Espero estar errada. One Tree Hill merece voltar, Running funcionará melhor em uma turnê de arena e Exit foi sem dúvida um dos pontos altos deste ano.
Pena que acabou, mas ano que vem tem mais U2. Que venha a Experience & Innocence Tour!