The Delgados - Hate
por
Francisco Marés de Souza
http://www.pangloss.blogger.com.br
03/06/2003
Existem discos e discos. Alguns belos,
alguns feios, alguns bons, ruins, delicados, pesados, acessíveis,
experimentais, enfim, uma infinidade de adjetivos que, no final, são
apenas o reflexo do "efeito" que o disco causou ao ouvinte. Qualquer um
desses adjetivos pode ser atribuído a qualquer disco, dependendo
apenas do humor de quem os ouve. Mas existe um que se aplica a poucos e
raros discos, aqueles que não são lançados a cada
semana, mas quando são, iluminam os rostos (e os ouvidos) dos amantes
de música do mundo inteiro: são os discos 'especiais'. Discos
que, por algum motivo, transcendem o bem e o mal, fascinando, encantando
e deleitando o ouvinte por algum motivo especial, como, por exemplo, "Revolver",
"Exile on Main Street", "Surfer Rosa"
e "The Bends". Inclua mais um disco preciso nessa lista: o mais novo
álbum dos escoceses dos Delgados, "Hate".
Para conseguir esse feito, a banda
reatou a parceria com o renomado produtor David Friedmann que já
havia dado certo no belo "The Great Eastern",
álbum anterior do quarteto escocês. Friedmann sabe como fazer
as coisas funcionarem em um estúdio quando tem uma grande banda
nas mãos. Não à toa, trabalha com Mercury Rev e Flaming
Lips desde o início da década de 90, incluindo os álbuns
"Deserts Songs" e "Yoshimi
Battles The Pink Robots", de cada banda, respectivamente. Mais? Ele
foi engenheiro de som do álbum "Pinkerton" do Weezer, produziu "Come
on Die Young" do Mogwai, "Romântica"
do Luna e... "The Great Eastern"
dos Delgados (melhor colocar reticências senão a matéria
não acaba)...
Já com o Delgados é
outra história. A banda vinha de um passado barulhento, marcado
por bons álbuns como "Domestiques" e "BBC Sessions", ambos de 1997
e inéditos no Brasil. Essa fase chegou ao ápice no genial
"Peloton" (1999) e praticamente se encerrou, afogada em belíssimos
arranjos de cordas e sutis duetos vocais, com "The Great Eastern" (2000).
Em "Hate", o Delgados fez um disco
remando contra a maré, utilizando grandes orquestras, melodias apaixonadas,
refrões épicos, indo em uma direção totalmente
oposta ao que propõe o "novo rock" (a saber, White
Stripes, Strokes, Vines,
Hives, entre outros). Graças
a isso, foram muito além do que qualquer um dos citados.
Seus detratores afirmam que o disco
é exagerado e pretensioso. Sim, "Hate" é muito exagerado
e muito pretensioso, mas o exagero deu a força e a consistência
que talvez faltaram em seus trabalhos anteriores e a pretensão é
necessária quando se quer fazer algo especial.
O álbum começa com alguns
violinos suaves, que servem como portões de entrada para o universo
da banda, em uma das introduções mais belas dos últimos
tempos. Mas em pouco tempo, essa beleza acaba sendo sugada por um sombrio
ataque de cordas, efeitos, guitarras e bateria. É "The Light Before
We Land", a primeira pérola do disco. Com uma letra linda, nostálgica
("Before we let euphoria / Convince us we are free /Remind us how we used
to feel / Before when life was real"), alterna momentos de tensão
com uma melancolia suave, que cai como uma luva para os suaves e delicados
vocais de Emma Pollock. É interessante notar o vocal da menina:
em uma época de vozes superproduzidas, exageradas e (metidas à)
virtuosas, ela parece sua vizinha, um pouco tímida, mas com uma
afinação impecável e um tom absurdamente realista.
Em um nítido contraste, vem "All You Need Is Hate", a faixa seguinte:
uma sátira bem bolada do clássico daquela bandinha de Liverpool
(como é o nome deles mesmo? Bee... Bea...), com todo o exagero do
arranjo da "original", mas com uma letra "ligeiramente" alterada. É
a irônica alma de Alun Woodward, que com sua voz desafinada grita
versos do calibre de "Hate is everywhere, look inside your heart and you
will find it there" como se estivesse falando de alegria, amor, paz, etc.
Genial! O tipo de música politicamente incorreta que esse mundo
precisa tanto.
Depois da ode ao ódio, a melancolia
volta a dar o tom do disco. Ainda assim, a banda não cai no lugar-comum
das baladas "tristinhas" que parecem infestar as paradas inglesas como
gafanhotos. Usam toda essa dúvida, esses conflitos e essa angústia
para produzir algo criativo e belo, absurdamente belo. As músicas
seguintes, "Woke From Dreaming" e "The Drowning Years" são exemplos
perfeitos para essa faceta do álbum. A primeira mostra Emma e sua
voz delicada sobre uma magnífica melodia para piano, alternando
escalas maiores e menores. A segunda traz o outro lado de Alun, frio, distante,
sob rajadas de violinos e um poderoso refrão.
"Coming In From The Cold" é
o grande single do disco. Talvez o grande single do ano passado, apesar
de ter passado relativamente desapercebido pelo mercado (Teenage
Fanclub nunca chegou ao topo das paradas, o que prova que qualidade
e apelo pop não são, nem de longe, sinônimos ou pré-requisitos
para o sucesso). A canção alia a profundidade e emoção
dos arranjos de "Hate" com uma melodia para lá de cativante e acessível.
Simples, genial, é o que as pessoas costumam chamar de "pop do bem",
verso-refrão-verso-refrão em nome da boa música. Um
verso? "We're coming in from the cold, and everybody's searching for someone
to hold". Talvez seja bobo, mas é tocante, e fica ainda mais tocante
na voz de Emma.
Como contraponto vem "Child Killers",
a música menos acessível, com um arranjo etéreo (se
Brian Wilson ouvir vai amar),
uma estrutura estranha e lentidão. Mas, de novo, a banda tira leite
de pedra, e faz do que poderia ser uma música chata e pretensiosa
uma grande canção... de ninar.
"Favours" acaba sendo a única
música mediana do disco. Em outras ocasiões brilharia, mas
seu brilho acaba ofuscado no meio de tantas obras-primas. Lembra vagamente
"Thirteen Glinding Principles", do disco anterior, mas serve apenas como
uma ponte para o trio final de "Hate", que se inicia com a brilhante "All
Rise". "All Rise" começa pequena e delicada. Alun Woodward, sozinho
com um piano, canta versos tristes e belos ("I gave you madness I gave
you sadness / I don’t have much body / And you were all soul"). A canção
começa a ganhar peso com a entrada da bateria, alguns vocais ao
fundo, guitarras discretas e o baixo sempre inventivo de Stewart Henderson.
Como uma bomba, o refrão surpreende a todos, com corais, orquestras,
guitarras, baterias e emoção, muita emoção.
Um grande refrão, que ao mesmo tempo traz lágrimas e sorrisos
aos ouvintes mais sensíveis. "All Rise!" Tudo se ergue! Para ser
derrubado de novo...
"Never Look At The Sun", a próxima,
começa com a mesma suavidade da faixa antecessora, mas com o vocal
de Emma e um instrumento de sopro que, infelizmente, meu ouvido leigo ainda
não pode definir exatamente qual é (acredito ser um oboé...).
Uma voz diz "some cold confort will tell you what's true" e começa
o refrão. Este surge discreto, pelo menos para o padrão do
disco, mas a orquestra parece explodir em uma cadência enfurecida
para acompanhar a voz de Emma, entre sua suavidade natural e o desespero
da melodia. De novo, o refrão joga o ouvinte para o alto, sem avisar,
sem pedir licença. E esse tom épico continua, no contraste
entre versos distantes e etéreos, chegando a um clímax quase
inacreditável no final. A banda parece brincar com o nosso coração,
expondo-o a emoções adversas, contraditórias, sempre
com uma profundidade rara, uma beleza difícil de ser atingida.
Quando a música acaba, podemos
jurar que chegamos ao grande clímax, que Emma, Alun, Paul e Stewart
já chegaram ao ponto máximo de sua audácia. E assim
começa "If This Is A Plan". Uma melodia não muito convencional
faz cama para os vocais contidos de Woodward. Ao que tudo indica será
um final parecido com o de "The Great Eastern", "Make Your Move". Mas eis
que irrompe o (maldito) refrão, com todos os instrumentos que passaram
pelo álbum, toda a emoção que manchou as melodias
da banda, a dor, o alívio, a felicidade, o ódio, a violência,
tudo, tudo, o mundo parece desabar sobre nós em forma de música.
O êxtase, o clímax. Algo fora do comum, algo extraordinário.
Quando tudo acaba, estamos derrotados pela avalanche de sons, sentimentos,
melodias, palavras e texturas proporcionada por esta pequena obra de arte.
E seguimos nossas vidas, mas marcados por um punhado de grandes melodias.
Ainda assim, depois de tantas palavras,
não consegui explicar com clareza por que disco é especial.
Ninguém vai colocar isso em palavras, em fórmulas, de maneira
alguma. Mas não é difícil entender; compre, empreste,
baixe, roube, mas ouça, uma, duas, dez, mil vezes. Você vai
entender.
Post Script: "Hate" foi lançado
no Brasil pela Sum Records, no finzinho do ano passado. Tudo que foi descrito
aqui está numa (boa) lojinha perto de você. Mas, para os navegantes,
um último aviso: em março deste ano saiu, apenas nos Estados
Únidos, uma nova versão do álbum trazendo uma etiqueta
("The Complete Hate Sessions") e mais duas bônus tracks: "Coalman"
e "Mad Drums". Essas você descobre sozinho, caro leitor.
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