Crítica: “The King is Dead”, Decemberists

por Marcelo Costa

O Decemberists começou 2011 surpreendendo. “The King is Dead”, seu sexto álbum, caiu na internet em dezembro do ano passado e mesmo assim, quando foi lançado em janeiro, vendeu impressionantes 94 mil cópias em uma semana colocando o grupo de Portland, Oregon, no topo da parada da Billboard (o disco ganhou só agora, em julho, edição nacional limitada via Livraria Cultura), feito que nomes incensados no cenário independente como Vampire Weekend e Arcade Fire também conseguiram alcançar recentemente, com uma diferença: seus álbuns (“Contra” e “The Suburbs”, respectivamente) eram sequencias naturais na carreira dos dois grupos enquanto “The King is Dead” é um rompimento com “The Hazards of Love”, o difícil e bonito álbum imediatamente anterior, uma ópera rock – dividida em várias partes – que mais confundiu do que seduziu.

“Todo mundo saiu da toca para falar como ‘The Hazards of Love’ soava exagerado”, analisou Colin Meloy em uma entrevista ao site Pitchfork pós-lançamento de “The King is Dead”. E fez uma belíssima analogia: “’The Hazards of Love’ parece uma namorada que você apresenta para a família, e todo mundo diz que gosta dela, mas quando vocês terminam, eles comentam: ‘Eu a odiava’ ou ‘Você é muito melhor sem ela’”. Bastou o disco transformar-se em patinho feio na discografia da banda para que Colin Meloy o colocasse na estante como preferido, um método clássico de defesa artística paternal que serve para que alguns ainda desbravem o território desafiador do disco anterior.

Se seu quinto filho é visto como rebelde, Colin Meloy não precisa se preocupar nem um pouco com o sexto. “The King is Dead” (homenagem atravessada ao melhor disco dos Smiths, “The Queen is Dead”, de 1986 – Colin Meloy não confirma, e não desmente) foi gravado em um celeiro de uma fazenda nas redondezas de Portland, e soa lindamente simples. Colin agarra-se às raízes da música tradicional buscando soar atemporal. É como se o compositor olhasse para toda a história da música norte-americana e dissesse: vou fazer a minha versão. O público aprovou de imediato o álbum, as vendas se aqueceram e dezenas de shows ficaram sold-out na turnê que se seguiu ao lançamento do disco – com shows que mantinham o padrão Decemberists de esquisitice: em Columbus, Ohio, por exemplo, a banda abriu a noite com a rara suíte “The Tain”, uma canção de 18 minutos (lançada como EP pelo selo Kill Rock Stars).

Ainda que “The King is Dead” seja um objeto de rara beleza, não deixa de ser estranho encontrá-lo no topo das paradas de sucessos. É verdade que o público norte-americano ama o folk e o country, mas o que o folk e o country de Colin Meloy têm a dizer às massas? O que fez quase 100 mil pessoas abrir a carteira e pagar por um disco como “The King is Dead”? Uma aposta: as influências. Quando era adolescente, Colin Meloy ganhou de seu tio, que estava na faculdade, uma fita cassete com canções de uma banda local. Como sobrou um espaço no lado b da fita, o tio gravou cinco canções de bandas indies em sequência e essas canções mudaram a vida de Colin Meloy apresentando-lhe um mundo repleto de possibilidades: “Superman”, do R.E.M., “I Will Dare”, do Replacements, “Hardly Getting Over It”, do Husker Dü, uma do Guadalcanal Diary (banda de Athens, terra do R.E.M.) e “The Queen Is Dead”, dos Smiths. Boa parte dessas cinco canções ecoam de alguma forma em “The King is Dead” – sendo o R.E.M. a influencia mais evidente.

“No começo das gravações percebemos que havia duas músicas que pareciam muito R.E.M. e sentimos que devíamos apenas admitir que estávamos usando ideias deles convidando Peter Buck para tocar”, explicou a multi-instrumentista Jenny Conlee em entrevista ao site The Line of Best Fit. Poucas vezes na história da música você verá uma banda assumindo deliberadamente uma influência, dizendo que se sentiu copiando algo de outra banda, e a maneira como Decemberists lida com a situação apenas traduz algo que está no âmago de qualquer compositor, mas que muitos relutam profundamente em admitir: as bandas e/ou artistas que ele ama exercem uma influencia natural sobre o que ele compõe. É algo tão enraizado na alma quanto o modo dos pais criarem os filhos e os traumas de infância que definem personalidades. Ele (eu e você) é fruto de tudo que ele viveu, aprendeu e sentiu dos primeiros anos de vida até a adolescência.

Peter Buck toca em três das dez canções de “The King is Dead”. A primeira delas, “Don’t Carry It All” abre o disco com Colin Meloy entregando a nova fase logo na primeira frase da canção: “Aqui chegamos a uma mudança de estação” – a voz é precedida por uma nota grave de harmônica que transporta o Decemberists que pagava tributo ao folk europeu nos últimos discos de volta aos Estados Unidos do início do século 20, com imigrantes irlandeses transformando a América em sua nova casa. O arranjo de “Don’t Carry It All” ainda traz (além de guitarra, baixo e bateria) acordeom, violino, bouzouki (uma viola greco irlandesa), os backing fortes de Gillian Welch e Dave Rawlings além, claro, do bandolim de Peter Buck, que surge em um break emocionante no meio da canção remetendo diretamente ao trecho final de “Losing My Religion” (e as duas canções não poderiam ser mais diferentes – em clima e temática).

“Calamity Song”, a segunda música de “The King is Dead”, é a provável melhor canção que o R.E.M. não fez em seus três primeiros álbuns. Após Colin Meloy dar o start da música no violão e começar a cantar o sonho que teve sobre o final dos tempos, ali pelos 40 segundos, Peter Buck dispara um riff tão cristalino na guitarra que imediatamente remete a resenha do álbum “Reckoning”, na NME, em 1983: “No céu, anjos não estão mais tocando harpas, mas rickenbakers. E estão tocando canções do R.E.M.”. Inspirado pelo livro “Infinite Jest”, de David Foster Wallace, Colin Meloy narra a história de um casal em um cenário de catástrofe em que a Califórnia é partida pela famosa Falha de Santo André, a Andaluzia se mistura com o Nebraska, um menino panamenho é encontrado ao lado de uma imperatriz viúva e o personagem avisa: “Na estrada, é aconselhável que você siga o seu próprio caminho”. De preferência mastigando Ambien (um forte sedativo que tem características hipnóticas e é usado no combate à insônia).

A força do vocal de Colin Meloy surge rasgando a poeira em “Rise To Me”, quase um libelo musical-nacionalista em que o líder do Decemberists canta com toda força que tem nos pulmões que irá defender sua terra. A guitarra steel conduzida por Chris Funk transporta o ouvinte para o meio dos anos 70, e a imagem de Gram Parsons sendo carregado pelos amigos para ser enterrado no deserto se cristaliza. A veia folk aberta pela canção anterior tem sequencia com “Rox In The Box” – em que o acordeom de Jenny Conlee pede passagem no refrão enquanto Chris Funk cria a melodia da canção no bouzouki – e com a delicadeza (econômica no arranjo, lírica até não poder mais) de “January Hymn”, em que o personagem da letra tenta lembrar “quais foram as palavras que eu quis dizer antes dela partir?” para citar Beatles (“Talvez eu deva ‘Let It Be’ e talvez tudo volte para mim”) na canção que, metaforicamente, fecha o lado A do vinil “The King is Dead”.

Para abrir o lado B, a primeira canção do álbum a ser liberada para download gratuito ainda em novembro de 2010: “Down By The Water”, a terceira do disco com participação de Peter Buck, uma música forte e densa em que o (belíssimo) backing de Gillian Welch reforça a tensão na voz de Colin Meloy (amparada pela melancolia da harmônica, que chora na introdução de cada estrofe, e remete a algo de Neil Young – talvez “Heart of Gold”, outra grande influência do álbum). Após a tempestade de “Down By The Water”, o clima de “The King is Dead” retorna para um saloon do velho oeste com “All Arise!”, que traz Chris Funk no banjo e Annalisa Tornfelt no fiddle (o tradicional violino com sotaque irlandês) sob uma letra que avisa logo no começo: “Baby quer uma nova rodada, baby quer um coração partido” para terminar implorando repetidamente: “Basta ser minha esta noite”.

“June Hymn” é uma irmã ainda mais bonita de “January Hymn”. Jenny Conlee divide-se entre o acordeom, o piano e o wurlitzer enquanto Colin Meloy sola na gaita e dedilha seu violão para cantar (acompanhado de Gillian Welch – a nova deusa do country norte-americano participa de sete canções de “The King is Dead”) uma canção que declara seu amor à chegada do verão em Springville Hill, que provavelmente fica em Beaverton (perto de Portland), mas poderia ser em Cleveland (que também tem uma Springville Hill. Cleveland foi fundada em 1796 perto da foz do Rio Cuyahoga – não à toa, em uma das primeiras apresentações ao vivo neste ano, na rádio KCRW, o Decemberists fez uma cover de “Cuyahoga”, a canção do R.E.M.), pois pode ser estendida à chegada do verão em qualquer cidade. Um exemplo: “Ouvir essa música me coloca em um humor tão bom. Eu sei que os Decemberists são yankees de algum lugar do norte, lá em cima, onde não antes de junho os brotos nascem e o inverno se vai de uma forma tímida. Aqui no sul, no entanto, é em março e abril que tudo acontece”, escreveu a escritora Cathy Wood, colunista de jornais no Alabama, Mississippi e Tennessee.

“The King is Dead” está chegando ao fim e “This Is Why We Fight”, segundo single do álbum, mantém a característica densa de “Down By The Water” (interessante a opção da banda em liberar como single as duas canções mais “difíceis” do álbum). Colin Meloy convoca a guerra, a avareza, o inferno e o fedor dos ossos para justificar: “É por isso que nós lutamos. É por isso que ficamos acordados”. Mas não sozinho. No decorrer da letra, o personagem encontra sua noiva, e termina “This Is Why We Fight” pedindo para que ela o enlace “em direção ao inferno”. Para a última canção, uma balada triste em que o personagem da letra observa “Dear Avery” sozinho, acenando, morto na videira e termina clamando para que ele volte para casa. E é isso. “The King is Dead” reúne 10 canções em 40 minutos de música e ganhou edições especiais (à venda no site oficial), a mais luxuosa contendo CD, vinil branco de 180 gramas, DVD com um documentário de 30 minutos sobre as gravações, um livro de 72 páginas com ilustrações de Carson Ellis (muher de Colin Meloy) e fotografias de Autumn de Wilde.

Para fugir do folk britânico que havia assombrado seus últimos discos, Colin Meloy decidiu fazer um disco de alt-country extremamente tradicionalista, mas não cedeu um milímetro que fosse à tendência country norte-americana de usar o desleixo como artifício para validar uma possível situação de naturalidade. A produção de “The King is Dead” é delicada, mas não abre espaço para o descuido. Tudo está onde deveria estar – com perfeição. Em “The King is Dead”, o Decemberists paga tributo a Neil Young, Byrds, Bruce Springsteen, Wilco e, principalmente, R.E.M. com um disco reverente, e ao mesmo tempo pessoal. Colin Meloy consegue caminhar com segurança na linha que separa a homenagem da cópia. Em um mundo onde o novo praticamente não existe (e, segundo o grande jornalista Simon Reynolds, no qual vivemos um período de retromania, em que o passado ameaça a criatividade do futuro), o Decemberists pega tudo aquilo que o influenciou desejando transformar esse conhecimento em algo atual (com tudo que a tecnologia permite). O resultado é um daqueles grandes discos atemporais que poderiam ter sido gravados em qualquer época, mas que para sorte de alguns ganhou às lojas em janeiro de 2011 (e os computadores em dezembro de 2010). Ou seja, se você ainda não ouviu, ainda dá tempo. Mesmo porque o Decemberists, no auge de seu sucesso, anunciou férias. Sabe-se lá o que virá pela frente…

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne

Leia também:
– The Decemberists ao vivo em Columbus, Ohio, 2011, por Marcelo Costa (aqui)
– “Always The Bridesmaid, Single Series”, The Decemberists, por Marcelo Costa (aqui)
– “The Crane Wife”, The Decemberistis, por Marcelo Costa (aqui)
– Entrevista com Jenny Conlee para o The Line of Best Fit, por Erik Thompson (aqui)
– Entrevista com Colin Meloy para o AV Club, por Amanda Petrusich (aqui)
– Entrevista com Colin Meloy para o Pitchfork, por Larry Fitzmaurice (aqui)
– How Decemberists’ Lovely Song Makes Me Think of Alabama in April, por Cathy Wood (aqui)

21 thoughts on “Crítica: “The King is Dead”, Decemberists

  1. “Calamity Song”, a segunda música de “The King is Dead”, é a provável melhor canção que o R.E.M. não fez em seus três primeiros álbuns”. Menos, marcelão, menos…evite a tentação desses clichês que vc não precisa disso, desses pequenos escorregões…abs.

  2. Bacana o texto Marcelo, parabéns. Não concordo tanto assim quanto a qualidade do disco, acho muito bom, mas nem arranha outros discos da banda, como o Picaresque ou o Castaways and Cutouts. Tenho a impressão de ser um disco meio preguiçoso, falta coragem pra arriscar, tudo é muito certinho. Gostava mais dos primeiros discos, mais ousados, teatrais e tal.

    Mas o texto tá dez. Abraços.

  3. A banda do ano é o R.E.M., que lançou o discaço “Collapse Into Now” e ainda encontrou tempo para lançar outro, “The King is Dead”, sob o pseudônimo The Decemberists. Bom esse projeto paralelo do Peter Buck, hein?

  4. Muito bom o texto, cara. É um disco bem bonito mesmo, um dos que mais ouvi dos lançados este ano.

    Aguardo agora a sua resenha de ‘Collapse into now’, que está em segundo e já encabeçou sua lista de disco internacional gringo do ano até agora.

    Abs

  5. Belo texto sobre o disco do ano até o momento. E que só cresce a cada audição.
    E demorou pra escrever, hein Mac. Lembro de você ter twitado que iria escrever sobre ele há uns 2 meses atrás, rsrs.

  6. haha Concordo com o Gustavo, essa demorou!

    Belo texto e belo disco. Escutei meses sem parar, agora escuto menos… mas June Hymn ainda é a melhor forma de acordar!
    Mas o vinil rola as vezes por aqui e é smp mt bom, grande disco.

  7. Tava vendo esses videos e achei muito lindo as musicas,as interpretações,a sonoridade,as letras,enfim,tudo.Grande banda essa,mesmo tendo só alguns discos,mas esse está marcando.Já tinha ouvido The Crane Wife(o primeiro pela Capitol),e lido através do site do Alto-Falante sobre esse disco,que é um conceitual sobre um conto japonês,que fala sobre um jovem humilde e trabalhador.Só por isso valeu o disco,mas ele era muito bom,e ainda é.Não ouvi The Hazards of Love porque achei que opera-rock ia me cansar muito,fora que estava ouvindo outros discos na época.Agora estou voltando a eles.Muito bom esse disco,e agora que saiu no brasil vou providenciar.

    Tenho duas indagações:

    1)Só eu achei que Calamity Song é igualzinha na introdução a Talk About the Passion,do REM?Até no youtube,na busca as musicas aparecem ao mesmo tempo.

    2)Colin Meloy e Ben Gibbard,do Death Cab for Cutie são gêmeos?

    3)Sobre o conto:http://programaaltofalante.uol.com.br/Balaio/Exibe/113/ENTREVISTA_-_THE_DECEMBERISTS/

  8. Nosso, realmente essa música Calamity é mto boa e parece muito REM, dá pra visualizar o Stipe cantando tranquilamente.

  9. Bem…
    Em verdade, vos digo:
    Decemberists é uma ótima banda.
    The King Is Dead é o melhor disco deles. Melhor que The Hazards Of Love.
    The Hazards Of Love é íncrível. Obra-prima. The King Is Dead, idem, com adendos que nem cabem a mim. É superior.
    O disco do R.E. M. é, de fato, superior. Seria o disco do ano se não fosse por um porém.
    O porém atende pelo nome de Adele.
    Adele21 é o melhor disco do ano. Aliás, o melhor disco em muitos anos.
    Está no nível do primeiro de Joan Armatrading. Do primeiro de Tracy Chapman. De Ingénue, de kd lang. Ouso dizer que está no nível de Dusty In Menphis, de Dusty Spriengfield.

    Adele19 é uma obra de arte. Adele21 é uma obra-prima.

    É o que acho.

    Abraço a todos. Valeu, Mac.

  10. Marcelo, grande texto e excelente disco, com certeza o melhor de todos Decemberists até agora. Nunca pensei que leria algo, mesmo uma citação ao grande Guadalcanal Diary.
    Não tenho a ficha técnica em mãos Marcelo mas até onde sei os vocais de Gillian são apenas em Down by The Water e diria que nem precisava mais, que voz e tipo, ela não é a nova musa do country pq ela já era parceira de Gram Parsons mil anos atrás.

    Aos fãs estúpidos de REM, leiam o texto novamente que ele exprime muito bem as influencias do Decemberists e as semelhenças deste disco com REM. Ninguém quer copiar ninguém ou ser o novo REM ou pelo menos, não Colin Meloy.

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