Entrevista por Gil Luiz Mendes
Existem vários desafios quando se ousa pegar uma obra popular e consolidada dentro da música e se tenta fazer uma releitura. O risco de soar piegas e apenas copiar o que já foi feito é grande, assim como também não é difícil errar na mão e desconstruir algo que se tornou comum aos ouvidos. Há ainda quem afirme que certos trabalhos são sagrados e o melhor a fazer é não tocá-los.
Charles Gavin, ex-baterista do Titãs e um profundo pesquisador de música popular brasileira, foi movido pela vontade de voltar a assumir as baquetas de uma banda e fazer um tributo para um dos grupos que mais o influenciou. Dessa inquietação nasceu o Primavera nos Dentes, quinteto formado como um tributo ao Secos & Molhados, um dos grupos mais inovadores que já aparecerem no pop nacional.
Acompanhado por Paulo Rafael (Ave Sangria e Alceu Valença) na guitarra, Duda Brack no vocal, Pedro Coelho (Cássia Eller – O Musical / Dona Joana) no baixo e Felipe Ventura (Baleia / Xóõ / Cícero / Vitor Araújo) no violino e na guitarra, Gavin pescou 11 faixas dos dois álbuns do grupo de João Ricardo, Ney Matogrosso e Gérson Conrad, e após um ano e meio de ensaios e rearranjos das músicas apresenta “Primavera nos Dentes”, o álbum.
“A obra do Secos & Molhados sempre esteve relacionada a minha carreira”, conta Charles Gavin em entrevista por telefone. Ele ainda explica como surgiu a ideia de gravar canções do grupo, a escolha das músicas, possíveis shows e como os integrantes do Secos & Molhados receberam essa homenagem: “O Ney falou que pegamos uma música pop brasileira e transformamos em um disco pesado. Enquanto baterista é isso que eu sei fazer. Sou um baterista de rock”, diz Charles. Confira o bate papo.
Como surgiu a ideia de montar o Primavera nos Dentes?
O plano inicial era voltar a tocar. Eu saí dos Titãs em 2010 para repaginar a minha vida, mas o baterista continuava vivo. Não me aposentei e nem nunca disse que não iria mais tocar. Passei um tempo recompondo a minha vida e depois comecei alguns projetos. Comecei a banda Panamericana com o Dado Vlla-Lobos e o Toni Platão, fizemos alguns shows, gravamos um disco que não conseguimos lançar, depois o Dado seguiu em turnê com a Legião Urbana, o Toni foi fazer o seu disco solo e eu continuava querendo tocar. Antes de pensar com quem fazer, o pensamento era “o que fazer, que música tocar?”
E por que fazer esse tributo ao Secos & Molhados?
Por uma série de razões. Para mim é uma música que faz parte da minha vida desde que foi lançada em 1973 e 1974. Eu tinha 12 para 13 anos. Profissionalmente, eu me relacionei com essa música. Os Titãs também tinham uma relação muito forte com o Secos & Molhados. A gente chegou a colocar “Sangue Latino” como citação em uma das nossas músicas do disco “Domingo” (1996). O clipe de “Eu Não Aguento” é uma homenagem a capa do primeiro disco do Secos & Molhados. A obra deles sempre esteve relacionada a minha carreira. Eu pensei: se pra mim foi importante, para os outros também deve ser. Então quis tocar esse som e ir para estrada com esse repertório.
Como foi para juntar os músicos?
Falei com o Paulo Rafael e falei com a Duda, que foi indicação do Felipe Abreu, irmão da Fernanda Abreu, que é preparador vocal. A Duda trouxe o Felipe, que é da banda Baleia. O Paulo Rafael chamou o Pedro Coelho, para fazer o baixo. Quando a gente começou a exercitar esse repertório, tentando tocar os originais, não estava soando bem na nossa mão. São arranjos incríveis, mas a gente tentava executar e não estava se sentindo a vontade.
Foi por isso que optaram por versões e não por covers?
Para mim o legal e o relevante é ouvir o disco original. Com aquelas pessoas, com aqueles timbres, com o som da época. Ficou muito claro para nós que o desafio era se lançar sobre essa obra e ter uma abordagem autoral sobre aqueles arranjos. Não se distanciar para ser diferente, mas se distanciar porque o original é incomparável. Foi um processo para mim, que queria ir logo para os palcos. Ficamos um ano e meio fazendo isso no meu home studio. Ensaiando, debatendo e ouvindo esses discos à exaustão. Não havia ainda um disco nosso planejado, a ideia era apenas botar isso na estrada.
E como tudo isso se transformou nesse álbum?
Algumas pessoas souberam que a gente estava ensaiando. Uma delas foi o Rafael Ramos, que soube através do Paulo Rafael. Ele foi a segunda pessoa, fora a gente, que ouviu as nossas demos. Ele gostou e quis estar no projeto e nos convidou para gravar na Deck. Isso foi em dezembro do ano passado. Por conta dos outros projetos de cada um, só foi possível gravar em abril deste ano. Como não tínhamos pressão nenhuma para entregar esse trabalho, isso nos ajudou bastante. Encaramos esse desafio enorme que era pegar uma obra que é extremamente conhecida e relevante para música brasileira. Uma obra que quebrou barreiras e costumes de época. Colocou várias questões em debate.
Como foi selecionar as 11 canções que estão no disco?
A gente considerou os dois discos de igual para igual. O segundo é tão relevante quanto o primeiro, e dentro dele há algumas canções que para mim são conhecidas, mas para algumas pessoas elas passaram batidas. Depois de quase 45 anos que essas obras foram lançadas e mesmo com a vinda da internet, as pessoas ainda dependem muito da indicação de alguém para ouvir algo. Por isso que o rádio é tão importante, porque ele toca a música para você. Agora procurar música, mesmo que seja em streaming, dá algum trabalho. Acho que é por isso que na música brasileira a gente tem tanta música boa que pouca gente conhece. Por que? Porque ela não é tocada no rádio e nem na televisão. Por isso temos uma arca do tesouro inesgotável na música brasileira. Considerando isso, é inegável que o segundo disco do Secos & Molhados é menos conhecido do que o primeiro. O álbum de estreia deles, da primeira música do lado A até a última do lado B, a gente sabe tudo. Nossa escolha passou também por esses critérios e também pelas músicas que estavam encaixando melhor quando estávamos tocando. Foi um processo basicamente experimental. Teve música que a gente vai ter que tocar ao vivo e que a gente ainda não chegou a lugar nenhum com ela, como, por exemplo, “Assim Assado” e “Mulher Barriguda”.
Como foi o feedback do Ney Matogrosso e dos outros integrantes do Secos & Molhados sobre o Primavera nos Dentes?
Em fevereiro eu li que o Ney iria se apresentar com a Nação Zumbi no Rock in Rio. Fiquei muito preocupado porque estávamos há um ano e meio ensaiando e corria o risco de acharem que estávamos sendo oportunistas. Por isso eu liguei para o Ney Matogrosso para explicar o que a gente estava fazendo. Ele foi tão receptivo e nos incentivou a tocar o projeto. Paulo Mendonça, que é o compositor de “Sangue Latino”, também estava sabendo e disse que o nosso trabalho estava interessante e diferente. Quando o disco ficou pronto, fizemos um encontro em São Paulo para mostrar em primeira mão as músicas na casa da jornalista Patrícia Palumbo e chamamos o Gérson Conrad e o Willly Verdaguer (que tocou baixo na formação clássica da banda). Não foi um evento oficial, mas um ato de respeito por essas pessoas. O Ney não compareceu por estar em turnê, mas mandei um CDR para ele. E todos adoraram. O único a quem não conseguimos apresentar foi o João Ricardo. Tentei levar ele uma vez no Som do Vinil esse ano e ele não aceitou o convite. Bem, o disco daqui a pouco vai estar na internet, talvez ele ouça.
Os arranjos deram certo peso as músicas do Secos & Molhados…
O Ney falou que pegamos uma música pop brasileira e transformamos em um disco pesado. Enquanto baterista é isso que eu sei fazer. Eu amo música brasileira e tenho algumas atividades que chegaram através disso, como um programa na Rádio Globo, O Som Do Vinil. Mas eu sou um baterista de rock. Não sou uma baterista de jazz, apesar de querer ser. Tem o Paulo Rafael que tem toda aquela pegada do Ave Sangria. Ele tem um pé em Caruaru e outro pé em Londres. É um tipo de guitarrista muito raro, que transita pela música brasileira, mas tem um know how muito grande de rock. Junto isso tem o Felipe que toca no Baleia, que é também uma banda com um som pesado, a Duda tem um disco extremamente denso e Pedro Coelho também vem de bandas de rock. Só podia dar no que deu.
Você falou que montou a banda para voltar a tocar. Quando e como público verá o Primavera nos palcos?
Eu estou com muita vontade de voltar para os palcos. Essas músicas vão render bastante ao vivo. O disco foi arranjado para ser ao vivo, apesar de termos investido nas cordas. A gente tem show marcado no final de outubro no Rio de Janeiro e tem a possibilidade de tocar antes disso em Fortaleza. Queremos contemplar o que era um show do Secos & Molhados. É um termo que não gosto muito, mas que agora vem bem a calhar: os shows do Secos & Molhados eram uma experiência. Basta ver na internet aquela apresentação no Maracanãzinho. Era muito impactante. Nos anos 1970 era muito comum esse tipo de espetáculo, misturando poesia e música, como fazia a Maria Betânia, por exemplo. O nosso grande desafio agora é montar um espetáculo. Não é só ir lá e tocar.
– Gil Luiz Mendes (https://www.facebook.com/gil.luizmendes), jornalista, 32 anos, viveu boa parte da vida no Recife e hoje mistura a sua loucura com a de São Paulo. Tem passagens pelas rádios Jornal do Commercio, CBN , Central3 e tem textos publicados no IG e na Carta Capital. É skatista e músico quando dá tempo. A foto que abre o texto é de Kaio Caiazzo / Divulgação.
Muito boa e oportuna a entrevista. Charles Gavin é um cara preocupado em construir o passado, o presente e o futuro, o que é excelente para a nossa música.