entrevista por Bruno Capelas
Para um artista iniciante, lançar um primeiro disco pode ser um trabalho hercúleo, tentando aprender a lidar com estúdios, seleção de repertório, produção e uma série de processos burocráticos no meio do caminho. Que dizer, então, de uma cantora novata que decidiu, de uma vez só, lançar dois discos no mesmo ano – um solo e outro com um grupo vocal? Essa é uma forma de resumir o 2023 de Loreta Colucci, uma das principais revelações da cena paulistana no ano passado, tanto pelo disco “Antes Que Eu Caia”, que saiu em setembro com produção esmerada de Maria Beraldo, quanto pela composição de vozes do Gole Seco, cujo álbum homônimo chegou às plataformas de streaming em outubro.
Ambos financiados pelo edital do Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo (ProAC) e indicados entre os 50 melhores discos do ano pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), os discos não são, contudo, um trabalho relâmpago. Pelo contrário: são o resultado de um longo processo de gestação da artista, que compõe desde a adolescência e se formou em canto popular em 2018 pela Faculdade Santa Marcelina. “Eu sempre tive essa certeza de que queria gravar esse disco e… sempre fiquei pensando ‘não é a hora, não estou pronta, não sei o que eu quero’. Essa vontade começou com 15 anos, quando comecei a compor e fazer aula de canto. Hoje tenho 27”, diz Loreta, em entrevista ao Scream & Yell.
Feita no final de dezembro de 2023, acompanhada de café coado e bolo de chocolate na casa da artista, a entrevista passa não só pela concepção artística dos discos, mas também busca rastrear como nasce uma artista. “Não sei o que rolou na primeira infância que me fez gostar de cantar. Tenho fortes memórias de momentos em que recebia feedback positivo dos meus pais quando era performática, tipo ficar fazendo dancinha pra entrada de novela. E esse feedback positivo pode ter me alimentado nessa questão performática”, comenta Loreta, em uma conversa fluida que por vezes pode parecer saída de uma sessão de terapia.
Se essa for a primeira impressão de quem lê, não estará totalmente errada: talvez seja a marca de uma cantora-compositora que não se importa em abrir as emoções à flor da pele, ao mesmo tempo em que busca preservar algo da sua privacidade no meio da criação. É algo que fica claro para quem escuta canções como “Pó” (a primeira escrita por Loreta, aos 18 anos, nos escombros de um relacionamento abusivo) ou “Bom Dia, Mãe”, que perpassa a relação da artista com seus pais em questões como política e sexualidade. “É fazer essa quebra: não vou ser perfeita para eles, eles não vão ser perfeitos para mim e ‘é nóis’. É saber que vou decepcioná-los e eles vão me decepcionar”, explica.
Na entrevista, Loreta conta mais sobre o processo de construção dos dois discos, fala sobre as influências que nortearam seu trabalho e como foi o convite para colaborar com Maria Beraldo. Ela também divaga sobre o seu momento de carreira, projeta um 2024 de shows para conhecer de perto seu público e discute a baixa popularidade de grupos vocais e o status quo do mercado independente. “Antes do último show, eu estava passando roupa e pensando: ‘cara, vou pagar do meu bolso pra fazer esse show’. É um papo romântico, mas é verdade: não quero fazer outra coisa, enquanto conseguir comer e viver. Mas hoje, é um investimento, não é pelo dinheiro, nem fodendo. E todo mundo que eu vejo que é grande tem que trabalhar com outras coisas, não só fazer show”, desabafa a artista, entre um gole de café e outro. Sirva-se de uma boa caneca, leitor, e mergulhe nessa conversa.
Vamos começar pelo “Antes Que Eu Caia”. De onde vem esse primeiro disco?
Ele vem de muito tempo, na verdade.
Como é comum para o primeiro disco de um artista.
É? Isso é comum? Sempre saber que queria gravar?
Não sei, mas normalmente o primeiro disco junta as músicas que as pessoas escreveram durante a vida inteira até ali…
Ah, sim! Mas eu sempre tive essa certeza de que queria gravar esse disco e… sempre fiquei pensando “não é a hora, não estou pronta, não sei o que eu quero”. Essa vontade começou com 15 anos, quando comecei a compor e fazer aula de canto. Hoje tenho 27. Mas foi uma vontade que foi seguindo durante a faculdade. Fiz Canto Popular na Santa Marcelina e me formei em 2018. Na faculdade, pude fazer um recital de formatura e aproveitei pra esboçar o que seria esse projeto autoral, com as minhas músicas. O recital acabou sendo o embrião de dois projetos: o meu, desse disco, “Antes Que Eu Caia”, e o Gole Seco, que é um quarteto vocal. Inicialmente, o projeto chamava Loreta Colucci e o Gole Seco, comigo, duas cantoras e um sax-barítono. Depois, o sax saiu e foi substituído pelo clarone da Joana Queiroz, do Quartabê – o que já faz um link com a Maria [Beraldo]. Depois do recital, a gente continuou esse projeto em 2019 e 2020, estava tudo indo bem, nosso plano era rodar bastante em 2020 para amadurecer o som, e aí gravar um disco. Mas veio a pandemia, a Joana foi viajar e me afastei desse som. Falei com as meninas e decidimos transformar o projeto em outra coisa, que acabou se tornando o Gole Seco. No meio disso tudo, fiquei sem saber o que fazer comigo. Eu já tinha as músicas, mas estava num buracão imenso de sonoridade. Sempre cantei muito samba, sempre cantei muito forró, já cantei muita música latina com o Mano Única, mas tenho também essa pesquisa da música autoral que tende a cair para uma sonoridade um pouquinho mais experimental, assim… E aí eu falei: que porra vai ser “eu”? Nesse caldeirão de um zilhão de dúvidas, percebi que precisava de alguém que eu confiasse para me tirar do buraco.
É aí que você chega na Maria Beraldo para produzir o disco?
Num primeiro momento, chamei a Mariá Portugal, mas quando me liberei de todo mundo, ela tinha ido para a Alemanha. Pensei no Kiko Dinucci, mas ele não podia. E aí um cara que eu namorava na época perguntou: “e a Maria Beraldo?”. Eu: “mas ela não produz não. Ele: “Produz sim, porra!”. E eu sou muito fã da Quartabê, sou muito fã do disco dela.
O disco dela é foda.
Ouvi pra caralho o “Cavala”, passei muito tempo ouvindo Quartabê, a Maria é uma super referência. Quando a Joana foi tocar comigo, já fiquei muito entusiasmada. E com a Maria foi a mesma coisa: nós tínhamos uns papinhos de Instagram, eu tinha algum tipo de abertura e fui lá sondar ela, ali entre o final de 2020 e o começo de 2021. Ela me falou um valor, eu agradeci e segui. Depois ela abriu o valor camarada, porque eu era uma cantora independente. Aí a gente chegou num valor OK e decidimos produzir a primeira música, que foi “Pó”, para ver o que acontecia. Foi mais ou menos na mesma época que eu estava me inscrevendo pela primeira vez no edital do ProAC (Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo).
Você precisava ter uma música pronta para inscrever o projeto?
Não. Só precisava mostrar como eu cantava. Eu podia mandar uma demo de voz e violão, mas tinha que explicar que se ganhasse o projeto, teria verba para pagar produtora e fazer um arranjo. Nem faria sentido ter que mandar uma música pronta: é impossível ter R$ 5 mil para pagar alguém para produzir uma música e aí tentar o ProAC. Mas eu tinha decidido que ia investir uma grana com a Maria antes mesmo do edital, independentemente de conseguir ter ela produzindo o disco todo, porque eu precisava sair do buraco estético que estava. Sabia que ela ia conseguir me dar uns bons tapas na cara, conseguir me dar um norte. Não passei no ProAC, fizemos a primeira música num processo lento, de pensar na gravação… e acabou que chegamos na época de escrita do segundo ProAC, de 2022 para 2023. Passamos e aí fomos pras cabeças para terminar mais sete músicas. Mas eu estava buscando uma sonoridade. O que eu tinha certeza é que queria que a parada nascesse de uma formação improvável, como era a primeira formação do Gole Seco. É um desafio, mas o que vinha a partir dali tendia a ser muito interessante – às vezes bom, às vezes uma bosta, mas sempre longe do lugar comum, o que tende a me interessar. Pensei em naipe de sopros e voz, ou bateria-baixo-sopro-voz, umas coisas assim. Como as minhas principais referências eram a Silvia Perez Cruz, e o disco dela “Vestida de Nit” (2018), a Natalia Lafourcade e a Silvana Estrada, pensando nas cantoras hispanohablantes, a Maria falou pra gente fazer com um quarteto de cordas. Eu perguntei: “mas você escreve pra quarteto de cordas?” Não lembro o que ela disse, mas a resposta era “não” no final das contas – ela estava fazendo aula de orquestração na EMESP (Escola de Música do Estado de São Paulo). Deu muito mais trabalho para ela escrever tudo, mas também foi interessante porque ela foi aprendendo e aplicando tudo ao mesmo tempo. Os arranjos foram todos “canetados”: não tinha tempo de ensaiar, testar, tentar, então a Maria fazia tudo em programação de MIDI. E eu odeio ouvir arranjo de MIDI, descobri isso nesse processo.
Que é basicamente ficar ouvindo som eletrônico…
É pi-pi-pi, ti-ti-ti… é muito ruim, véi. O que vai definir se um arranjo é bom envolve um zilhão de coisas, inclusive timbre, dinâmica, respiração, a organicidade da parada. É difícil ouvir uma parada quadrada e pensar se funciona. Foi um processo muito de confiar na Maria. E além das cantoras hispanohablantes e os quartetos de cordas, a sonoridade tinha ainda dois pilares específicos: o estilo de composição do Dominguinhos, na simplicidade, no sentido mais encantador da palavra; e as vozes da Elza [Soares] e da Alcione no início de carreira. Eu sabia que a cabeça da Maria ia ser ideal para dar um diálogo massa entre o lugar do tradicional – forró, samba, pagode –, ao lado dessa textura das cantoras hispanohablantes com uma pegada mais moderna, que dialoga com o experimental.
Quando ouvi o “Antes Que Eu Caia”, o que me chamou a atenção é que ele é um disco de cantora, mas que não parece um disco de cantora de música brasileira.
O que é um disco de cantora?
É um rótulo que eu estou inventando aqui, mas… disco de cantora, nos últimos 15 anos, tem um pouco de canção popular, um pouco de samba, um pouco de canções regionais… e a voz está sempre em primeiro lugar, mas os arranjos são muito convencionais, bem quadradões. Não consigo citar nomes agora, mas dá pra entender o conceito: a voz é tão exuberante que até se parece que dá pra esquecer do resto.
É engraçado que você falou isso, e entendo o que você quer dizer, mas estou só pensando nas pessoas que eu ouço, em quem está ao meu redor… e só penso em gente que tem sonoridade muito foda, como a Ava Rocha, a Jadsa, a Luiza Lian…
(interrompe) Mas esses discos são experimentais!
Acho que você está olhando mais para um recorte de brasilidades…
Isso. Tem muita cantora que olha para brasilidade e fica ali sem ousar, sendo que talvez a graça da música brasileira é que ela sempre foi ousada.
Sim… pra caralho. Sabe quem é foda nisso? A Anná. Ela é uma safada, sou muito amiga dela, mas eu primeiro fui fã. Fã é uma palavra ruim, você acha que a gente consegue outra?
Admiradora? Ouvinte?
Admiradora é bom. Odeio “fã”. Mas voltando para o que você comentou, lembro que falei para a Maria: quero que as cordas tenham um protagonismo tanto quanto a minha voz. Isso foi conversado – e que bom que aparece no disco. Tenho essa impressão: gosto do que fiz cantando e gosto das composições, mas acho que se a gente for analisar potências, o disco tem potências completamente equilibradas. São arranjos legais com um trabalho de voz. Não queria cair nisso que você comentou de “deixa comigo, faz um arranjo legal aí e eu seguro no gogó”.
Vou voltar lá atrás… você disse que o disco nasce quando você tinha 15 anos e começa a fazer aula de canto, começa a compor. O que te leva a querer compor e fazer aula de canto, lá atrás, ainda adolescente?
Lá atrás? Nossa Senhora… eu cantava nas festas de família, com os primos, a brincadeira era sempre cantar e imitar as cantoras. Não sei o que rolou na primeira infância que me fez gostar de cantar.
Ô Freud…
(risos) Não cheguei nessa etapa na terapia ainda, mas… (pensa). É claro que se for para cavocar isso, tenho fortes memórias de momentos em que recebia feedback positivo dos meus pais quando era performática, tipo ficar fazendo dancinha pra entrada de novela. E esse feedback positivo pode ter me alimentado nessa questão performática. Ao mesmo tempo, fui uma criança muito tímida e tinha muita dificuldade de ficar longe da minha mãe, então ela me colocou no teatro. Daí, já começa o trabalho de voz e expressão, de identidade, querendo ou não. Mas nessas brincadeiras de cantar, duas amigas minhas foram gravar um vídeo pro YouTube cantando “Rolling in the Deep”, da Adele, e elas me puxaram para cantar junto. Ao assistir, minha mãe e meu pai se surpreenderam: “nossa, mas você canta bem!”. E aí comecei a fazer aula de canto, fiz um ano de canto erudito primeiro, junto com violão. Depois, tive que escolher entre violão e canto porque não dava para pagar os dois, aí resolvi fazer só canto. Mas eu queria cantar Maria Gadú e Legião e na minha escola só queriam saber de rock. Foi nessa época que comecei a compor, que é um processo de me compreender. Quando eu componho, acontece muito de eu ficar por um tempo digerindo uma parada, um assunto, uma pessoa, até que uma hora isso sai como música. Depois, continuo digerindo isso, mas agora no espaço-som-tempo. E quando a música está pronta, tem outro passo, que é eu ficar reouvindo essa música, sendo a terceira pessoa da minha mente, me ajudando a superar aquela porra. Entendeu?
É terapêutico.
É terapêutico pra caralho. É muito importante ouvir o que você fala, inclusive em questão de estudo, saber o que você achou… mas eu vi o quanto isso me fazia bem. Por um tempo, achei que era uma parada de ego, de gostar de me ouvir cantar. Eu gosto, mas é diferente: é importante para mim ouvir o que eu tinha dito e me lembrar daquelas coisas, conseguir passar por aquele assunto, ressignificar e seguir adiante.
E tem música dessa época, desse começo, no disco?
A mais antiga eu fiz quando eu tinha 18 anos, que é “Pó”. Eu gravei com 26, passou oito anos. É mó tempo, velho…
E é um tempo bem importante.
Que bizarro, como as coisas demoram. E “Pó” foi exatamente esse processo… você quer saber isso?
Por favor! Você está matando várias perguntas da minha lista de uma vez.
(risos). Vamos lá: “Pó” é a história famosa da menininha que se relaciona com caras e tem um relacionamento abusivo. Num período ali entre os 17 e os 18 anos, eu vivi isso. E aí dos 18 para os 19, em algum momento eu estava pensando nessa relação que já tinha acabado e nos rastros que uma relação abusiva deixa. São rastros que permanecem durante muito tempo, especialmente quando a primeira relação que a gente tem é uma relação tóxica. Eu tinha saído dessa relação naquele pensamento clássico de achar que eu era uma bosta, que eu era um lixão, que tinha feito tudo errado, uma confusão absoluta. Pessoas que manipulam conseguem fazer você entrar num labirinto mental muito cruel. Mas ao mesmo tempo, comecei a fazer terapia nessa época, comecei a ouvir a palavra do feminismo…
E bate bem com o momento que o feminismo está batendo mais forte, bem na quarta onda…
Exatamente. Foi quando eu comecei a juntar as pecinhas do quebra-cabeça, fui pegando no tranco. Comecei a escrever justamente pelo primeiro verso: “antes que eu caia no lugar comum de te odiar, me farei pó”. Achei bom. Fez sentido essa frase para mim. Comecei essa frase no lugar de “não vou me envenenar com o ódio, com a raiva, vou sumir, vou me desfazer”. Mas foda-se essa reflexão.
Às vezes as frases aparecem sem reflexão.
E aí continuei escrevendo no computador, num brainstorm, e escrevi a letra inteira direto. (declama a letra).
Que engraçado escrever uma letra de música no teclado do computador.
É?
Do pouco que escrevi na vida, nunca consegui escrever poesia no teclado, tinha que ser na mão.
Entendo pra caralho, sempre me senti traindo a pureza da composição. Brainstorm no teclado? “Que fajutinha, hein!” Vem um pouco esse pensamento, mas depois de dois segundos você pensa: “foda-se, é o meu processo mais fácil”. Escrevo no papel, mas lembro que estava num lugar tão travado de autocrítica e queria me ajudar. Busquei o lugar onde eu escrevia mais rápido e sem pensar, e para isso o brainstorm no teclado funciona bem. Escrevi a letra inteira, resolvi ler, botei a melodia nesse rolê meio falado. Gostei da música, mas sempre fiquei olhando para ela e pensando no porquê eu tinha escrito aquilo. Se você olha assim, parece que é uma música falando de reconciliação com a pessoa. Se você quiser, posso lembrar a letra. (canta “Pó”, de maneira acelerada)
Que engraçado, não vejo isso. Vejo essa figura da dissolução do relacionamento, mas não vejo a reconciliação com relacionamento – e sim uma reconciliação consigo mesma.
Exatamente, mas demorei anos pra entender isso. Eu não me reconhecia nessa música. Mas, depois de muito conversar com as pessoas, pensar na terapia, me caiu essa ficha: eu estava falando da minha relação comigo, de ressignificar essa história para mim, de me perdoar ou não de ter vivido essa relação, de me perdoar por ter ficado um pouco mais nela e, depois, mais um pouquinho. Uma relação que durou um ano e meio, mas que foi difícil desde o início, na qual eu fui me agarrando em pequenezas de afeto. Compor uma música foi muito importante nesse processo terapêutico, e não com rapidez, sempre lentamente. Sou uma pessoa de processos bem lentos.
E como é o salto de compor uma música com 18, 19 anos e… resolver que você quer fazer uma faculdade de canto popular?
Mano, não tenho a menor ideia! Tenho uma coisa muito boa: os meus pais sempre me apoiaram muito a cantar, tanto que foram eles que me colocaram no teatro e na aula de canto. Mas eles são super de direita, tá? Eles não são esquerdinha…
Isso é publicável?
Pode falar que ele é de direita. A minha mãe é em cima do muro. Temos uma ótima relação, mas tem esse lugar muito comum no Brasil: da gente ter pensamentos muito diferentes de quem cuidou da gente e ter esse embate de relação. Muitas vezes, as relações têm que ser cortadas, porque esse embate fere muito. Questões políticas nos atravessam, querendo ou não. Mas também, às vezes, é possível optar por manter uma relação, o diálogo e o amor, contornando e inclusive confiando…
…(interrompe) “Bom Dia Mãe” é sobre isso? É sobre política?
É sobre isso. Na verdade, é sobre sexualidade. É muito mais que isso, na verdade! Tem esse recorte paterno, de matar o pai e a mãe… É fazer essa quebra: não vou ser perfeita para eles, eles não vão ser perfeitos para mim e “é nóis”. É saber que vou decepcioná-los e eles vão me decepcionar.
É uma das questões mais clássicas da “nossa” geração fazendo terapia.
Exatamente, estive na terapia por esse processo. E o “Bom Dia Mãe” virou um lugar… (pensa) Ser bissexual sempre foi uma questão muito suave para mim. Sempre foi muito tranquilo, mas na relação com eles foi completamente uma questão. Minha mãe acha que bissexualidade não existe. Já o meu pai? Nem sei o que ele acha. Nunca conversamos sobre isso, nunca tive coragem de falar com ele sobre isso.
Mas ele sabe?
Não sei se ele sabe.
Lendo a entrevista ele vai saber.
Já falei sobre isso na internet, mas é aquilo: não sei nem se meu pai tem Instagram. É a nuvem da dúvida mesmo. Então “Bom Dia, Mãe” passa por isso, mas é muito sobre uma parada que eu falei no show do Bona, de ser uma das músicas que a gente começa escrevendo para outra pessoa – e depois percebe que é para você mesmo. O que mais importa é a sua relação consigo mesmo. Vivi isso com “Pó” e vivi com “Bom Dia Mãe”. No final, essas músicas são para me acalmar na minha expectativa de alcançar o agrado deles, a aprovação.
Mas isso te joga na armadilha: de um lado você diz que é tranquilo lidar com a sua bissexualidade, mas do outro… você também está compondo a música para você. É um nó que você se deu.
Sim. É isso. Que no fim das contas… não é tão tranquilo assim para mim. É por eles? Não é por eles? Não sei, né.
Como diria Renato Russo, “mentir pra si mesmo é sempre a pior mentira”.
(risos) É. Acho que não tem uma resposta certa, mas ao mesmo tempo é um assunto que percorre muito da minha relação com eles, tem muitas coisas em aberto. Mas, na minha opinião, não é só isso, mas necessitar dessa aprovação deles é um sinal. Mesmo que eu fale que não importa, às vezes chego na hora de viver as coisas e já vem um freio de mão.
E é engraçado que você começa a entrevista falando que teve um feedback positivo dos seus pais para cantar.
Top! (risos) Mas… cara, é uma relação muito boa, eles me apoiam pra caralho, eles são meus maiores fãs, vão em todos os shows. E não tem uma relação de dinheiro também: não é que eles estão comigo porque eles me bancam, não tem isso. Eles não me bancam em nada, mas tem esse lugar de afeto muito forte. Mas por que estou falando disso? Do nada, Bruno, virou terapia?
Talvez. Mas volta para a faculdade: como é que você decide fazer uma faculdade de canto popular?
Não tenho a menor ideia. Cheguei a pensar em Psicologia ou Ciências Sociais, e não sei porque fui para a Música. Tenho essa dúvida sobre o que me deu tanta segurança de ir para a Música. É a minha maior certeza do mundo: quero continuar cantando e fazendo música, e nunca foi uma dúvida. Segui uma intuição e deu certo.
Como é um curso de canto popular? Como é diferente de uma aula de canto?
Você tem uma grade curricular, tem diversas aulas. Você tem uma aula semanal do seu instrumento – que no caso é a voz, no curso de canto popular. E você tem mais trocentas aulas: harmonia, percepção, aulas de outros instrumentos, prática de banda, análise musical. Tinha algumas coisas que iam para o lado de sociologia, mas era meio cruel, porque era uma faculdade de freiras, super enviesada… No geral, tem base teórica e prática, que vai bem além do que se dá numa aula de canto. Aulas de harmonia, por exemplo, eram feitas com os outros instrumentistas. Nós só nos separávamos individualmente na aula de instrumento. Mas na hora das aulas de outros assuntos, teoria musical, etc, a gente se encontrava na sala de aula para essas aulas.
E como fazer faculdade muda sua percepção de música?
Percepção de ouvir? Não acho que é a faculdade, mas acho que o que a faculdade me proporcionou ajuda e atrapalha. Para mim, foi maravilhoso conseguir focar só em música, ficar quatro anos falando só de música. Acho muito foda.
Não cansa?
Cansa, mas é bom. E a Santa Marcelina nem é das faculdades mais interessantes para isso, porque ela tem uma dinâmica meio escolinha de inglês, tem pouco convívio pros estudantes, o ambiente do prédio tem muitas regras de vestimenta e de silêncio. Por mais que fosse um lugar engessado, porém, poder pensar em música 24 horas foi muito da hora. Claro, eu era uma estudante que não precisava trabalhar para bancar a faculdade, é bom fazer esse recorte. E dá para fazer isso em outros cenários, como na EMESP, por exemplo. Eu fiz EMESP também. Você enfrenta, no ambiente da faculdade, a questão de analisar as coisas criticamente e ter opinião sobre elas, entender os efeitos que cada música tem, como isso é produzido, ou seja racionalizar e teorizar tudo. Depois, fora da faculdade, você tem que tirar as coisas da cabeça: não importa o porquê, o encadeamento, etc, pelo menos na minha forma que eu vejo a música. Busco trazer mais pra emoção, para a expressão, para o corpo, tento que a expressão venha antes de uma racionalização. Se eu cantar uma nota aguda com tal potência e tal estridência, não é só pra mostrar que eu estudei pra fazer isso. É para mostrar que aqui nesse momento estou falando de êxtase ou raiva. Em outro recorte, essa voz mais leve que estou usando com você pode ser perfeita para mostrar raiva. Não tem regra, mas tem que mostrar que a expressão vem antes. Mas isso não é uma ode à faculdade de jeito nenhum: conheço muita gente que se engessou real com a “facul”, de sair de lá querendo largar o instrumento, de professor que fala mal. Isso é bem comum no mundo das artes, gente que não entendeu nada e fica entristecendo quem quer aprender. É uma crítica bem antiga, batida, mas que ainda é válida. E é claro: existe um zilhão de pessoas que não fizeram faculdade e são surreais, pessoas que admiro muito. Indico faculdade pros meus alunos de canto, mas é um recorte bem pessoal.
No começo da entrevista, você contou que o Gole Seco era um projeto só teu com duas vozes e um clarone. Como esse projeto se transforma no que ele é hoje?
É… (pensa bastante). No começo, quando eu estava pensando na formação, eu queria fazer uma coisa com vozes e sopros. Queria conseguir ter mais controle sobre os arranjos. Fazer um arranjo de bateria é mais difícil para mim, porque não toco o instrumento. Por esse motivo, caí nesse lugar de trabalhar com vozes, porque sabia arranjar para voz. Passei a construir os arranjos com duas vozes e sopro. Na época eu namorava o João Barisbe, que toca no Grand Bazaar, é um super músico. Namoramos por três anos e eu comecei a experimentar coisas com ele. Ele era super disposto, curtia minhas coisas, e nessa primeira formação ele estava com o sax barítono, fazendo os arranjos comigo e com as meninas. As linhas de sax ele criava todas. A primeira formação veio desses desejos, dessa conveniência, dessa relação, mas era para ser meu recital de faculdade e eu me formar. Queria acabar tudo em quatro anos e não precisar mais pagar mensalidade. E o recital de formatura rolou e a gente se animou a continuar o projeto a partir disso. E aí… era essa a pergunta?
As duas cantoras que estavam nessa época são as cantoras que estão hoje?
Sim, a Nathalie Alvim e a Niwa. A Nat tem um EP que ela lançou na pandemia, e a Niwa acabou de lançar um disco fudido, “Araponga”.
Vocês já eram amigas na faculdade?
Da Claudia, que é a Niwa, eu já era mais próxima na faculdade, tínhamos feito sarau feminista juntas, mas não éramos amigas. Já com a Nathalie eu tinha quase nada de relação. Mas eu precisava de duas vozes: uma que tivesse notas médio-agudas e outra que tivesse notas graves – e a Nathalie, da faculdade, era a voz mais grave. Ela topou fazer, porque todo mundo sabe que fazer o recital de faculdade é um BO, mas todo mundo se ajuda, porque você precisa de mais gente pra complementar. Não é um esquema de grana, pelo contrário, é uma relação de troca muito bem resolvida. A gente começou a se aproximar. Saímos da faculdade, continuamos juntas, mas terminei a relação com o João e ele saiu do projeto. Comecei a buscar alguém e entrou a Jojo [Joana Clarone]. E aí veio a pandemia. Nesse lance da pandemia, a Joana mudou de cidade, casou e ficou difícil para ela continuar. Na sequência, abriu a seletiva para um festival de grupos vocais paulistanos, criado pelo Seis Canta, que é um sexteto vocal super incrível, para unir a cena de grupos vocais, que é bem capenga aqui em São Paulo.
É engraçado: grupo vocal é uma tradição da música brasileira, mas hoje é algo super esparso.
Super. E quando você pensa, tende a se ter um imaginário de grupo vocal fechado, às vezes, óbvio, careta.
Acho que muita gente remete à coral, que vai cantar as coisas óbvias de MPB.
Sim, que é uma coisa que não instiga muito, né? Conversando com as pessoas, parece que grupo vocal entrou num imaginário pouco instigante – o que é uma mentira absoluta. O que dá para fazer com a voz é super interessante, tem uma infinidade de caminhos. Mesmo que o repertório possa não ser o preferido, tem uma coisa muito impressionante ao assistir várias pessoas cantando uma parada ao mesmo tempo, tem uma coisa de dúvida e tudo fazer sentido do nada.
Percebo isso nos vídeos que o Gole Seco faz nas redes sociais, em que às vezes três cantam e uma dá um recado. Dá um choque na cabeça.
Exatamente: um grupo vocal ao vivo tem uma parada super encantadora, mas é algo pouco buscado, infelizmente. Mas bem: abriu esse festival, e no nosso repertório a gente tinha duas músicas que tinham apenas voz, sem sax. Inscrevemos as duas e passamos no festival. E aí para esse projeto, a gente já tinha chamado a quarta integrante, que é a Giu de Castro, mas meio num lugar de “vamos se juntar e fazer o festival acontecer”, botando uma pilha nisso. E nessa época o grupo ainda chamava Loreta Colucci e Gole Seco, tinha uma coisa de ser um projeto meio meu, com as minhas composições, era meio autocentrado. No festival, havia uma dinâmica de feedbacks com os membros do grupo, e eles perguntaram porque não tiramos o Loreta Colucci, deixando só Gole Seco. Foi um processo lento, mas achamos que fazia sentido. O festival em si foi super legal, a dinâmica ali, o nosso entrosamento… e saímos de lá querendo continuar o projeto. Isso foi no final de 2021, e aí a gente se inscreveu pro ProAC e passamos para fazer o disco.
De repente você tinha dois discos para fazer pro ProAC no mesmo ano?
No mesmo ano. Foi uma bênção e uma loucura absoluta, ao mesmo tempo, em questão de tempo.
Quando vi que você tinha lançado seu disco e tinha o do Gole Seco, achei estranho. Em termos de gestão de carreira, marketing… parecia muito estranho.
É claro que isso é ruim, e de fato é ruim.
Mas foi ruim mesmo?
Não sei se poderia ter sido melhor, mas é difícil falar que foi bom. É claro que rolou um quebra-quebra de bateção de datas. Todo mundo tinha o mesmo período para fazer o projeto, entre gravar, lançar e tudo mais. Conseguimos organizar para não lançar os dois discos na mesma semana, mas tive que entregar meu disco antes, tive que correr atrás. Se não fosse isso, poderia ter feito as coisas com mais calma, numa relação mais tranquila com toda a equipe. A divulgação também perde um pouco de peso: numa hora, você está ali falando do seu disco, e de repente, passa duas semanas, você aparece com outro disco. É muita coisa para falar, é tudo urgente, tudo para ontem, show de lançamento…
Tanto que você fez show no Bona e cinco dias depois estava lançando o disco do Gole Seco na Galeria Olido.
Pois é. Mas assim… acho que pode ter uma coisa boa nisso também, pensando em marketing, talvez. Pode existir uma força de chegar com dois projetos legais ao mesmo tempo, eles se retroalimentam nesse sentido. Alguém pode conhecer o Gole Seco e me conhecer, ou vice-versa, fazendo meu nome começando a ter um pouco mais de tamanho e isso ser junto com o Gole. Acho que é legal. E também são dois ProACs, não dá para reclamar disso.
Gole Seco era para ter sido o nome do seu disco. Como você decide por “Antes Que Eu Caia”?
Como você sabe?
Eu li em alguma entrevista. Pode parecer que não, mas jornalistas leem as entrevistas dos outros.
Aaaah! Mas era super para ser Gole Seco mesmo o nome do meu disco. Só que ao decidir que ia ser um quarteto vocal, a gente precisava de um nome. Na época, a única certeza que eu tinha é que o nome do meu disco ia ser “Gole Seco”, então levantei a mão pra sugerir que a gente tinha que pensar outro nome pro grupo. Separamos dois ensaios de três horas para pensar em nomes, e aí era um tal de nome em latim, nome de pássaro, de flor, não sei o quê. Até que uma hora falei “foda-se”.
Escolher nome de banda é uma das tarefas mais ingratas do mundo.
Especialmente quando é assim, que você precisa escolher. Mas nesse foda-se, abri mão e a gente ficou com Gole Seco como nome da banda. É muito mais importante ter um bom nome pra um grupo do que um bom nome pra um disco. Daí, o nome do meu disco demorou para vir e também foi uma dessas escolhas que primeiro escolhi e depois entendi. Nessa pira de parar de teorizar as coisas, de emburacar e ser perfeccionista pra caralho, primeiro fazer e depois entender é uma ótima dica. Fiz muito isso nesse disco, principalmente por não ter tempo. Conversei com a Maria as coisas que eu queria, as referências, e ela entregou os arranjos. Eu queria construir tudo junto e percebi que não ia dar, simplesmente porque não tinha tempo e não tinha dinheiro. “Ah, junta todo mundo e vamos testar? Pô, tem que pagar.” Mas não tinha tempo também, eu nem cheguei a pensar no dinheiro que seria porque a gente não tinha tempo. E isso fez o disco ser um trabalho de confiança. A Maria entregava o arranjo pra mim e o ensaio ia ser em dois dias, e já tinha que gravar dois dias depois disso. Não teve teste de arranjo, foi a Maria trazer o que a gente já tinha conversado e eu falar: “beleza” ou “muda só isso aqui”, mas era tudo no MIDI. E aí passávamos a música uma ou duas vezes juntas, não mais que isso. “Não Me Chama Pra Trampar” foi uma música que era mais difícil, a gente fez duas, e aí já estava gravando. Esse exercício de soltar a mão foi bem interessante.
Você falou de “Não Me Chama Pra Trampar”, que é uma música que salta aos olhos no teu disco. O mesmo vale para “Me Chamou de Feia”, no disco do Gole Seco. São duas músicas que discutem experiências complicadas de ser uma mulher no mundo, mas fazem isso pelo humor. Como é usar humor, pra você?
Acho que é uma válvula de escape, de tensão. Também é uma ferramenta de alcance. Não é racional, mas agora analisando, é sobre isso. Conseguir falar sobre coisas muito densas de uma forma mais leve. Primeiro você ri, depois você pensa “caralho…”. Mas nunca conversei com os caras sobre o que eles achavam dessas músicas.
Sério?
Sim. Que bobagem, né? O que você achou?
“Não Me Chama Pra Trampar”, em específico, é uma música que eu acho muito bacana porque ela parte de um lugar de poder. “Ah é, vai me sacanear? Eu vou sacanear de volta!”. É muito poderoso esse lugar. Quando escrevi sobre o teu show no Bona, essa música me fez pensar muito no humor que a Elis Regina tinha – e das coisas todas que você citou como referência, ela não aparece.
Não falei da Elis em nenhum momento? É verdade. Ouvi muito Elis, pra caralho, com certeza tem. Não sei como eu não coloco a Elis como uma referência de fato.
Acho que ninguém tem colocado a Elis como referência nos últimos anos.
Sério? Será que é um medo?
Vejo a cena discutindo muito mais outras figuras, como a Elza, como a Gal, e sinto que a Elis tá ficando um pouco pra trás.
Que interessante… Ouvi pra caralho a Elis, ouvi muito o “Samba Eu Canto Assim”. É o primeiro, que é um disco fu-dido!, ouvi que nem uma desgraçada. É um disco de humor e de acidez, eu gosto bastante de acidez. Lembro muito da música “Deixa”, tá ligado? “Deixa, fale o que quiser falar, deixa, deixa o coração falar também, porque ele tem, razão demais…” Só que tem um vídeo dela cantando, muito safada, que é muito inspirador nesse sentido, porque ela é muito debochada. Muito! É uma cena dela que me marca muito.
E acho que é essa coisa do deboche que eu percebi no teu show. A Elza tem esse deboche, mas ele é muito mais explícito; a Gal não tem deboche, tem outras figuras de humor. E a Elis tem uma ironia específica: é quase como se você tivesse que olhar pra cara dela para sacar. Enfim, tô viajando aqui…
E a Alcione, e a Elza… a Elza tem, também. A Alcione é um recorte mais dramático.
Mas a Elza tem menos a piscadela, o humor tá mais evidente.
Da Elza eu ouvi muito o “Bossa Negra”. É, sim, pensando… a Elza tem a gracinha, né? Ela não tem tanto a acidez da Elis, de dizer uma coisa e na verdade estar dizendo outra. A Elza é mais sagaz. Você pode esperar um canto ou uma interpretação mais quadrada de amor, de paixão, mas ela vai falar de desejo, de querer dar, de puxar o tapete. Não sei…
Dá pra ficar horas nesse papo, né? Queria te perguntar também das participações do teu disco, que tem a Anná (“Arte de Me Enganar”) e a Jadsa (“Gole Seco”). Por que ter outras vozes cantando contigo num disco que te lança como cantora?
As duas têm vozes pelas quais eu me apaixonei pela voz antes de me apaixonar pela pessoa. A Anná, quando ouvi pela primeira vez, fiquei de cara. E a Jadsa também, vi ela cantando “Já Ri, Já Chorei” num rolê, uma música muito da hora. Ela cantando só voz e violão, antes de gravar, tinha acabado de chegar em São Paulo. Isso faz seis, sete anos. Foram relações que fui construindo na base de tocar, de fazer coisas juntas, de amizade. Mas são duas pessoas cujo trabalho me inspira muito. Amo o “Olho de Vidro”, da Jadsa, amo os dois discos da Anná – no “Brasileira” eu estou em uma das faixas, cantando “Volver”, que é uma música dela. São pessoas próximas e eu queria ter pessoas próximas no meu disco, fosse uma coisa mais do que só alguém que toca bem, ou trazer algum tipo de visibilidade. Eu tinha um pagode, que tinha que ter a Anná, e “Gole Seco”, é uma música com a Jadsa, ela me acompanhou nesse processo de algum jeito, eu diria. Ela me inspira com essa sonoridade. Ela não é uma referência direta, mas com certeza ela é uma referência musical. E as duas são super vozes, vozes diferentes, baita compositoras, super amigas, então é bem importante tê-las comigo, me dando força mesmo. E também celebrar, só a coisa de estar no estúdio de gravação com as suas amigas? Isso é muito legal.
Tem uma coisa de comunidade, de gente ao redor, de uma mão puxa a outra.
Sim. É uma coisa que o Gole Seco também tem muito. É um quarteto vocal de quatro solistas. Ninguém ali no quarteto vem de uma pesquisa de grupo vocal, todo mundo tem seus trabalhos, suas composições. Então você junta quatro solistas e é muito fácil cair numa expectativa de rivalidade, disputa de ego. É o que se esperaria desse encontro. E a gente não passa por isso, definitivamente. Nós quatro somos muito amigas, todo mundo se admira e tem de uma forma muitíssimo orgânica a busca por dar destaque para todas.
As quatro compõem e as quatro solam?
E todos os arranjos do grupo são nossos, feitos por uma ou outra. Ainda não rolou das quatro sentarem e arranjarem juntas, mas espero que role.
Mas é difícil manter essa democracia…
Claro que tiveram atritos.
Não é comunidade hippie.
Não! Mas não passa por esse lugar de alguém querer brilhar mais.
Mas tem algo que me pega aqui. Antes, a gente tinha uma resposta mais difusa do que dá certo – o disco saiu e as pessoas compram, ouvem, ok. Hoje, quando você abre o Spotify, tem lá o total de ouvintes, quanto cada música foi ouvida. Dá para saber na hora o que as pessoas estão ouvindo mais ou menos – e daí é um pulo para alguém pensar que as músicas da Niwa ou da Giu estão dando mais certo, então vamos gravar mais músicas delas?
Nossa! Eu nunca tinha pensado nisso.
Se você está surpresa, é porque isso nunca passou pela cabeça de vocês. Vamos manter assim.
Não, nunca rolou isso. E nem no show, não tem uma coisa de que as músicas funcionam mais ou menos, não tem isso. Acho que a gente tem composições diferentes que dão um balanço legal no show, justamente por esse encontro dos diferentes pontos de vista. Estou muito grata de como as coisas têm acontecido com o Gole Seco, sabe? A gente tinha vários receios de como um projeto vocal ia ser aceito, é uma sonoridade difícil, a gente não estava querendo copiar um tamborim ou um agogô. Não é pop, não é suave, mas pode ser novo, e o novo às vezes é difícil.
Como está sendo circular, seja com o teu projeto solo ou com o Gole Seco? E pergunto isso pensando que São Paulo tem uma quantidade limitada de casas, se for fazer show todo mês, vão sempre as mesmas pessoas…
Estou bem no começo disso. Até agora, tanto com o Gole Seco quanto com o meu solo, eu estava no processo de entregar datas. No ProAC, tem que entregar o disco, fazer o show de lançamento e, como contrapartida para a sociedade, é muito comum fazer show. De contrapartida, fiz dois shows: um na Casa Laudelina, no Canindé, e outro em Tatuí. E é agora que está começando esse processo de ir atrás de shows, aí consegui um Bona, consegui a Casa Odette, estou organizando as coisas para 2024. Mas sabe uma coisa que me dei conta agora? A gente esqueceu de falar de uma coisa muito importante: nesse processo todo do disco, lá em 2021, eu comecei uma parceria com a Fatec de Tatuí, que tem um curso de Produção Fonográfica.
Porque Tatuí tem conservatório…
Exatamente, tem essa coisa de ser cidade da música. E eles começaram um projeto lá, no curso de Produção Fonográfica, de querer trocar experiência profissional dos alunos com equipe para novos artistas. Eles me acharam no Instagram, num vídeo meu cantando “Não Me Chama Pra Trampar”, e me chamaram para tocar esse projeto com eles. Era de graça e eu ia ter uma equipe junto comigo pensando marketing, pensando comunicação… e a gente começou o processo. Eu podia gravar lá o disco se eu quisesse, de graça. Mas quando rolou o ProAC, me dei conta de que seria impossível pelo custo de levar as pessoas pra Tatuí – até porque eu tinha colocado o Estúdio Tó na planilha financeira do ProAC e, como ele estava na ficha técnica, eu teria que “levar o estúdio para Tatuí”. Inviável. Mas a galera da Fatec me ajudou muito com o ProAC. No primeiro ano, a gente fez o projeto em grupo e não deu certo. No segundo, fiz com dois alunos que eu conheci lá, a Marjorie Maximiano, minha produtora executiva, e o Victor Baccili, meu diretor artístico. E eles escreveram comigo o projeto que passou pro ProAC. A Fatec foi essencial nesse processo inteiro, de me manter nos trilhos, criar essa parceria, conseguir o ProAC. E além do show na Fatec de Tatuí, também fiz outras contrapartidas lá: fui dar duas aulas de canto lá para a galera, de auxílio de gravação para cantores. O professor lá que trabalhou comigo foi o Lucas Meneguetti, que fez a masterização de duas músicas do meu disco, foi uma galera que botou muita fé.
A gente estava falando de circulação, que é um tema muito ligado a outro tema importante: grana. O que você faz além de cantar pra poder cantar?
O meu trabalho hoje é só investimento. Tudo que entra dos shows vai direto para os músicos, e eles recebem o mínimo. É uma banda de cinco pessoas, eu sou a sexta, com cinco músicos. Faço show para investir na parada, rodar, mas não é isso que dá dinheiro. O que eu consigo fazer para me bancar é dar aulas de canto, que dou há muitos anos. Adoro dar aula de canto, e agora estou dando só online. Não consegui um lugar para dar aulas presenciais, tenho muitos alunos de fora de São Paulo, gente que mora no México, nos EUA, na França. Tem gente que mora em outros estados, no Rio de Janeiro, mas quero começar a dar aulas presenciais em 2024. Tenho vontade de perguntar para outros nomes que estão grandes, na cena, sobre como eles vivem de música. Porque é muito difícil. É muito louco se manter, querendo. Antes do último show, eu estava passando roupa e pensando: “cara, vou pagar do meu bolso pra fazer esse show”. É um papo romântico, mas é verdade: não quero fazer outra coisa, enquanto conseguir comer e viver. Mas é isso: atualmente é uma parada que não é pelo dinheiro, nem fodendo. É um investimento, quero muito que eu consiga, no futuro, ganhar por isso. Mas todo mundo que eu vejo grande tem que trabalhar com outras coisas, não só de fazer show. A não ser que seja uma coisa mais estourada, mas também não sei se eu quero ficar muito famosa.
Por que aí você perderia o espaço do experimental?
É, exato. A gente tem esperança.
Para a gente não acabar a entrevista nesse tom triste, queria saber um pouco dos teus planos para 2024. Já inscreveu em outro ProAC?
Não, não! Não inscrevi em nenhum edital, mas acho que em 2024 eu me inscrevo de novo. Os planos para o ano que vem são rodar e conseguir estratégias para ter uma base de fãs, fidelizar, conseguir uma troca mais constante e mais real com as pessoas que me ouvem.
O que você chama de troca real?
Tenho muito prazer em conhecer as pessoas que me ouvem, gosto de dar ingresso pra quem me acompanha, que vem e comenta sempre no que eu faço. Tenho muita vontade de falar obrigado para as pessoas que me ouvem e perguntar o que eu posso fazer em troca. Talvez isso diminua meu trabalho, mas tenho muito esse lugar de agradecer as pessoas por ouvirem, é realmente muito importante. Ouvir algo novo e gostar hoje em dia é difícil. Mas é isso: ano que vem, a ideia é fazer show, e não só me aproximar, mas também conhecer e conquistar um público. Ainda não tenho um público meu.
Você já tem um segundo disco composto?
Não. Acho que eu vou querer ir para outra brisa. Estou muito focada no que eu acabei de lançar.
Que bom, porque jornalista é chato e insiste em perguntar do futuro.
É claro que eu já comecei a pensar coisinhas, mas ainda muito inicial. Eu estou muito focada nesse disco, em conhecer o “Antes Que Eu Caia”. As músicas do disco eu conheço há muito tempo, mas a sonoridade dele eu conheço há pouco tempo, quase tanto quanto você, desde quando lancei. É pouco tempo. Não fiquei curtindo as músicas antes de lançar. A master do disco ficou realmente pronta às 11h59 do último dia que eu tinha pra mandar para a OneRPM. Quando lançou, eu estava ouvindo pela primeira vez, quase.
E é um disco em que arranjos, mixagem e masterização contam muito.
Sim! Foi fundamental, bem como a captação. Ter captado no Tó foi fundamental, e as mixes também. Foram nomes que a Maria trouxe pro disco e foi perfeito, como produtora e como resultado final. É um trabalho difícil de fazer, captar isso e imprimir o que a gente queria de estética, num lugar mais moderno. A Maria foi essencial de fazer esse recorte, não só dos profissionais, mas de como ela queria as coisas, norteando todos os processos.
Pra fechar de verdade, dado que essa conversa falou de muitos temas de terapia: qual é a questão que você vai levar para a sua próxima sessão?
Acho que eu vou levar essa reflexão sobre a relação com o público, sobre que tipo de relação eu quero construir com quem me ouve. É um lugar muito truqueiro da relação com o público. De um lado, precisar do público pelo lado profissional; do outro tem afeto, mas é um afeto por necessidade.
E tem outras dinâmicas aí: você vai ser uma pessoa acessível ou distante? Tem que gerar desejo? Quantas pessoas sabem da sua vida?
É. É difícil isso, não sei o que espero disso. Sei que não gosto em absoluto desse lugar distante, de diva, endeusado, nem fodendo. E não acredito que eu me coloque nesse lugar, nem no show, nem pessoalmente. Mas não sei o quanto isso passa por outras expectativas, outros olhares, são coisas que tem que viver para saber. Não falo muito da minha vida pessoal nas redes e não sei se isso afasta as pessoas. Prezo muito por intimidade. Mas é isso: como se fideliza essa relação com o público? Tem essa coisa do fã dizer “te amo”. Isso me faz pensar: “te amo”? Te amo tem um peso tão específico para mim.
Às vezes você reluta para falar isso pra uma pessoa com quem você se relaciona.
É. Ao mesmo tempo, é interessante como o “eu te amo” tem várias formas. Mas eu tenho muito que viver nessa relação com o público ainda. Acho que é isso.
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.
Adorei a entrevista… bem completa e sincera!!
Trabalho lindo!