Trecho de “Chega de Saudade”, livro de Ruy Castro
“Poucos meses antes, em meados de 1957, (Roberto) Menescal estava em casa, na festa de bodas de prata de seus pais, no apartamento da Galeria Menescal, quando bateram à porta. Devia ser mais um convidado. Foi abrir e um rapaz que ele nunca vira perguntou:
“Você tem um violão ai? Podíamos tocar alguma coisa”.
O rosto de Menescal transformou-se num ponto de interrogação. Não sabia o que dizer. Descobriu imediatamente quando o rapaz se apresentou:
“Eu sou João Gilberto e quem me deu seu endereço foi Edinho, do Trio Irakitan”.
Para Menescal, se aquele era João Gilberto, o nome de seu ex-professor Edinho era dispensável como recomendação. Ele já ouvira falar em João Gilberto – e, no meio de jovens músicos cariocas nos últimos meses, quem não? Sabia que se tratava de um baiano meio louco e genial, fabuloso no violão, cantor afinadíssimo e que às vezes aparecia no Plaza. Convidou-o a entrar. João Gilberto atravessou as dezenas de convidados como se eles fossem feitos de vapor – da mesma forma, ninguém o viu – e foram para um quarto nos fundos. Não disse mais nada. Apenas examinou o violão, afrouxou uma ou duas cravelhas, testou o prolongamento das notas e cantou “Hô-ba-la-lá”, sua própria composição.
Era um beguine – um ritmo caribenho que, mesmo em 1957, já estava mais do que esquecido se não fosse por aquela canção de Cole Porter. Menescal não entendeu direito a letra, e ainda que ela fizesse muito sentido, ele, como a maioria dos músicos, não dava importância a letras. E quem queria saber de letras diante do que ele estava ouvindo?
A voz de João Gilberto era um instrumento – mais exatamente, um trombone – de altíssima precisão, e ele fazia cada sílaba cair sobre cada acorde como se as duas coisas tivessem nascido juntas. O que era espantoso, porque o homem cantava num andamento e tocava em outro. Na realidade, não parecia cantar – dizia as palavras baixinho, como Menescal já ouvira outros fazendo. Mas ele sentia que João Gilberto, se quisesse, seria capaz de se fazer ouvir lá na sala, com ou sem festa. João Gilberto cantou “Hô-ba-la-la” cinco ou seis vezes, com mínimas alterações, mas cada versão parecia melhor que a anterior. E que diabo de ritmo era aquele que ele fazia? Menescal não resistiu. Pegou-o pelo braço, com violão e tudo, e saiu com ele pela noite. Ia exibi-lo aos amigos.
Começou pelo apartamento de Ronaldo Bôscoli, na Rua Otaviano Hudson. João Gilberto cantou “Hô-ba-la-la” incontáveis vezes. Cantou também uma outra canção sua, esquisitíssima, chamada “Bim Bom”, e uma série de sambas que eles nunca tinham ouvido – e que João Gilberto ia identificando como tendo sido grandes sucessos desse ou daquele conjunto vocal do passado. Em apenas uma noite e quase todo o dia seguinte (ninguém dormiu), ele lhes abriu os ouvidos para uma música brasileira muito mais rica do jamais haviam imaginado. E, quando lhes falou de suas admirações – Lúcio Alves, Dick Farney, Johnny Alf, João Donato, Luiz Bonfá, Tom Jobim, Tito Madi, Dolores Duran, Newtom Mendonça, vários deles seus amigos -, eles entenderam tudo. Para Menescal e Bôscoli, naquela noite, João Gilberto era a realidade encarnada do que, até então, eles vinham procurando às cegas, meio pelo tato.
Da casa de Bôscoli, completamente insones, foram logo de manhã ao apartamento de Nara, onde a epifania se repetiu, e, de lá, à casa de Aná e Lu, na Urca. Menescal queria aprender aquela batida que João Gilberto fazia no violão – aquele jeito de tocar acordes, não notas, produzindo harmonia e ritmo de uma só vez. Durante essa perigrinação de quase dois dias, sem pausas, ele não tirava os olhos das mãos de João Gilberto. Particularmente da mão direita: Menescal observou que os dedos polegar e mínimo de João Gilberto se esticavam, formando quase uma reta, enquanto os três dedos do meio faziam a pegada e retesavam todos os músculos do seu antebraço. E ele, Menescal, se achava professor de violão!
E havia as coisas que João Gilberto falava enquanto iam de casa em casa e de volta ao apartamento de Ronaldo. Poesia, por exemplo. Carlos Drummond de Andrade era claramente o seu favorito, mas ele também recitou, de cor, trechos inteiros de “Cartas a um Jovem Poeta”, do alemão Rainer Maria Rilke. Literatura era uma preocupação remota dos músicos, inclusive cantores, e era inédito ouvir um deles citando escritores com tanto desembaraço. Em outro momento, João Gilberto começou a falar de técnicas de emissão de voz. Tinha admiração pela maneira como Dick Farney controlava a respiração ao cantar, conseguindo soltar quilômetrosde frases num único fôlego, “apesar de fumar dois maços de Continental por dia”. (Menescal observou depois que, durante todo o tempo em que estiveram juntos, João Gilberto não fumou e parecia resmungar quando alguém acendia um cigarro ao seu lado. E também não bebeu, o que era duplamente estranho. Poxa, todo mundo bebia ou fumava!).
Mas o que deixou Menescal atarantado foi quando João Gilberto explicou-lhe como exercicitava técnicas dos iogues para respirar, e como isso lhe permitia espichar ou encurtar as frases musicais, sem perder sílabas e sem se cansar. Os exemplos vinham uns atrás dos outros. Tudo aquilo repicava nos ouvidos de Menescal como pepitas douradas e ele percebeu, fascinado, que estava ficando preso àquele homem. A imagem que lhe veio à cabeça, para definir João Gilberto, foi a de uma aranha em sua teia, tecendo seduções ao redor de moscas. Precisava tomar cuidado. Pois não adiantou de nada saber disso: quando se despediu dele na rua e voltou pra casa, a fim de tentar dormir, já estava falando, pensando e se comportando como João Gilberto”.