"Maria Cheia de Graça"
por Marcelo Costa
maccosta@hotmail.com
13/04/2005

Existem várias maneiras para que um filme conquiste uma pessoa. Pode ser pelo coração (Antes do Por-do-Sol), pela beleza plástica (Os Sonhadores), pela genialidade do roteiro (Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças), pela simplicidade narrativa (Whisky), pelo olhar (Herói), pelo humor e sarcasmo (Kill Bill), entre tantas outras. Uma das mais violentas, porém, é quando o filme nos pega pelo estômago. Como exemplos recentes podem ser citados Réquiem Para Um Sonho, 21 Gramas, e o poderoso Amores Brutos. Lembro de ter vontade de sair da sala ao final da segunda história de Amores Brutos (a narrativa intercala três histórias), tamanha era a dor que o filme havia causado no meu castigado estômago. Alguém pode pensar: "Isso é masoquismo! O cara vai ao cinema para sofrer!". Porém, isso é cinema. Quando o que passa na tela consegue tocar o espectador de alguma forma (entre as citadas no começo do texto e muitas outras), é que houve um contato do diretor com seu público. É quando um filme (ou uma música, ou um trecho de um livro) pode mudar a vida de alguém.

O excelente Maria Cheia de Graça, uma parceria Colômbia/Estados Unidos, integra o grupo de filmes que batem forte no baixo plexo solar, podem causar pesadelos e fazem pensar, muito. Maria Cheia de Graça é simples, mas se torna grandioso pela união de pequenos acertos. O primeiro desses acertos se chama Catalina Sandino Moreno. A belíssima atriz colombiana faz sua estréia nas telas e simplesmente encanta em seu papel, comedido, de poucos sorrisos e muitas dúvidas. Catalina, que tem 21 anos, interpreta Maria (17), uma garota que vive em uma pequena cidade perto de Bogotá, capital da Colômbia. Maria trabalha em uma grande plantação de rosas, retirando espinhos. De saco cheio do trabalho, monótono, ela briga com seu superior e pede demissão. Porém, encontrar emprego em um pequeno povoado na Colômbia é praticamente impossível. Desiludida, em pé de guerra com a família (que exige que ela se humilhe e retorne ao antigo emprego para ajudar a sustentar a casa) e vivendo um namoro sem paixão (pior, grávida do namorado), não demora para que nossa heroína seja seduzida por uma proposta tentadora: a de levar cocaína para os Estados Unidos, dentro de seu estômago. O "servicinho" é bem remunerado (US$ 5 mil), porém, absurdamente arriscado, afinal, ela pode ser presa pela polícia americana, ou, pior, morrer se um dos papelotes de cocaína se abrir em seu estômago. Detalhe: ela carrega, em sua primeira viagem, 62 papelotes (e eles são grandes!)

Catalina dá ao seu personagem um tom quase real, como se estivesse filmando um documentário. Maria só sorri nas festas que acontecem no vilarejo. Fora isso, olhos serrados, pose séria e um misto de medo e dúvidas e insegurança preenchem a atuação redentora da atriz. Por esse papel, Catalina se tornou a segunda sul-americana a receber uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz, fazendo companhia para Fernanda Montenegro, que havia sido indicada por seu belo trabalho em Central do Brasil. Mas é interessante notar que há uma grande diferença das duas atuações: Fernanda teve o "auxílio" da edição, do som, do roteiro manjado que busca o choro e a comoção fáceis (não que isso seja um pecado, mas é um artifício comumente usado para se conquistar o espectador, e que funciona muuuuito bem). Catalina não teve nada disso, e esse é o segundo pequeno acerto de Maria Cheia de Graça. O estreante diretor Joshua Marston abriu mão de qualquer artifício e concentrou seu foco na história. O resultado surpreende.

Marston dirige com mão firme, e não entrega a história de bandeja. Mistura drama com thriller, carregando o roteiro com destreza, e não deixando a história descambar para o melodrama barato, desses que fazem o espectador sair chorando do cinema. Ele apresenta Maria, conta sua história, envolve a amiga Blanca na trama, surge uma outra futura amiga, e temos o namorado, o paquera, os traficantes, a polícia, o futuro filho e os Estados Unidos, a terra prometida, tudo surgindo e saindo na tela sem deixar vácuo na história. Mais: o diretor ainda consegue fazer o espectador entender a posição de sua Maria Cheia de Graça, que ao invés de levar Jesus no ventre, carrega sabe se lá quantos quilos de cocaína. É um filme que demonstra, com violenta dose de realidade, o que o desespero provocado pela miséria pode levar uma pessoa a fazer, mesmo contra sua vontade. Orgulho é uma palavra que não existe no dicionário dos perdedores, deve imaginar o diretor.

Catalina foi amplamente elogiada por sua atuação, tendo ganhado o Urso de Prata de Melhor Atriz em Berlim e o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Seattle e no Independent Spirit Awards. Maria Cheia de Graça levou o Prêmio Alfred Bauer, no Festival de Berlim, ganhou o prêmio de Melhor Filme pelo Voto Popular, no Sundance Film Festival, e, ainda foi premiado como Melhor Roteiro de Estréia no Independent Spirit Awards e o Grande Prêmio Especial, o Prêmio do Público e o Prêmio da Crítica, no Festival de Deauville. Só não pôde concorrer ao Oscar, como Melhor Filme Estrangeiro, por ser uma co-produção Estados Unidos / Colômbia. Enquanto isso, no Brasil, estavam querendo Olga na disputa... Nossos vizinhos deram um banho de cinema em 2004 com o chileno Machuca, o uruguaio Whisky, o argentino Abraço Partido e esse pseudocolombiano Maria Cheia de Graça. Quatro filmes que merecem sua atenção, caro leitor. Dos quatro, apenas Maria Cheia de Graça está em cartaz. Aproveite.


Leia também:
"O Abraço Partido", por Marcelo Costa
"Whisky", por Marcelo Costa
"Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças", por Marcelo Costa
"Antes do Pôr-do-Sol", por Marcelo Costa
"Os Sonhadores", por Marcelo Costa
"Kill Bill Volume 2", por Marcelo Costa
"Herói", por Marcelo Costa
Réquiem Para um Sonho, por Ana Cecília Del Mônaco
"Amores Brutos", por Miguel F. Luna