texto, fotos e vídeos por Bruno Capelas
Quando um artista lança um disco elogiado por conter arranjos intrincados, normalmente um desafio se lança na sequência: como reproduzir essas ideias ao vivo, em cima de um palco? Há quem desista de responder a essa pergunta. Há quem prefira recorrer a bases gravadas e seguir o jogo. Há quem tente e falhe miseravelmente, frustrando a expectativa dos espectadores. E há quem, de maneiras muito interessantes, consiga criar uma estrutura de maneira envolvente, ampliando as leituras sobre sua obra. Na noite da última quarta-feira, 25 de outubro, a cantora Loreta Colucci mostrou que pertence ao último grupo: dona de um dos discos de estreia mais elogiados da cena independente neste 2023, ela trouxe cor e calor às canções de “Antes Que Eu Caia” (produzido por Maria Beraldo) no palco do Bona Casa de Música, no Sumaré – zona oeste da capital paulista.
Graduada em canto popular pela Faculdade Santa Marcelina, Loreta subiu ao palco com uma formação pouco usual, acompanhada apenas por um quarteto de cordas e o músico Fernando Sagawa, que se revezava entre sintetizadores e sopros. Essa estrutura enxuta e heterodoxa, porém, é a cama que permite que a cantora consiga trafegar entre dois pólos próximos, mas que soam distantes no ouvido da maioria das pessoas.
De um lado, a voz potente de Loreta por vezes remete à tradição vocal feminina da canção brasileira, passeando por registros emocionados, humorados ou raivosos – em canções como “Pó”, “Amando Longe” ou o samba “Arte de Me Enganar”, é possível ouvir ecos de cantoras como Joyce, Olivia Byington, Elis Regina ou Elza Soares. Do outro, porém, os arranjos intrincados de cordas e vozes existentes em faixas como “Bom Dia Mãe” aproximam as músicas de Loreta de uma certa esquisitice ou aura cult muito presente na cena paulistana desde os anos 1980 – e quem esfregar um pouco os ouvidos poderá encontrar ecos, propositais ou não, do Grupo Rumo, de Ná Ozzetti ou mesmo dos trabalhos solo de Juçara Marçal.
Para ouvidos experientes, é difícil negar que esses pólos sejam, na verdade, duas faces de uma mesma moeda. Ainda assim, quando são exibidas lado a lado, elas causam um efeito sonoro interessante – como ficou claro, por exemplo, na teatralidade de “Não Me Chama Pra Trampar”, tema feminista em que é possível escutar tanto a aspereza de Juçara quanto certo humor vingativo de Elis (especialmente em um samba malicioso como “Vou Deitar e Rolar”). Teatralidade, aliás, é um dos pontos fortes da presença de palco de Loreta, seja fazendo caras e bocas, interagindo corporalmente com seus músicos ou usando expressões delicadas para aumentar a expressividade de temas como “Amando Longe” ou a já citada “Bom Dia Mãe”.
No palco do Bona, que teve de sair de Pinheiros por conta da especulação imobiliária e agora está sediado, num transplante quase perfeito, numa casa próxima ao metrô Vila Madalena, Loreta fez um show curto, de menos de uma hora – tempo suficiente para ela mostrar não apenas todas as canções de “Antes Que Eu Caia”, mas também algumas referências e passos diferentes.
Do primeiro grupo, ela fez uma versão própria de “Ai Ai Ai”, da cantora catalã Sílvia Pérez Cruz (que se apresenta neste final de semana no Sesc Pompeia, aliás). Já no segundo, ela trouxe ao palco as colegas do quarteto vocal Gole Seco (completo por Niwa, Nathalie de Castro e Giu Loreto) para duas canções que o grupo lançou recentemente em seu primeiro disco – dividido em dois EPs, “Lado A” e “Lado B”, nas plataformas digitais. Primeiro, veio “Sal”, composição da própria Loreta que ganhou calor com o coro presencial. Na sequência, foi a vez de “Me Chamou de Feia”, de Niwa, em outro momento feminista e bem humorado do espetáculo – com destaque não só para o irreverente arranjo vocal, mas também para o movimento coordenado que as quatro cantoras fazem sob as luzes da ribalta.
Antes de cair no lugar comum do bis ensaiado, ainda deu tempo para Loreta cantar “Gole Seco”, a canção que deu nome ao grupo e está presente não só no EP do quarteto, mas também encerra “Antes Que Eu Caia”. Pode parecer confuso, mas é uma amostra da efervescência criativa de uma cantora/compositora que tem muito a dizer – e de uma cena cheia de músicos que colaboram entre si e geram múltiplos projetos, a exemplo do que acontece com outro nome elogiado de São Paulo, a cantora Sophia Chablau.
Mas se isso tudo está parecendo difícil demais, fique tranquilo, caro leitor: no final do show, Loreta caiu mesmo é no samba, junto do violonista Luca Frazão, ao cantar “Arte de Me Enganar”, ganhando até mesmo palmas da plateia marcando o ritmo da canção. As palmas, aliás, não foram poucas, em uma noite que só frustrou expectativas por ter acabado rápido demais, mas suficiente para mostrar uma cantora de grande presente e muito potencial. Vale a pena prestar atenção nos próximos capítulos.
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.