Matérias
Antológicas
"O
maior inglês vivo" - The Guardian
por Lúcio Ribeiro
Textos
publicados no caderno Ilustrada do jornal Folha de São
paulo em 27/12/1999
Morrissey,
ex-líder dos mitológicos Smiths, retoma trabalho
solo com disputados shows na América e na Europa; Folha
conta como foi o concerto em San Francisco; carreira do cantor
com e sem os Smiths é revista em DVDs, que serão
lançados em fevereiro
Em
época de balanço do século, interrompa-me
se você achar que já ouviu esta antes: a extinta
banda britânica The Smiths, liderada pelo bardo Morrissey,
é um dos três maiores grupos de música pop
dos últimos cem anos, quaisquer que sejam os outros dois
e mesmo levando em conta que o rock só exista há
uns 50. Os
Smiths surgiram em Manchester no começo dos anos 80,
quando Morrissey, acompanhado pelo som único da guitarra
de Johnny Marr, apareceu nas rádios clamando que a Inglaterra
lhe pertencia e devia a ele uma vida.
Poeta
da escola pop da melancolia, da ironia, do amor errante e da
terrível angústia de ter de voltar para casa sozinho
à noite, Morrissey fez dos Smiths uma banda singular.
E representante maior de uma classe mundial de moleques que
ficavam trancados no quarto, acometidos por uma timidez criminosa
e vulgar.
Com
o fim dos Smiths, em 1987, Morrissey partia em carreira solo.
Ainda fazendo uso de um lirismo arrebatador, mas agora abafado
por uma barulheira energética emergente, o grunge, que
mesmo com o ideal da destruição prestava tributo
aos Smiths (é famoso um concerto do Hole em Londres,
em 1991, em que a desbocada Courtney Love declamava letras dos
Smiths a cada intervalo de canções).
Pois
bem, Morrissey e consequentemente os Smiths voltam agora à
ordem do dia. Quem trilha o rumo pop há algum tempo sabe
que isso é bem sério.Mais de dois anos afastado
do showbiz e "escondido" em Los Angeles (prefere ser desconhecido
nos EUA a famoso na Inglaterra), ele acabou de encerrar uma
turnê das mais disputadas na Europa e EUA. Quer medir
o que o "tio" Morrissey, 40, representa ainda hoje para quem
um dia na vida esperou o telefone tocar e ele não tocou?
Sem álbum novo, sem gravadora, o súdito pop de
Keats e Yeats entupiu de entusiasmados fãs recentes shows
na Escandinávia, Alemanha, Itália, Inglaterra
e EUA. Na maioria de suas apresentações, Morrissey
resgatou algumas canções dos Smiths.
A
Folha de São Paulo assistiu ao show de San Francisco
e conta como foi, além de publicar abaixo uma recente
entrevista do cantor ao jornal irlandês Irish Times,
distribuída pela agência International Feature.
Mais
está por vir. Toda carreira de Morrissey será
revista em DVDs, a serem lançados em fevereiro. Um DVD
focalizando seu trabalho solo e um exclusivo para os Smiths.A
retrospectiva, tanto do Morrissey solo quanto à frente
de sua lendária banda, incluirá videoclipes e
imagens inéditas de shows ao vivo.E, se a Justiça
o liberar para assinar com uma das gravadoras que o assedia
(ele era da Mercury, que faliu, mas ainda o prende em contrato),
Morrissey lança seu novo álbum, o oitavo, que
está escrito e já teria nome: Irish Blood,
English Heart.
'A
música pop me salvou' - Morrissey
Por Brian Boyd
Em
recente entrevista, Morrissey fala sobre a Irlanda, a infância,
Smiths, política...
Com
os Smiths, ele era membro da melhor banda pop desde os Beatles.
Na carreira solo, ele continua a inspirar dedicação
extrema - e crítica extrema. Numa rara entrevista, realizada
em Milão, Morrissey fala pela primeira vez sobre sua
violenta educação, como sua "irlandidade" o formou
e por que ele não pensa em largar as luzes do pop.
Para
uns, ele é "o maior inglês vivo" (jornal inglês
The Guardian); para outros, o mais puro poeta de cozinha
do norte da Inglaterra, cuja obra é discutida e dissecada
ao lado de escritores como Alan Bennet e Mike Leigh. Morrissey
é o segundo filho de Patrick Morrissey e Betty Dwyer,
dois operários sonhadores de Crumlin que pegaram o barco
imigrante para Manchester para encontrar emprego nos anos 50.
Foi
lá, na fechada comunidade irlandesa de Hulme, que o jovem
Steven Patrick nasceu e cresceu sendo chamado de "paddy" (forma
depreciativa de se referir aos irlandeses). E foi lá
que, depois de "caminhar sozinho para casa na chuva muitas vezes",
ele se enturmou com um grupo da primeira geração
de "paddies" para formar a banda que ainda faz tremer os lábios
dos trintões e quarentões.
Não
que os Smiths fossem uma resposta da geração posterior
à dos Beatles. Eles eram também a encarnação
da clássica música pop e o mais irreverente grupo
que já desfilou pelas nossas revistas, programas e palcos.De
1982 a 1987, os Smiths reinaram supremos como inconvenientes
marginais tímidos. Eles eram a conclusão lógica
do punk rock e a primeira banda independente a perturbar o consenso
da então moribunda indústria da música,
assim como ainda é hoje.
Na
carreira solo, Morrissey continua a escrever, se apresentar
e, enquanto se discute se o seu trabalho é melhor agora
do que era na época dos Smiths, se mantém uma
das figuras mais francas do mundo da música."Tenho 40
anos", ele diz como se tivesse orgulho disso _do jeito que todos
os homens de 40 fazem. Agora vive em Los Angeles, mas alguns
anos antes morou em Malahide, na Irlanda.
"Existe
uma certa alegria em morar na Irlanda, sem tentar soar muito
piegas. Eles são pessoas muito amáveis. Quando
você está num lugar como o Submarine Bar, em Crumlin,
você pode se misturar com as pessoas e elas percebem que
você, apesar de tudo, é levemente normal. Em Manchester,
você tende a receber um 'Você não está
em Los Angeles agora', embora esteja apenas parado de pé
sem fazer nada. Eu ainda tenho residência na Irlanda."Será
que ele tem a intenção de se aventurar na vida
política/cultural da cidade? É tão ruim
quanto na Inglaterra. A política na Irlanda não
reflete o que está acontecendo com o povo. E a crise
da igreja posso ver bem porque está acontecendo. Meu
avô foi educado pela Irmandade Cristã e minha educação
veio pela mesma linha.
"Se
isso era muito ruim? "Muitos dos professores que eu tive eram
irlandeses, inacreditavelmente brutais e em muitos casos basicamente
homossexuais. É chocante pensar no que era permitido
e como as crianças era maltratadas dia após dia.
Minha educação na St. Mary Secondary School, em
Manchester, não foi educação. Era violência
e brutalidade. Assim que você entrava na classe, um minuto
após alguém era cruelmente espancado e todos continuavam
sentados em silêncio.
"Morrissey
não pára. "Tudo que eu aprendi foi não
ter auto-estima e sentir vergonha sem saber por quê. Faz
parte de ser da classe trabalhadora. Esperam que você
cresça respeitando a polícia e o sistema judiciário.
Tudo para manter essa classe no seu devido lugar. Anos atrás
me envolvi num processo com os Smiths (em 1994, o ex-baterista
dos Smiths Mike Joyce processou Morrissey e seu parceiro Johnny
Marr por uma porcentagem maior dos royalties. Joyce ganhou 1,25
milhão de libras - cerca de R$ 3,7 mi. No resumo, o juiz
John Weeks se referiu a Morrissey como traiçoeiro e truculento).
O que o juiz disse ficou nos arquivos para sempre, não
importa o que eu faça na minha vida. Se eu for processado
no futuro, tudo o que as pessoas devem fazer é recorrer
às palavras daquele juiz e eu perderei sempre. Entende?
Eu era da classe trabalhadora e fui feito para me sentir como
um camponês.
"O
curioso sobre a atual turnê Oye Steban, de Morrissey,
pela Europa e EUA é que ele está fazendo sem nenhum
produto a ser vendido (nenhum álbum novo, embora ele
venha tocando algumas faixas inéditas, incluindo uma
música chamada Women Don't Seem to Like Me) e
sem nenhum suporte, já que ele não tem gravadora.
Você não encontraria o M People tocando pelo prazer
de tocar.
"Eu
nasci para cantar na noite passada em Milão (dia 2 de
novembro), naquele palco, para aquelas pessoas. Fico feliz em
ainda fazer parte disso. Enquanto eu puder fazer cantar sem
parecer terrível, quero fazer."Mas ele já tem
o respeito e seu legado permanece intacto? "Não acho
que eu tenha o respeito. Você vai virar um fóssil
antes de me ver na MTV. Estou aqui sentado na sua frente sem
contrato com uma gravadora. Não estou desesperado e ainda
posso levar uma grande platéia aos meus shows sem ajuda
de ninguém. É assim que sempre foi. Tudo que eu
fiz foi apesar dos milhões de obstáculos e de
críticas.
Morrissey
também está trazendo uma banda indie de Dublin,
também sem gravadora, Sack, que abre seus shows."Sempre
fui independente. E sempre serei. Nunca fui parte de nada, nunca
pertenci a nada. Mesmo quando os Smiths estavam nas alturas,
sentíamos que éramos diferentes. Não
importa se estive na EMI, Mercury ou RCA, eu sempre mantive
minha alma. Fico triste pelas bandas novas. Já me encontrei
com gente de gravadora que fala que não está interessada
na sua carreira, só no que você vende. Você
é um produto. Sack, que está na turnê comigo,
não tem contrato com gravadora. Quando eu ouvi uma música
deles chamada Laughter Lineseu, fiquei boquiaberto. Deveria
ser número 1 para sempre".
Os melhores anos de Morrissey
se foram?
Certamente
seus trabalhos solo, como Everyday Is Like Sunday e Late
Night Maudlin Street, ultrapassam o que ele fez em companhia
de Marr, Joyce e Rourke. E ao vivo ele continua dinâmico
como sempre foi. E não está de partida: "Lembro-me
de que, quando comprei Starman, do David Bowie, era número
42 nas paradas e aquilo era extraordinário para mim.
Estava me apaixonando pela potência do momento pop. É
por isso que estou aqui, envolvido em música, porque
o momento pop na minha vida foi a única coisa que realmente
importou".Não dá para interromper um cara como
Morrissey: "Sim, existe literatura e arte, mas música
pop é uma combinação de literatura, arte,
fotografia, as palavras, a música, o ouvir as palavras
cantadas, assistir à performance. Crescer numa família
irlandesa em Manchester foi muito negativo. Eu queria saber
sobre A.E. Houseman e Oscar Wilde. Mas eu só era exposto
a violência e constrangimento. A música pop me
salvou".
Tradução Rogério Andrade
Morrissey canta Smiths em
show solo
por Álvaro Pereira Júnior
Não
é em todo show de rock que a platéia dá
flores de presente ao artista, mas tem sido assim, uma série
de rituais de adoração, a atual turnê do
inglês Stephen Patrick Morrissey pelos EUA. Morrissey,
como é chamado pelos fãs (seria melhor dizer devotos),
cantava e fazia as letras do Smiths, talvez a banda mais importante
dos anos 80. O quarteto de Manchester definiu o som daquela
década, falando de melancolia e solidão, de desajuste.
Em
dois shows recentes em San Francisco, Morrissey foi beijado,
abraçado e ficou surpreso quando um fã subiu ao
palco só para repousar a cabeça em seu ombro. Esta
é uma excursão especial: Morrissey não
lança material inédito desde 1997, estava havia
anos sem se apresentar em público e rumores davam conta
de que ele passava por uma fase de isolamento profundo e certa
instabilidade emocional.
Mas
não foi esse o Morrissey que se apresentou em San Francisco,
no clube Maritime Hall (definido por ele como "um auditório
de grêmio estudantil''). Confiante, conversando bem-humorado
com a platéia, Morrissey cantou três músicas
dos Smiths, o que não fazia desde 1987, ano do tumultuado
fim da banda.
Is
It Really So Strange?, Meat Is Murder e Last Night I
Dreamt That Somebody Loved Me compuseram o repertório
e foram das mais aplaudidas. A relação de canções
presa ao chão do palco, a chamada "setlist'', incluía
também outro clássico dos Smiths, Half a Person,
que acabou não sendo apresentado.
Morrissey
estava inspirado. Batia o fio do microfone no chão, mostrava
a língua para a platéia e fazia piadas com a segurança
excessiva, que tem marcado vários shows recentes nesta
região. Aos fãs que estendiam os braços
desesperados, tentando tocar no ídolo, ele respondia,
irônico: "Não posso, é ilegal, é
ilegal". Escrevendo
sobre um outro show recente, em Los Angeles, uma jornalista
local foi mordaz: disse que Morrissey, 40, está cada
vez mais parecido com El Vez, um balofo mexicano que faz covers
de Elvis Presley. Maldade.
Mas
é fato que boa parte dos cabelos se foram, os que ficaram
estão mais grisalhos e ele não tem mais o gigantesco
topete dos anos 80. Mais: uma barriga de quem não se
exercita há muitos anos teima em aparecer por baixo das
camisetas, providencialmente usadas por Morrissey para fora
da calça.
Mas,
longe de parecer um astro decadente, Morrissey apenas está
envelhecendo com dignidade. Ele não vive mais na Inglaterra.
Mora sozinho, em Los Angeles, numa casa espetacular, projetada
pessoalmente pelo ator Clark Gable, como presente para a doce
Carole Lombard. Segundo uma reportagem recente do jornal inglês
The Times, o escritor F. Scott Fitzgerald também
foi dono da propriedade e o diretor de cinema James Schlesinger
já morou ali. No anos 70, aconteceu nessa mesma casa
a festa de estréia do filme Os Embalos de Sábado
à Noite.
Johnny
Depp é vizinho de Morrissey, que passeia por Los Angeles
com seu Porsche prateado e se dá ao luxo de declarar
para o Times que, no tempo dos Smiths, "era mais pobre
e mentalmente empobrecido do que qualquer ser humano tem direito
de ser". Visto
na Inglaterra como uma figura esquisita e fora de moda, Morrissey
hoje se sente em casa nos EUA. Os shows estão todos com
lotação esgotada e, em San Francisco, uma noite
extra acabou sendo programada, tal a procura por ingressos.
Morrissey
entrega o que a platéia quer. No repertório, em
1h20, estão alguns dos momentos mais inspirados de sua
carreira solo, como November Spawned a Monster (mais
pesada ao vivo do que em disco), Hairdresser on Fire
(idem) e Now My Heart Is Full. O show estava ruim, e
as paredes lisas do Maritime Hall refletiam o som de tal maneira
que mal dava para escutar as guitarras. Morrissey lamentou:
"Se vocês não estão conseguindo ouvir nada,
a culpa não é nossa".
O
sucesso da turnê de Morrissey acontece apesar de ele estar
sem gravadora (sua última, a Mercury, faliu) e sem um
esquema decente de divulgação. Diz estar pensando
em lançar seu próximo álbum pela Internet,
último refúgio dos deserdados da indústria
do disco.
Indiferentes
a esses problemas, os fãs continuam lotando os shows
desse distinto senhor inglês, que, se não é
mais a última palavra em música moderna, tem lugar
garantido entre aqueles que fizeram alguma diferença
na história do rock and roll.
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