'Ringleader Of The Tormentors', de Morrissey
por Marcelo Costa
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16/04/2006

Morrissey é um deus da música pop adulta (ahñ) do século XXI. Não seria uma posição confortável para qualquer ser-humano, ao menos se essa pessoa não fosse o próprio Steven Patrick Morrissey, um britânico natural de Manchester que trafegou do paraíso ao inferno da música pop desde que, um dia, assumiu que não podia negar passar quinze minutos com o ser amado (Reel Around The Fountain), ironizou sublimemente a busca pelo sentido da vida tendo o sexo no banco de couro de um carro como resposta (This Charming Man) e reclamou que a Inglaterra lhe devia condições de vida enquanto questionava se era a mente quem governava o corpo, ou era o contrário (Still Ill). Nestes três clássicos incontestes do debute dos Smiths, lançado no inverno de 1983, Morrissey já dizia a que viria, e em pouco menos de quatro anos conquistou uma legião de fãs com seus versos desoladores carregados de ironia, cujo ápice definiu, em 1986: "O amor é natural e real, mas não para pessoas como eu e você" (I Know It's Over). Em cinco anos de vida, os Smiths passaram como uma tempestade pela vida de centenas de milhares de pessoas.

Quando saiu em carreira solo, após o fim da banda em 1987, Morrissey conquistou o Olimpo pop batendo no número 1 da parada britânica. Após esse fragmento de perfeição, a carreira do cantor começou a alternar grandes momentos com discos completamente ignorados pela crítica. Isso tudo até 1997, quando lançou pela gravadora Mercury o álbum Maladjusted, um ótimo disco que acabou por o levar ao inferno. Com a falência da gravadora no ano seguinte, e preso por contrato, Morrissey se viu impedido de lançar um disco novo. Shows esparsos, nada de clipes, nada de divulgação, nada de novas canções. Morrissey parecia morto e enterrado atrás de sua própria persona difícil até que decidiu, ele mesmo, bancar seu próprio destino. Sem disco novo, sem bandas badaladas abrindo suas apresentações, sem divulgação em rádio, o cantor partiu para uma turnê mundial lotando qualquer biboca que trouxesse seu nome no cartaz. O hiato da mídia também serviu para que o cantor fizesse as pazes com o repertório dos Smiths, e canções da banda começaram a freqüentar o set list das apresentações. Do purgatório, nascia um novo Morrissey.

Exatamente sete anos após lançar seu último álbum de estúdio (umas dez eternidades no universo pop, tão acostumado a modas e modismos semanais), Morrissey retornou em maio de 2004 com o afiado You Are The Quarry, que o trazia na capa de terno e gravata empunhando uma espingarda, e disparava logo nas primeiras frases da faixa de abertura: "A América é a terra dos livres e das oportunidades, mas o presidente não pode ser negro, mulher ou gay" (América In Not The World). Cidadão de Los Angeles desde o começo da década de 90, o cantor rompia seu silêncio atacando tudo e todos, mas cravando em lados b velhas frases matadoras como "minha vida é uma sucessão de pessoas dizendo adeus" (título de uma canção) ou "quando eu estiver morto, leia-se: aqui se encontra a imagem pública, 5% humana e 95% imagem" (Public Image). Ao total, entre álbum e lados b de single, Morrissey lançou vinte e quatro novas canções em pouco mais de um ano. You Are The Quarry vendeu mais de 1 milhão de cópias no mundo todo.

Prestes a completar 47 anos, morando em Roma após desistir de Bush e da falsa democracia norte-americana, Morrissey apresenta seu oitavo disco solo, o "apaixonado" (no jeito Morrissey de ser) Ringleader Of The Tormentors, um álbum sintomaticamente mais próximo da poesia desoladora do clássico The Queen is Dead dos Smiths, tanto quanto You Are The Quarry remetia ao debute de 1983. O bardo precisou sair do purgatório em que ficou enclausurado durante sete anos (fragmentado na dor de um artista não poder exibir sua arte), armar-se na capa de um disco com terno e espingarda, atacar os Estados Unidos, a Inglaterra e a Escócia, rodar o mundo vestido de padre (uma roupa toda preta com um pequeno detalhe branco na gola), e mudar-se para a Itália em busca da felicidade, do amor e da luxuria, para encontrar aquilo que sempre procurara: o amor. Todo esse calvário encontra resposta e reforço em Ringleader Of The Tormentors, um álbum que nada traz de novo no quesito musical, mas enfileira uma porção de letras afiadas que justificam o título cravado pelo sério jornal britânico The Guardian: "Morrissey é o maior inglês vivo".

O cantor abre mão de qualquer epíteto (seja "deus", "messias" ou "o maior inglês vivo") logo em I Will See You In Far Off Places, faixa que abre Ringleader Of The Tormentors dizendo: "Ninguém sabe nada sobre a vida humana: de onde viemos, para onde vamos. Por que eu iria saber?". Com sonoridade oriental, guitarras pesadas e bateria marcial, I Will See You In Far Off Places fala disfarçadamente sobre a morte e explicitamente sobre as bombas que os EUA podem jogar sobre todos nós. O clima claustrofóbico do início deságua na possível faixa mais redentora de toda sua carreira. Se em You Are The Quarry ele perdoava Jesus, em Ringleader Of The Tormentors ele escreve: "Querido Deus, por favor, me ajude". É Dear God, Please Help Me, baladaça de partir corações frágeis que conta com um delicado arranjo de cordas de Ennio Morricone e uma das frases mais lindas do álbum: "Estou cansado de fazer as coisas certas". De que adianta ser certinho e ser punido, questiona o bardo pelas ruas de Roma, repetindo: "O coração se sente livre".

A Itália influenciou diretamente na composição do disco. Morrissey se mudou para lá, pois queria muito trabalhar com Tony Visconti, produtor e colaborador de longa data de David Bowie. Como Visconti não abre mão de sair de Roma, Morrissey foi até ele. A cidade italiana e o Vaticano inspiraram a balada Dear God, Please Help Me, que abre com o verso "eu estou andando em Roma", e o rock You Have Kill Me, que cita "entidades" italianas como os diretores Pier Paolo Pasolini, Luchino Visconti e a atriz Anna Magnani. You Have Kill Me antecipou o álbum sendo o primeiro single. A faixa seguinte, The Youngest Was the Most Loved, é o segundo single, e traz um coro de crianças no refrão apoiando Morrissey em uma história típica do filhinho bem cuidado que se transforma em um assassino. "Não há nada normal na vida", cantam as crianças no refrão. Em In The Future When All's Well, amparado novamente por guitarras, Morrissey conta que "todos os dias joga um jogo chamado tristeza". The Father Who Must Be Killed conta a história do personagem do título, e traz novamente crianças no refrão clamando pelo pai que deveria ser morto. No épico Life Is A Pigsty, uma das grandes canções de Ringleader Of The Tormentors, com breaks conduzidos por violão e linda climatização, o poeta escreve: "Eu vivo cada segundo da minha vida para você, e você pode me jogar para fora do trem, que eu vou permanecer". Na balada cheia de efeitos I'll Never Be Anybody's Hero Now, ele conta que o seu amor está debaixo da Terra. No bom rock On The Streets I Ran, o cantor se vê andando pelas ruas de Manchester, a cidade que o criou, agora como um interprete de canções populares, e tudo que esta mudança de persona acarreta em sua personalidade.

O trecho final do disco traz os melhores arremedos poéticos e confessionais do bardo. Na bonita To Me You Are A Work Of Art, ele crava a maior carta de apresentação que já colocou em um disco: "Eu vivo a vida. Eu sinto a dor para cantar esta canção", diz ele - tragicamente - na abertura, para concluir no refrão apaixonado/irônico: "Para mim, você é um trabalho de arte. Eu te daria o meu coração, se eu tivesse um". Já I Just Want to See the Boy Happy se apoia no título "diz tudo": "Eu tenho um último sonho antes de morrer: como minha própria vida não importa qualquer coisa, eu só quero ver o menino feliz. Por que é tão mal pedir isso?", questiona. Para o final, o renascimento: At Last I Am Born, com o mesmo coro de crianças de The Father Who Must Be Killed, e uma letra que louva a nova vida que o cantor encontrou em Roma.

Desde que surgiu com os Smiths, Morrissey foi sempre um ser muito mais textual que musical. Com a companhia do guitarrista Johnny Marr, principal compositor dos Smiths, no entanto, não havia com o que o cantor se preocupar. Já na carreira solo, o amparo musical que o cantor recebeu na carreira sempre foi cheio de altos e baixos. Não à toa, suas maiores virtudes musicais estão ligadas a produção de gente como Vinny Reily (a estréia com Viva Hate em 1987), Mick Ronson (o poderoso Your Arsenal de 1992) e Steve Lillywhite (o suave Vauxhall And I de 1994). Não há como cobrar musicalidade de Morrissey. Assim como os Ramones ou o Motorhead, Morrissey criou um estilo e trafega sossegadamente sobre ele. É impossível imaginar o poeta buscando inspiração na eletrônica ou buscando novos sons. Ele tem a virtude de ser um grande letrista, talvez o maior em atividade na música pop moderna, e cada letra de uma canção sua vale discos inteiros de uma porção de novas bandas que a mídia ousa tentar nos fazer engolir.

No entanto, e isso precisa ser dito, a felicidade nunca foi boa companheira dos poetas. Após ser encarcerado pela sua ex-gravadora, e obrigado a se manter em silêncio por sete anos, Morrissey ousou posar com uma espingarda na capa de um disco e transformou-o em seu álbum mais vendido. Agora, o letrista - que ama Oscar Wilde acima de qualquer outra coisa - retorna posando com um violino na capa de seu novo álbum, é flagrado desvelando frases de amor feliz em novas canções e vive uma fase "paz e amor" em sua vida. Isso tudo resultou em um bonito disco de música pop de uma das poucas mentes que ousa fazer algo totalmente verossímil na mídia musical. Soa deja-vu na parte melódica, mas quem é que vai prestar atenção nas melodias com tantas frases interessantes para se ler/cantar? Talvez soe reducionista e funcione como um álbum de transição, mas não estamos falando de qualquer artista, e sim do cara que um dia sonhou em visitar Margareth Thatcher na cama acompanhado de um taco de beisebol (Bigmouth Strikes Again), mandou enforcar os DJs (Panic) e disse que estaria satisfeito se morresse atropelado por um caminhão de 10 toneladas ao lado de seu amor (There Is a Light That Never Goes Out). Dez pessoas com a personalidade deste cara colocariam o Brasil nos eixos. Uns cem dariam um jeito no Planeta Terra. E agora, pós-celibato, todos transariam felizes e apaixonados. Por mais que ele recuse o adjetivo, após sair de uma das bandas mais importantes dos anos 80, trafegar entre o paraíso, o inferno e o purgatório, Morrissey é sim um deus da música pop adulta do século XXI. E o resto do mundo caminha sobre sua sombra. Amém.

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