"Os Sonhadores", de Bernardo
Bertolucci
por
Marcelo Costa
Fotos - Divulgação
maccosta@hotmail.com
09/12/2004
Não
é nada fácil descrever Os Sonhadores. A maior dificuldade
reside no fato do filme ter ligação - direta e indireta - com
dezenas de clássicos da história do cinema, os quais, 80% do
público que acessa este site nunca viu. Inclusive eu. Por mais
que se pesquise, por mais que se faça ligações, conjecturas
e visitas a locadora, parece ficar faltando algo. A mente viaja
em busca de explicações. Não é qualquer filme que faz isso com
uma pessoa, e esse já é um dos méritos de Bertolucci: Os
Sonhadores faz o espectador sonhar.
Existem dezenas de leituras possíveis para o novo filme do cineasta.
Das mais racionais até as mais viajandonas, é necessário situar
a trama que move o filme: tudo acontece entre fevereiro e maio
de 1968, em Paris, no cerne da revolução que colocou estudantes
frente a frente com a polícia e entrou para a história mundial.
É ali, naquele barril de pólvora, que dois rapazes e uma garota
dividem paixão pelo cinema, desejo de mudar o mundo (cada qual
do seu jeito), um espaço na mesma banheira e vinho, muito vinho.
A trama começa no exato momento que Henri Langlois é demitido
da direção da Cinemateca francesa pelo escritor André Malraux,
ministro da Cultura do presidente Charles De Gaulle. A demissão
deixa revoltados estudantes e os maiores cineastas de todo mundo.
Gente como Godard, Truffaut, Kurosawa, Fellini e até o brasileiro
Glauber Rocha protesta contra a demissão. Uma manifestação em
frente da Cinemateca é dispersa com bombas enquanto a polícia
desce o cacete em estudantes, cineastas e escritores. Se havia
um barril de pólvora preste a explodir, o fio deve ter sido
aceso neste período. Os enfrentamentos se tornaram corriqueiros
e logo maio entraria para a história.
O parágrafo anterior é totalmente verídico, mas permite reflexões.
A visão cinematográfica de Bertolucci escancara a idéia de
que o cinema foi o grande responsável pelas manifestações
políticas
que vieram a seguir, com estudantes e trabalhadores tomando
as ruas a ponto de colocar a economia francesa em xeque. É
algo a se analisar melhor. 1968 foi um ano complicado demais.
Os Estados Unidos já estavam no Vietnã e a União Soviética
havia invadido a Tchecoslováquia. Na América, Jim Morrison
e Lou Reed falavam de forma direta de coisas bem mais complicadas
do que
os Beatles, por exemplo, falavam no mesmo momento, apesar de
Sgt. Peppers. Por mais que Eric Clapton ostentasse o
epíteto de Deus da Guitarra, não era Clapton que estava invadindo
os tímpanos dos soldados americanos no Vietnã, e sim Jimi
Hendrix. Os pedaços do coração de Janis Joplin ainda batiam.
O mundo pedia paz e os hippies planejavam trocar a loucura
das cidades
pelo sossego do campo. 1968 foi um ano complicado demais.
É nesse cenário complicado que o estudante de intercâmbio norte-americano
Matthew (Michael Pitt) conhece a francesa Isabelle (Eva Green).
Eles já se conheciam de vista, das sessões de filmes de arte
na Cinemateca. Isabelle está protestando contra a demissão
de Langlois, acorrentada na porta da Cinemateca. O jovem fica
impressionado com a
garota,
e ela aproveita a oportunidade e fisga o rapaz. Minutos depois
é a vez de Theo (Louis Garrel) entrar em cena. Ele é irmão
de Isabelle, também cinéfilo e também com pinta de revolucionário.
O trio se torna amigo. Logo, Matthew deixa a pensão em que
vive para ir passar alguns dias na casa dos irmãos. Aqui,
começamos
um outro filme. O amor (ou o sexo, ou o tesão juvenil, ou do
que você quiser chamar isso) cega os jovens para o mundo externo.
Sozinhos em uma casa, o trio experimenta os prazeres da carne,
com direito a (belas) cenas de sexo quase explicito, jogos
de sedução e muito, mas muito charme. E bebidas. E incesto.
E perversão.
E rock. Melhor respirar fundo.
Bertolucci espalha espelhos pela casa. O espectador admira os
jovens corpos de todos os ângulos possíveis. Enquanto lá fora,
o mundo parecia que iria explodir, entre quatro paredes os garotos
se divertiam brincando de adivinhar em qual cena clássica um
homem é crucificado em uma cruz de sombras ou qual filme em
que o homem do andar de cima dança tanto que enlouquece a garota
do andar de baixo. As citações são muitas e vão desesperar jovens
cinéfilos, que acham que conhecem tudo de cinema, mas esquecem
que filmes clássicos não são tão fáceis de serem encontrados
em qualquer locadora. Porém, as brincadeiras são um disfarce
para a inocência de seus protagonistas, perdidos entre a falta
de coragem de lutar (mimados que são, até a luta soa como um
motivo para se tentar ser cool) e o mundo de possibilidades
que começa a cair como gotas de chuva.
Os Sonhadores se divide entre o prazer e a política,
entre o individuo e a sociedade, entre o barulho das ruas e
o silêncio dos quartos, sobretudo entre a inocência juvenil
e a passagem para a vida adulta. Revolução política se mistura
e se confunde com revolução sexual. Mais do que qualquer coisa,
Os Sonhadores é um retrato antigo de um tempo que se
foi para nunca mais voltar. Bertolucci cultua a beleza da juventude
(quem não cultua?) enquanto se permite soar nostálgico em um
mundo que parece ter perdido o apreço por si próprio. É triste
perceber que as guerras continuam enquanto o individual se sobressai
ao social. Quem hoje em dia olha alguém nos olhos? Quantas
revoluções são tramadas em mesas de bar e se perdem em meio
a ressaca do dia seguinte? Quem irá ser o próximo líder revolucionário?
E quanto estará custando a camiseta com o rosto dele em uma
loja de grife, tempos depois?
Não é nada fácil descrever Os Sonhadores. Por mais que
se escreva, por mais que se faça revisões, análises
e passeios pela memória, parece que não basta. Retrato
antigo de um período que passou, Os Sonhadores é um sonho
quase perfeito de adolescentes que transporta o espectador para
uma outra época, em um tempo distante, quase perdido. É
a Paris de 1968 vista de dentro de um quarto - com as janelas
fechadas e o som ligado - através dos olhos, pés,
seios, coxas, membros e bocas de três jovens belos e inocentes
que consomem mais vinho do que água. É um filme tremendamente
estiloso, nostálgico e sensual. Uma frase de um personagem ecoa
na cabeça: "Toda petição é um poema, todo poema é uma petição".
Isso era 1968. Em 2004, poderíamos dizer: "Toda petição é uma
folha de cheque, toda folha de cheque é uma petição". Mudou
o mundo ou mudamos nós?
Site
oficial do filme
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