Matérias
Antológicas
"Rank" - The Smiths
por José Augusto Lemos
A
perfeição não é tão elusiva
quanto se pensa e, de vez em quando, manda cartões postais
do Purgatório, do Inferno e do Paraíso. A música
pop não é só a puta calculista que nos
traiu com a melhor anestesia, mas o rock’n’roll... is dead,
boys. De vez em quando, manda polaroids do cadáver em
seu esplendor, um milésimo de segundo antes de começar
sua deliciosa putrefação. Assim se passaram 34
anos desde Elvis e, para cada expressão digna de eternidade,
um labirinto de clones, derivados e diluidores, no qual algumas
gerações ainda estão condenadas a se perder.
Um bilhão de Robertos e Erasmos para cada Arnaldo Baptista,
o que só atiça o prazer da descoberta.
A
Última Banda de Rock’ n’ Roll teve, também, seu
Paraíso, seu Inferno e seu Purgatório. Em outubro
de 86, mais precisamente, estavam no National Ballroom, no subúrbio
londrino de Kilburn... um milésimo de segundos antes
dos primeiros sintomas do declínio. Rank (escalão)
não traz o show inteiro e esse é seu único
defeito. O delírio da massa torna inaudível a
"entrada" - Romeu e Julieta de Prokofiev - e a
saída - You’ll Never Walk Alone, com Shirley Bassey.
Entre elas, pau puro. Engrossado pela guitarra de Craig Gannon,
o quarteto original decola com The Queen Is Dead, na
fina fronteira entre o hard e o heavy... mas qual desses dois
territórios já ostentou uma letra assim... "letrada"
?
Está
escrito que, naquele dia histórico, a rádio em
que Morrissey estava sintonizado anunciou o vazamento em Chernobyl
e emendou com Wake Me Up Before You Go, do Wham. Assim
nasceu Panic, com seu inesquecível refrão
"Enforquem o DJ!". Em Rank, essa "excentricidade" é
seguida da historinha de um vigário que se diverte vestindo
um saiote de bailarina, um refúgio bem escolhido após
o exorcismo da infância e da adolescência nas canções
da safra The Smiths/Hatful Of Hollow (eles nunca
mais seriam os mesmos e foram os primeiros a saber disso).
Um
dia, Johnny Marr pilhou o riff de um fabuloso rockabilly do
repertório de Elvis, His Latest Flame, para fazer
Rusholme Ruffians - aqui ambas se fundem. E assim
vão se intercalando os postais e polaroids, com o deboche
de Bigmouth contaminando o desespero de Still Ill
e a navalhada ficando para I Know It’s Over (a canção
de amor mais intensa de Morrissey tinha, afinal, de ter sido
escrita para sua mãe... e para ele mesmo).
É
claro que para terem sido absolutamente perfeitos, os Smiths
teriam de ter acabado antes de Strangeways... e alguns
singles supérfluos que o precederam, como Sheila Take
a Bow. Mas isso não é coisa que se diga em
cerimônias solenes como o Grande e Dançante Velório
do Rock’n’Roll. Descanse em paz, amor...
Por
José Augusto Lemos, na Bizz nº 41, dezembro de 1988.
Marcelo
Orozco, conselheiro do SY, disse-me certa vez, ao comentar
a resenha que o americano Lester Bangs (um dos melhores
críticos de música, senão o melhor)
havia feito para o clássico Astral Weeks de Van
Morrison, que ele gostou mais do texto de Bangs do que
do disco de Van Morrison.
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O
caso só não se repete aqui porque Rank é
um discaço! Mas essa resenha é sublime.
E tão bem escrita e inteligente que cheguei a usar
todo o primeiro parágrafo na apresentação
do meu Projeto de Conclusão de Curso na Faculdade...
e ficou ótimo. Sem dúvida, matéria
antológica.
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Marcelo
Silva Costa
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