resenha por Bruno Capelas
Dizem que o filho pródigo sempre volta para casa. Às vezes, porém, essa é uma história que se escreve com linhas tortas. É o caso do novo filme do Homem-Aranha, “De Volta ao Lar” (“Spider-Man: Homecoming”, 2017), lançado no início de julho nos cinemas brasileiros. Depois de duas encarnações – distribuídas em cinco filmes ao longo dos últimos 15 anos – conduzidas pela mão da Sony Columbia Pictures, é a primeira vez que a Marvel produz ela mesma, do começo ao fim, um filme de seu principal super-herói. Mais do que um simples recomeço, porém, “De Volta ao Lar” soa como um símbolo dos tempos estranhos atuais da cultura pop.
No já distante ano de 2002, fazer um filme de super-heróis parecia uma grande furada para Hollywood: apesar de alguns sucessos aqui e acolá, a década anterior foi repleta de grandes bobagens (olá, Joel Schumacher!) e projetos fracassados (Nicholas Cage como Superman, quem lembra?). Mas aí veio Sam Raimi com o seu Homem-Aranha e o paradigma mudou: de repente, era legal ser nerd, citar frases como “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades” e torcer para que Peter Parker (vivido pelo esquisitinho Tobey Maguire) encontrasse sua garotinha ruiva. Entretenimento rápido e barato, mas eficaz. O resultado? Mais de US$ 800 milhões em bilheteria, engordando os cofres da Marvel, mas também da Sony Columbia Pictures, que fez os filmes.
Corta para 2016: de criadora de personagens, a Marvel se tornou um dos mais poderosos estúdios do cinema mundial – com uma ajudinha da toda poderosa Disney, é claro. No lugar de produzir apenas filmes, a empresa trouxe, nos últimos 10 anos, um plano ousado de dominação global da cultura pop com o seu Universo Cinematográfico da Marvel (MCU). Com a cama armada por Raimi, Homem de Ferro, Hulk, Thor e até mesmo coadjuvantes como Viúva Negra, Homem-Formiga e Gavião Arqueiro ganharam seu espaço nos corações e mentes de adolescentes e jovens adultos. As histórias de cada um deles se entrelaçavam: o que acontecia no filme dos Vingadores poderia ganhar sequência em um longa-metragem do Capitão América – seja um fato crucial para entender a trama ou uma mera piada interna.
No entanto, o principal herói da Marvel continuava distante do MCU – culpa de um contrato típico de Hollywood, que prendia o personagem à Sony. Percebendo o potencial do Aranha, porém, a Marvel manobrou para tê-lo de volta – e o introduziu de forma ligeira ao MCU em “Capitão América: Guerra Civil”, lutando ao lado do todo-poderoso Homem de Ferro – o mesmo responsável por dar início ao “mundo Marvel”. Agora, em 2017, é a vez de vê-lo brilhar sozinho novamente, com ajuda do jovem britânico Tom Holland e a direção de Jon Watts.
Ao contrário de seus antecessores (o filme de 2002, de Raimi, mas também “O Espetacular Homem-Aranha”, de Marc Webb, 2012), “De Volta ao Lar” não perde tempo contando a história da origem de Peter Parker. Caso você não saiba, lá vai – Peter é um garoto estudioso e sem grana, órfão criado pelos tios, fã de fotografia, que de repente é picado por uma aranha geneticamente modificada e tenta ganhar algum dinheiro com seus novos dons. No meio do caminho, porém, ele vê seu tio Ben morrer pelas mãos de um assaltante e resolve combater o crime de forma séria.
No lugar disso, “De Volta ao Lar” abre sua história se ligando diretamente à batalha de Nova York, um dos eventos centrais do primeiro filme dos Vingadores, em que os heróis lutam contra o vilão alien Loki. Nas primeiras cenas, vemos o empresário do lixo Adrian Toomes (Michael Keaton, canastrão na medida) sendo removido das obras de remoção do material da batalha pela empresa de Tony Stark. Por vingança, Toomes rouba os artefatos alienígenas e, nos oito anos seguintes, constrói uma indústria de armamentos baseados nesse conhecimento diferente – alguém duvida quem será o vilão da história?
Na sequência seguinte, vemos Peter Parker, à melhor moda youtuber, mostrando como foi conhecer os Vingadores durante “Capitão América: Guerra Civil”. Para os fãs do Universo Cinematográfico da Marvel, tudo se conecta. Para quem espera só um filme de ação por pouco mais que duas horas e não gabaritou o vestibular Vingador, no entanto, pode ser difícil encaixar as peças. O que aparece depois não ajuda muito: de volta à escola, Peter Parker desiste de suas atividades extracurriculares (a banda marcial, o time de robótica) para se dedicar a filmar suas pequenas boas ações, colocá-las no YouTube, e, quem sabe, chamar a atenção de Tony Stark para ganhar novas “missões” – e esconder isso tudo de sua Tia May (Marisa Tomei).
A transformação de Tia May é um sinal de que há algo esquisito: no lugar da senhora responsável que traz a figura maternal, a May de Marisa Tomei (como não poderia deixar de ser) atrai as atenções dos homens por onde passa. Algumas coisas clássicas das histórias do Homem-Aranha – o interesse feminino pela garota que parece inalcançável, o ambiente da escola, o melhor amigo – continuam presentes em “De Volta ao Lar”, ainda que de forma tênue. Elas parecem presentes no filme apenas por constar – Parker não se relaciona com eles, mas apenas “flutua” pelo mesmo universo.
Isso porque a cabeça do herói está mesmo pensando no gênio, bilionário, playboy e filantropo: tudo pode ser deixado de lado por Parker para fazer algo que pode impressionar Tony Stark e deixá-lo mais perto de ser, também, um Vingador. Até o uniforme bonito que Parker usa é uma criação dos laboratórios Stark. Durante a trama, fica às vezes a impressão de que o vilão em si nem é tão importante, mas sim capturá-lo – o que importa é a recompensa, não a causa. Para quem só conhece o Homem-Aranha dos outros filmes, a sensação pode parecer esquisita. Para um fã dos quadrinhos (ainda que o herói tenha diversas encarnações, idas e voltas), a associação é ainda mais canhestra: Parker e Stark são conhecidos por soltarem faíscas, e não por uma relação que beira o pai-filho.
E é aí que “De Volta ao Lar” parece perder a mão: mesmo com cenas de ação competentes, uma trilha sonora caprichada e bons atores (Keaton e Tomei estão ótimos, e Holland faz um Aranha honesto), o filme parece ser apenas um penduricalho no Universo Cinematográfico da Marvel – e não um longa-metragem de verdade, muito aquém do que merece o principal herói da empresa. Fica a sensação de que será preciso mais um ou dois filmes para vermos, de fato, o Homem-Aranha de sempre – o herói com questões psicológicas, cheio de identificação com o público adolescente/nerd e, às vezes, imaturo. Ok, os nerds também mudaram, e talvez seja sintomático que o Peter Parker de 2017 não seja um fotógrafo, mas sim um “produtor de conteúdo”. Mas é pouco para que o filho pródigo, depois de 15 anos na Sony, se sinta de fato acolhido em casa. Na hora da prova dos nove, a Marvel parece ter esquecido de uma de suas principais lições: com grandes pod… ah, vocês sabem.
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista e trabalha no caderno Link, de O Estado de São Paulo
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Acho que assistimos a filmes diferentes.