Texto por Leonardo Vinhas
Fotos por Helena Brigido
No Litoral Norte paulista, o município de São Sebastião é conhecido pela prática da vela esportiva e por abrigar as praias de Maresias e Boiçucanga, famosas entre descolados e leitores de revistas que se posicionam contra o machismo ao mesmo tempo em que estampam garotas seminuas e sexualizadas na capa. Não deve ser surpresa saber que a cidade é muito mais que isso.
O município de cerca de 80 mil habitantes tem cerca de 100 km de orla e é uma das cidades mais antigas do Estado de São Paulo, tendo sido fundada em 1636. Desde essa época, ela carrega uma longa história de resistência à ocupação, com a truculência portuguesa sendo oposta pela resistência dos indígenas ali nativos, denominados caiçaras a partir da palavra que designava a cerca (ka`aysara) que os segregava dos invasores brancos em sua própria terra. A mesma resistência que a população local teve que empregar quando a Petrobras, que ali instalou um gigantesco oleoduto e diversas operações, começou a interferir de maneira invasiva e insalubre na vida local. Uma resistência que ainda se faz necessária, já que o Governo do Estado de São Paulo insiste com um projeto para ampliar a área construída do porto de 400 mil para quase 1 milhão de metros quadrados. Barrado pelo Ministério Público, mas ainda passível de recurso, o projeto implicaria na destruição da Baía do Araçá, essencial tanto para os habitantes locais como para a pesquisa acadêmica.
A resistência, portanto, faz parte da tradição da cidade, que também registra revoltas de escravos, manifestações artísticas muito particulares e uma arquitetura diversificada e bastante preservada em suas raízes históricas. Tudo isso em um cenário que carrega ainda um passado de abusos clericais, relação promíscua entre Igreja e Estado, segregação social, repressão policial desmedida e tantas outras mazelas que parecem estar ganhando volume e intensidade em nossos dias. Ou melhor: não “parecem” estar mais presentes.
O cenário, portanto, é absolutamente propício para a terceira edição do Vento Festival. As duas anteriores aconteceram em Ilhabela, mas a nova administração municipal de lá, tomada pela bancada evangélica, achou que não era boa ideia ter gente pouca afeita aos valores cristãos fazendo festa na ilha. Coube, então, à cidade que leva o nome do padroeiro informal dos homossexuais (porque, infelizmente, você sabe que não será tão cedo que eles terão um padroeiro “oficial”, né?), a tarefa de sediar um festival que objetiva proporcionar “autoconhecimento e empatia para somar”.
A partir desse mote, veio a programação: a música foi dividida entre o palco SON Estrella Gallicia, com curadoria de Anna Penteado; e a Oca, majoritariamente dedicada a DJs. Mas houve também conversas entre produtores culturais, discussões sobre “o poder transformador da cultura”, sobre “olhar para dentro” – você sacou o espírito da coisa. Tanto que a abertura do festival coube com uma pequena cerimônia de indígenas da Aldeia Rio Silveiras, adequadamente sem pompa, em um gramado no meio da praça.
Dia 15/06 – Quinta-feira
A Rua da Praia é um mais que uma rua: ela abriga uma enorme praça/calçadão, com playground, quiosques de comércio local, e bancos que garantem uma vista maravilhosa do horizonte seja qual for a direção que você olhe. A área ainda dá acesso a um píer circular, onde o nome do festival faz especial sentido (o céu aberto e o sol brilhando não impediram o frio). Esse foi o cenário onde (quase) tudo transcorreu, e o público que ali transitava no meio da tarde de quinta-feira se dividia entre contemplar a vista, comer pipoca com queijo provolone frito (uma especialidade do Vale do Paraíba e Litoral Norte), andar de skate e brincar com as crianças enquanto a música não começava. Quando ela começou, tudo isso continuou acontecendo, apenas com o bônus sonoro – “ocupar o espaço público” é isso aí.
Não havia mais que 100 pessoas quando o DJ Ubunto abriu os trabalhos. Na verdade, a maior parte desse pessoal ainda estava tímida, sentada na “miniarquibancada” em frente à Oca quando o DJ abriu os trabalhos ali às 16h30 (com meia hora de atraso). Logo depois, coube à Paula Cavalciuk dar início às atividades do palco principal. Sua estampa faz pensar em uma figura saída de uma história em quadrinhos que passou pelo filtro de uma animação indie, e ela usa essa persona muito particular – e sua boa voz – para ganhar a simpatia dos presentes. Seu pop traz influência tanto do rock de guitarra norte-americano quanto da música brasileira dos anos 70 – sintomaticamente, há canções em inglês e português. Havia até gente cantando junto composições como “O Poderoso Café” e “Morte e Vida Uterina” (que teve participação de Juliana Strassacapa, da Francisco El Hombre), e não faltou quem a colocasse entre os melhores momentos do festival. Porém, ainda é um daqueles casos em que o carisma é maior que o conjunto da obra. Mas calma: a moça tem apenas um disco, tem muito pela frente…
Com o atraso do início na Oca, o DJ Beatflavor tocava simultaneamente ao show, caprichando no set para ninguém mais que três pessoas – um casal black de dar orgulho a Nelson Triunfo e uma moça de rosto pintado que estava ali desde o set de Ubunto, e não parou nem quando a música foi interrompida. Vamos denominá-la “Fritadinha”, pois voltaremos a ela em breve. À medida em que a Oca ganhava mais gente, o mesmo acontecia com a procissão de Corpus Christi. Os fieis caminhavam sobre a tradicional decoração das ruas, em completo silêncio a não ser pelos ruídos do festival ao longe e pela repetição tímida das ladainhas católicas. A cidade se entregava a uma tradição na qual a religião cumpre sua função comunitária e favorece a arte (não há como não apreciar as imagens criadas nas ruas com serragem, tinta e materiais reciclados), em vez de querer legislar sobre a vida alheia. Ambos podem acontecer no mesmo espaço, sem que um prejudique o outro. Fica a lição para a administração municipal de Ilhabela.
De volta ao festival, hora da decepção com Do Amor. “Fodido Demais”, lançado neste ano, é o melhor álbum da banda, porém a brochada já começa de cara, com uma versão barulhenta e instrumental da faixa título, seguidas por “Peixe Voador” e “O Aviso Diz”. São três grandes canções, mas o volume ridiculamente alto as distorce além do limite suportável – culpa da banda, que durante a passagem de som, insistia pelo aumento do som. Com os ventos do anoitecer soprando forte numa área semiaberta, tanta distorção formava uma nuvem de ruído que dificultava se aproximar do palco, e ajudou a lotar o até então set vazio de Beatflavor – merecidamente. Gabriel Bubu parecia estar alheio, enquanto Gustavo Benjão entoava os vocais sem ânimo, puxando uns “Fora Temer” gratuitos e populistas. Na segunda metade do show, a barulheira foi substituída por sambinhas e groovinhos displicentes, e nem a apelação suprema que foi a versão tosca de “Baby-Doll de Nylon” salvou. Deu saudade da versão do Bonde do Rolê, vai vendo… Seria o show uma metáfora metalinguística, algo como “tudo que vem Do Amor fatalmente nos decepcionará”? Possivelmente não, só desencontro e desrespeito pelo público mesmo. Apenas o novo baixista, Diogo Valentino (Ricardo Dias Gomes foi morar em Portugal), parecia estar com vontade de estar ali – o batera Marcelo Callado chegou a dizer no palco que “precisava ir embora rápido).
Quando o Mombojó subiu ao palco, todos os ambientes já estavam bem cheios. Apostando no lado mais introspectivo e romântico do seu repertório – ainda que esse “lado” seja quase sua essência, na real –, os pernambucanos conseguiram adesão da plateia e espantaram a apatia instalada pelo Do Amor. Minha vontade de não gostar da banda – motivada pelos discos um tanto lineares e chochinhos – sempre sucumbe à qualidade de suas apresentações ao vivo, e no Vento souberam crescer das baladinhas eletrônicas plácidas para ritmos mais animadinhos.
A essas tantas, o festival já tinha arrumado algumas pontas soltas – o bar funcionou um tempo sem servir drinks por falta de insumos, o wi-fi livre não entrava, essas coisas – e a friaca atingia seu máximo. Então, por obra e graça da vida (e para cumprir o programado, logicamente), chega a hora da Francisco El Hombre subir ao palco. O show deles é sempre certeza de uma festa, mas nessa noite a coisa transcendeu a alegria. Depois do furacão rítmico que abriu a apresentação, vem uma “Triste, Louca ou Má” com a participação das vocalistas da Mulamba, Amanda Pacífico e Cacau de Sá. Sabe-se lá que espírito baixou, mas o fato é gerou-se uma conexão entre Ju Strassacapa e as duas que transbordou na presença física de Cacau e… Olha, foi um daqueles momentos que, quem viu, não vai conseguir esquecer. “Esse país nos vê assim [tristes, loucas ou más], e assim seremos por muito tempo”, vociferou Amanda. Vi essa canção ser executada ao vivo várias vezes, porém jamais houve tamanha comunhão. O que dá para dizer factualmente é que se dissolveu qualquer barreira entre artista e público, e a Francisco aproveitou isso para retomar seu lado mais enérgico. Aportaram variações no repertório, como “Primavera” (raramente tocada ao vivo) e a estreia de uma arrepiante versão de “Mi Revolución”, dos uruguaios Cuatro Pesos de Propina. A cada show, a Francisco El Hombre dá mostras de ser a banda com condições reais de estabelecer um novo momento de influência e relevância na música brasileira. Aguardemos – e enquanto esperamos, vai bem continuar dançando.
Dia 16/06 – Sexta-feira
Teve mais gente, e melhor distribuída pelos espaços da Rua da Praia; teve mais interação entre locais e turistas, e teve os primeiros Spotify Talks (com diminuta plateia). Rolou ainda muita comida boa, frio ainda mais intenso, e uns shows… difíceis. Comecemos pelo final: ao Metá Metá coube o papel de headliner da noite. Juçara Marçal é uma presença marcante em corpo e voz, os instrumentistas são notáveis, mas quem não penetra em seu afrometal pós-punk de suingue torto não consegue aproveitar o show. Era o meu caso – e de uns bons tantos que preferiram ficar pela Oca aguardando a festa com BeatFlavor e Mauro Farina, que seguiriam groovando madrugada adentro. Afinal, sejamos honestos: é necessário uma entrega muito grande, e um estado de espírito muito peculiar, para entrar no clima de uma canção como “Três Amigos” (“são três amigos para matar / mais doze santos para apedrejar / um grande amor a sodomizará”), para ficar em apenas um exemplo. Quem ficou por lá, porém, teve a catarse esperada neste que, rigorosamente empatado com Francisco El Hombre, foi o show do festival segundo o júri convidado pelo Scream & Yell (confira no fim do texto). Nota interessante: foi a primeira vez que Juçara se apresentou em sua cidade natal com a banda.
E o dia tinha tido ventos mais leves para esse que aqui escreve, começando bem cedo com uma imersão pelo Centro Histórico de São Sebastião. Deu também para curtir o Museu de Arte Sacra e descobrir que os artistas de lá eram punks antes que o termo fosse inventado: a maior parte da arte sacra regional ignorava as escolas vigentes na época, com uma criação quase instintiva – o quadro da prisão de Jesus é emblemático disso, já que o artista não tinha qualquer referência histórica e encheu a tela de elementos do seu tempo (os soldados romanos estão vestidos como moradores do litoral, por exemplo). Nem Alex Cox (“Walker”, alguém viu?) nem Baz Luhrmann se atreveriam a tanto, tampouco teriam resultados tão bons (“bom” e “Baz Luhrmann” dificilmente andam na mesma frase, eu sei). Tarde de fotos entre as muitas vistas encantadoras do Centro Histórico, embalado pelos tradicionais sorvetes sebastianenses. No passeio, encontro a Fritadinha, ainda calada, ainda dançando… mesmo sem nenhuma música tocando. E com a mesma roupa e a mesma pintura facial do dia anterior.
No palco principal, Mulamba entrou surpreendendo todo mundo que teve paciência com a confusão da organização, que colocou a passagem de som praticamente no horário previsto para o show. Muita gente se colocou perto do palco crente que estava vendo a apresentação “pra valer”, e teve que ser avisada pela vocalista Amanda Pacífico que ainda não era o caso. Deixado de lado o incidente, o sexteto curitibano entregou um folk – palavra desgastada pelo uso à frente – visceral. A banda chegou ao festival eleito por voto popular na competição Open Mic. Normalmente, quando você escuta que tal banda entrou em um festival a partir de uma seletiva, já pensa naquela coisa meio incipiente, e só consegue curtir o show tomando uma generosa colher de boa vontade. Não foi preciso: estávamos diante de um show pronto, mesmo com a banda ainda formando seu repertório. Buscar referências para definir o som das moças é bobagem: é intenso em letra e interpretação, mesmo que se apoie na delicadeza melódica e não precise de arranjos altos. É extremamente contestatório e contundente em sua atitude, mas o grito vem das entranhas, não do volume. A banda tem presença suficiente para preencher o grande palco – mesmo Fer Koppe, que obviamente tem que ficar sentada para tocar seu violoncelo, se faz notar com musicalidade e entrega.
No discurso, a questão do amor homoafetivo surge naturalmente – e enquanto eu fazia essa anotação no meu celular, o corretor trocou “homoafetivo” por “homofóbico”. Sintomático. A Mulamba bate forte no sexismo e no preconceito, e “P.U.T.A.” (com Ju Strassacapa retribuindo a participação) proporcionou outro momento de dissolução dos limites entre público e plateia. Showzão. Perdi o set de João Laion na Oca para o café caiçara, uma especialidade local servida gratuitamente na Casa de Cultura. Em vez da água, usa-se garapa (caldo de cana), e o resultado convence até quem acha que café com açúcar é tão profano quanto hóstia com catchup. Para acompanhar, bolos (de banana e de milho), batata doce cozida e bolinho de chuva. Abandonei esse momento tão agradável para assistir ao show de Negro Léo. Isso me fez lembrar-se de uma velha canção da Graforreia Xilarmônica: “Se arrependimento matasse / hoje eu estaria num cemitério qualquer / apodrecendo de raiva…” O som de Negro Leo é do tipo que dá má fama ao universo alternativo: uma MPB cabeçuda e cheia de falsetes, com muito conceito para pouca fruição. O show parece um Fiat 147 combalido: nunca engata além da segunda. Lá pelas tantas, a fotógrafa chega e pergunta: “O cara tá fazendo barulho e falando (com voz fininha) ‘papaizinho’… é isso mesmo?!”. A indagação resume bem a coisa.
Tudo que parecia estar nas intenções de Negro Léo acontece de verdade no show de Ava Rocha (sim, ela e Leo são parceiros, mas isso não quer dizer nada na carreira de cada um). Tem conceito, substância e invenção ali, embora seja tão performático que, assim como o Metá Metá, não funciona para todo mundo (se precisa ou não funcionar para todo mundo são outros quinhentos). Bem mais roqueira que em disco, Ava usa bem sua banda. Mas fica a dúvida: precisa brigar tanto contra o pop? Tem canções que parecem que vão assumir uma faceta mais amigável, mas logo adotam uma saída algo hermética. Ainda assim, valeu a pena, e a experiência só não foi melhor porque gastei uns bons minutos lidando com um vendedor de artesanato doidão que insistia em me dar lições de mastigação e deglutição enquanto eu comia uma esfiha (“Tem que sentir no ritmo, cada mastigada um sabor diferente” etc). Foi minha oportunidade de exercer a tolerância e contribuir para um mundo melhor, acho.
Na Oca, os DJ sets abriram uma janela para o show de Craca e Dani Nega. A dupla ganha acréscimo de músicos ao vivo, e transformou a Oca – onde inexplicavelmente se apresentaram – em palco principal, Dani canta com o fígado na boca, usando as palavras e seu vozeirão para dar socos na cabeça dos desavisados, mas a fúria não a impediu de descer em meio ao público – que abarrotava o local – para interagir com todos. Mais veloz que em estúdio, sua apresentação não ofereceu muitas brechas para respirar, mas fez muito mais que passar o recado do duo – é aquele show que praticamente “te obriga” a assistir novamente o artista ao vivo na primeira chance que tiver. A mistura de soul, eletrônica e hip hop que sai dali é de alta octanagem. Falando em alta performance: no meio do público, trombo com a Fritadinha de novo. Me impressiona seu desprezo pelo frio (vestia – há mais de 24 horas, pelo visto – uma tentativa de camiseta frente única que mais parecia uma túnica inacabada). Quando fui embora, lá pelo meio da madrugada, ela mantinha seu transe. Para alguns, a festa nunca termina.
Dia 17/06 – Sábado
Algumas horinhas na praia de Maresias já colaboram para fechar o corpo e animar o espírito. Só que o rolê praiano, e o necessário descanso subsequente, fazem com que eu perca o primeiro show de sábado, do pernambucano Barro, que começou com 1h15 de atraso. Logo depois, o Tono veio em formato trio (sem a cantora Ana Claudia Lomelino). O baterista Rafael Rocha assumiu a maior parte dos vocais, mas todos os três músicos (Bem Gil, filho de você sabe quem, na guitarra) cantam bem. O som da banda cruza ritmos brasileiros dos mais diversos e pop, e se tivessem sido um pouquinho mais animados no palco, teriam seduzido o público. Como foi, fizeram “só” um show simpático, adequado ao horário. A variação de timbres e a inteligência melódica compõem uma sonoridade evocativa sem ser psicodélica – e sem descambar para a frouxidão. Pena que as canções mais suaves tenham sido prejudicadas pelo som alto que vinha da Oca, ativa simultaneamente. Isso não impediu que houvesse um entusiasmado pedido de bis, digno de headliner.
O frio resolveu dar uma trégua, e o Macaco Bong ajudou a esquentar a noite. O trio, agora estabelecido em São Paulo, comprova que vive seu melhor momento. Da brilhante “Beijim da Nega Flor” à virulenta “Macaco”, mostram que conseguiram “descomplicar” seu som, decantando sua essência e facilitando o estado de transe. Faixas de seus três discos compuseram o set, que adiantou ainda versões impressionantes de “In Bloom” e “Come As You Are”, que farão parte de uma releitura do “Nevermind”. Gente de todas as idades dava aquelas gingadinhas de olhos fechados e girava os braços – parece que um show do Macaco Bong é muito bom para tirar as inibições. Eu mesmo quase fui enfiar a língua num amplificador para lamber o som. Mas achei melhor não.
Quem foi para a Oca na sequência assistiu ao rapper Acauã, de Ilhabela, desperdiçar as chances que teria para mostrar sua música para um público, preferindo gastar mais tempo em discursos desnecessário que em canções. Pena: parecia ter coisa boa para garimpar ali. Mas depois do Macaco Bong, não dava para aguentar papinho e retórica confusa. Valia mais comer algo ali nas redondezas e logo se posicionar para a apresentação de Anelis Assumpção. E para se ter uma ideia de como foi, basta dizer que mesmo os vendedores de morango com chocolate dançavam sem medo de derrubar suas bandejas. Anelis investiu fundo no reggae, e cativou sem precisar a recorrer a nada além de sua voz – e de sua excelente banda, claro, que tem gente do calibre de Saulo Duarte e Zé Nigro em sua formação. Foram 80 minutos de show – folêgo e duração de headliner, e meio que foi mesmo.
“Meio” porque ainda tinha o Abayomy. Verdade seja dita, o público dançou bastante, e foi bom ver Benjão participando do show muitíssimo mais animado que em seu show com o Do Amor (embora insistisse nos “Fora Temer” populistas e gratuitos). Dessa leva de bandas que repassam os clichês do afrobeat (a leva é grande), a Abayomy é a mais cancioneira, o que já é um mérito (tem muita influência da turma do funk soul brasileiro ali). No fim, é uma banda de baile, do tipo que você dança na hora e esquece depois. Mas todos já tínhamos tido mais que a cota de grande arte em três dias, então o negócio foi desencanar de avaliações e simplesmente deixar pezinhos e quadris à vontade para reagir.
Agora
O domingo ainda reservaria um cortejo com o bloco Tarado Ni Você, mas as obrigações da vida nos fizeram subir a Serra de volta à vida metropolitana. Porém, enquanto escrevo esse texto, é difícil tirar o festival de dentro de mim – e nem há razão para fazê-lo. A introspecção prevista na premissa do Vento aconteceu, sim: a olhos vistos (como nos shows da Francisco El Hombre, do Metá Metá, da Mulamba), e os dias de convívio intenso com tanta gente diferente, que podia ir desde indígena nativo a alto executivo hoteleiro em um intervalo de menos de cinco minutos, nos provavam que é possível sair desse estado de belicosidade irrefletida que vivemos. À sua maneira, o Vento foi uma forte declaração política e um chamado à introspecção e ao respeito. E musicalmente, levou um recorte bastante relevante da nova produção brasileira a um público que não costuma tomar conhecimento dela, e que a acolheu de braços abertos.
“O Vento tem a ver com acreditar que ainda podemos fazer juntos um mundo melhor”, comentou Anna Penteado após o fim do evento. “Passaram por aqui todos os tipos de pessoas, foram mais de 20 mil nos quatro dias, segundo a Policia Militar. Não tivemos nenhuma briga, e apenas 6 ocorrências no hospital do festival: quatro por [excesso de] bebida e duas pessoas que caíram e se machucaram. Foram encontradas quatro carteiras, todas com dinheiro, uma tinha 250 reais, vários cartões de banco e documentos de identidade: todos resgatados por quem perdeu. Isso mostra que podemos sim ter um mundo de todos, um mundo inclusivo, um mundo onde o respeito e a empatia pelo próximo está presente. Dentro das diferenças que todos tempos, podemos encontrar as semelhanças que os unem”.
Em um ano em que a sobrevivência dos festivais alternativos foi questionada devido às muitas complicações econômicas, o Vento foi essencial para demonstrar a relevância e o alcance desse tipo de evento. Que cresça nas próximas edições, especialmente em resultados.
Top 5 – Leonardo Vinhas, Scream & Yell
1 – Francisco, El Hombre
2 – Macaco Bong
3 – Anelis Assumpção
4 – Craca e Dani Nega
5 – Mulamba
Top 5 – Rakky Curvelo, Tenho Mais Discos que Amigos (leia a cobertura)
1 – Francisco, El Hombre
2 – Metá Metá
3 – Mulamba
4 – Craca e Dani Nega
5 – Anelis Assumpção
Top 5 – Pedro Alexandre Sanches, Farofafá/Carta Capital
1 – Francisco el Hombre
2 – Anelis Assumpção
3 – Tono
4 – Mulamba
5 – Metá Metá
Top 5 – Lucas Brêda, Rolling Stone (leia a cobertura)
1 – Metá Metá
2 – Anelis Assumpção
3 – Francisco El Hombre
4 – Ava Rocha
5 – Abayomy
Top 5 – Anderson Meneses, Catraca Livre
1 – Metá Metá
2 – Craca e Dani Nega
3 – Anelis Assumpção
4 – Francisco El Hombre
5 – Ava Rocha
Top 5 – Rodolfo Rodrigues, Elefante Sessions (confira a cobertura)
1 – Metá Metá
2 – Ava Rocha
3 – Mulamba
4 – Barro
5 – Paula Cavalciuk
Top 5 – MELHORES SHOWS DO VENTO FESTIVAL 2017
20 pontos – Francisco, El Hombre (cinco votos)
20 pontos – Metá Metá (cinco votos)
15 pontos – Anelis Assumpção (cinco votos)
9 pontos – Mulamba (quatro votos)
8 pontos – Craca e Dani Nega
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.
Não entendo essa lógica do “sejamos honestos: é necessário uma entrega muito grande, e um estado de espírito muito peculiar, para entrar no clima de uma canção como “Três Amigos” ” aplicada ao show do Metá-Metá!? Como assim?! É bom gostar de algo que se ouve sem se entregar bastante?! É ruim algo que tira do seu estado habitual e exige “estado de espirito muito peculiar”?! O articulista tá defendendo explicitamente uma escuta superficial e um som de fácil digestão??!! Só porque é um festival na praia??!! Convenhamos: se isso é uma crônica do Festival, escolheram um cara bem medíocre pra falar do “gosto” dele; se pretende ser uma crítica, ela parte de pressupostos BEEEM equivocados!!!
Roberto, não estou defendendo a escuta superficial como algo “melhor” – reli o trecho e não consigo identificar o que sugira isso. Mas não acredito que seja possível ignorar o ambiente em qualquer experiência artística, seja um filme, uma sessão de leitura ou um show. Quem assistiu o Bonnie Prince Billy no finado Studio SP vivenciou isso de maneira prática. Um show exclusivo de um artista em um teatro é totalmente diferente do “mesmo” show em um festival a céu aberto.
O parágrafo deixa claro que o Metá Metá fez um show muito bom, e que teve uma participação intensa do público – mas não de todo o público. Não há nada que desabone a apresentação. O que está escrito é apenas que a apresentação não foi unanimidade.
Crítica desrespeitosa e desencontrada. Ao contrário de todos os artistas presentes que estavam ali pela música e realmente dedicados. Falar dessa maneira de um show e colocar uma pontuação ou um ranking do festival é a maior prova de desencontro da critica musical com a classe artística e desrespeito por aquilo que realmente defendemos quando estamos no palco.
Fora Temer!!!! Sempre! A hors que eu quiser falar.. E quero ver calar minha boca! Respeite minha posição que respeitarei a sua!
Benjão, como editor vou me ater a questão do “colocar uma pontuação ou um ranking”, já que a parte de relato é do jornalista, que estava lá e viu o show. É direto seu enxergar um “ranking” dessa maneira “copo meio vazio”, como se música se fosse competição, embora a ideia de montar um ranking (ou uma lista de melhores discos do ano, de melhores shows e discos que vimos e ouvimos na vida, etc…), esteja longe de ser competição, e sim uma maneira de valorizar (neste caso) os shows que chamaram mais a atenção no festival. Se você parte do pressuposto que é competição provavelmente nunca poderá falar sobre discos, artistas ou shows favoritos, porque a partir do momento que se lista alguém, na sua ótica é desrespeito. Para nós (ou ao menos para mim, que edito o site), não, é apenas uma maneira de valorizar quem se destacou mais e até por isso buscamos várias pessoas para opinar sobre os melhores shows, para ampliar o olhar sobre o todo do evento e também porque a verdade da arte é extremamente intangível, ainda que, muitas vezes, não seja tão difícil concordar sobre um mesmo show (bom ou ruim). No mais, Fora Temer, eternamente.
Abraço
Oi Marcelo, obrigado pela sua resposta. Primeiramente, antes até do Fora Temer, gostaria de pedir desculpas pelo tom agressivo da minha resposta.
Eu acho que o papel da crítica musical passa um pouco por fazer um ranking, apesar de discordar, isso é de praxe e OK. Cada um tem o dierto de pensar à sua maneira.
O que considerei sobre a crítica foi a maneira descontextualizada e talvez tendenciosa que foi apresentada.
Primeiro tivemos problemas na passagem de som que atrasou, por culpa do festival que estendeu a passagem de som do Mombojó, e tivemos pouco tempo pra acertar o som.
Não conseguimos passar o som corretamente e na hora do show os retornos estavam completamente diferente.
Mas uma coisa é pedirmos pra aumentar, ou ajeitar o retorno, e outra coisa é som alto do PA.
O retorno é responsabilidade do técnico de monitor e o PA é do técnico de PA, que era do festival, ou da empresa de som contratada. Se o som estava alto e parecíamos disperso muito se deve a confusão e dificuldade que tivemos pra tentar achar o som dentro do palco. Então não foi realmente o melhor show da banda.
Não sou contra críticas e aceito toda crítica negativa, inclusive considero mais importante ler uma crítica negativa do que uma positiva pois alguma coisa dali serve mais pra evolução e lapidação do trabalho. O que achei de ruim foi a maneira que foi colocada pelo seu crítico, como se estivessemos ali cagando pro show e pro resto todo. Em 25 anos de carreira nunca entrei no palco com desdem ou desrespeito, muito pelo contrário. Então me bateu mal esse comentário somado a falta de entendimento do problema do som por parte dele.
De resto é direito de qualquer um criticar e elas são bem vindas.
Adoro seu site e tenho o maior respeito por vcs!
Um grande abraço
Benjão
Benjão, acredito que a questão do ranking está suficientemente explicada pelo Marcelo, mas acrescento que o ranking é uma maneira do S&Y reforçar que a posição do site (ou do colaborador do site que esteve no evento) não é única nem definitiva. Inclusive listamos as outras coberturas que já estão no ar, e numa delas (da Rolling Stone) você verá que o Negro Leo – que recebeu a crítica mais pesada no meu texto – foi bastante elogiado.
O que acontece aqui são relatos baseados na experiência, tentando trazer objetividade quanto a questões factuais (atraso em shows, canções executadas etc) e a opinião do articulista – sempre subjetiva, obviamente.
No que diz respeito ao show do Do Amor: eu, como alguém que gosta bastante da banda (e gosta mais ainda do disco mais recente), não a reconheci no palco. O fato de parte considerável do público deixar o show na metade e preferir outras atrações do festival (fosse a Oca ou as opções gastronômicas) é uma evidência de que minha opinião não era isolada (a cobertura do site Tenho Mais Discos que Amigos também apresenta opinião e observação semelhantes).
A observação sobre os “fora Temer” não era pelo conteúdo (quem, em sã consciência, pode ser a favor de um “fica Temer”) e sim pelo desencaixe dela dentro da apresentação. Enquanto Francisco el Hombre e Mombojó incluíram suas declarações do mesmo teor dentro das canções e no Metá Metá isso partiu espontaneamente do público, no show do Do Amor elas apareceram de modo que me pareceu descontextualizado, entrando entre uma música e outra sem muita razão de ser.
Quanto ao uso do termo desrespeito: se o Marcelo Callado falar que “tem que ser rápido porque tenho que ir embora logo” não é um descaso com o público, me desculpe, mas não sei o que é.
Muito bom esse relato do festival, me deu vontade de ir – quem sabe no próximo.
Bom também pra saber de novos sons e bandas, vou ouvir as que não conhecia.
Quanto à “polêmica” do show da banda Do Amor, concordo com a opinião do crítico: já fui a alguns shows deles aqui no Rio e me dá sempre a impressão que estão ali obrigados. Adoro o primeiro disco, e desde aquela época isso se repete. Outro que fez um show assim recentemente foi o Jonas Sá, que lança um disco incrível e parece que não ensaia pro show.
Parabéns ao Leonardo Vinhas por ter feito o papel que um jornalista musical realmente deve fazer, elogiar o que merece e criticar o que merece. Hoje em dia a maioria das críticas de shows dos sites e blogs musicais parecem release de assessor. Aí quando o cara fala que um show que ele assistiu foi ruim mesmo aparece o artista “indignado”. Esse cenário da “brodagem” musical faz acontecer essas coisas. O Scream & Yell felizmente é exceção. Foi o caso da matéria também do disco novo do Vespas Mandarinas (que é pior que bater na mãe) e aqui foi o único lugar que eu vi uma crítica condizente.