entrevista por Leonardo Vinhas
Nicolas Molina é, talvez, o único cantor e compositor capaz de colocar numa mesma faixa um colaborador dos norte-americanos The War On Drugs e um do pernambucano Tagore. É, também, um músico multipremiado em seu país natal, mas cujos pré-saves de seu último disco foram majoritários no Brasil, onde ele não ocupa nenhuma mídia mainstream. E é, acima de tudo, um dos fazedores de canções mais interessantes da América Latina em atividade.
“Castillos Soho” (2024), seu novo EP, surge quase cinco anos após seu lançamento anterior, “Querencia” (2019). Esse último, também seu álbum de estreia, era um disco denso, que lidava com o suicídio de seu pai e com fantasmas muito pessoais advindos do fato de ter crescido em um pequeno povoado litorâneo (Aguas Dulces, no Uruguai), caracterizado tanto pela beleza natural quanto pela solidão – fora da temporada de verão, a população local não chega sequer a 500 pessoas.
Aqui os ares e as ambiências são outros: em lugar dos espaços acústicos cheios de silêncio e da psicodelia rural à uruguaia do disco anterior, o que domina é uma espécie de folk inspirado pelo que Adam Granduciel, do The War on Drugs, chama de “big songs” – um pop de arranjos ambiciosos e sonoridades amplas, que soam com força tanto nas ondas do rádio como ao vivo (e, se você tiver um aparelho decente, vão soar bem no seu celular também).
O EP abre com “Festejar”, um tour por uma Castillos que se transforma a olhos vistos, e não necessariamente para melhor. Ecos do Nick Cave and The Bad Seeds do começo dos anos 2000 ajudam a criar o clima não só para a letra irônica como também para um dos melhores vocais que Nicolas Molina já registrou, com uma raiva rouca e rasgada nunca antes registrada em seus discos.
Logo depois, “El Potro del Palmar” vem mais alt.country, com pedal steel do sessionman Bryan Daste (que já tocou com Joan Osborne e Courtney Marie Andrews), pavimentando o caminho para “Autos y Camiones”, o ponto alto do disco e uma das melhores canções de Molina. E é nela e em sua sucessora, “Reina Isabel”, em que a cozinha fica a cargo de Patrick Berkery e João Cavalcanti. Berkery é um disputado baterista que já gravou com The War On Drugs (são dele as batidas de “Red Eyes”, “Harmonia’s Dream” e outras), Clap You Hands Say Yeah e Satan’s Clutch, entre outros, enquanto Cavalcanti é o parceiro de Tagore na banda que leva o nome deste último.
Além deles, ambas as canções contam com os teclados de Pablo Gómez – parceiro musical de Molina desde “Querencia” – com as vozes de Emma Ralph, ex-vocalista de Molina y Los Cósmicos que aqui aparece com seu nome de batismo, Viviana Martinez. Ou seja: o uruguaio continua gravando seus discos com uma combinação de amigos e músicos desconhecidos do grande público, mas respeitados pelos nerds de música, aqueles que se interessam tanto pelo que rola dentro do estúdio como por aquilo que soa nas caixas de som. Completa o pacote uma regravação de “Y. T. C. en El Fin del Mundo”, uma canção originalmente gravada para o derradeiro álbum de Molina y Los Cósmicos, “El Folk de la Frontera” (2016).
Nicolas Molina abriu a câmera para uma videoconferência com o Scream & Yell um dia após o lançamento do álbum no começo de 2024. Obviamente, “Castillos Soho” ocupou a maior parte da conversa, mas houve bastante espaço para falarmos sobre a contradição entre o reconhecimento de crítica e o alheamento do público, a inviabilidade financeira das turnês fora do mainstream e as mudanças de mentalidade que são inevitáveis ao longo de alguns anos de carreira.
Foram quase cinco anos sem lançar nada. O que te levou a sair do isolamento e lançar esse EP?
É um pouco clichê dizer isso, mas a verdade é que foram as próprias canções. Levei um tempo grande trabalhando nelas, mas foi como um amigo jornalista me disse: nem foi um tempo tão grande assim, e sim o tempo que me foi necessário. Tenho uma vida, tenho uma filha, então estou muito focado em outras coisas que não são a música. Essas canções apareceram, e me dei conta de que eu tinha um material para um EP e me foquei em gravá-lo, em dedicar um tempo a isso. Continuei tocando ao vivo nesse intervalo, fazendo uns três ou quatro shows por ano, e eu queria, com esse EP, mostrar um pouco do que eu estava fazendo ao vivo.
Essas canções parecem tratar de desencantos variados. Seu primeiro disco, não por coincidência, se chama “El Desencanto” (lançado em 2014 ainda com o projeto Molina y Los Cósmicos). Tem uma não-conformidade com o mundo, especialmente seu mundo mais imediato, que é Castillos; ao mesmo tempo, é um mundo de quem está ciente de que não pode fazer muito para frear o que está acontecendo.
Sim, mas também é um desencanto de alguém que sabe que poderíamos estar fazendo melhor. Porque há um fio de esperança [nas canções], uma crença de que as coisas poderiam ser diferentes. Opções existem, talvez não as estejamos adotando. E me incluo nessa. É muito romântico dizer que “a mudança está em cada um”, mas se está em cada um, por que caralho não fazemos essa mudança? (risos)
E por onde passa essa mudança?
Em “Autos y Camiones”, por exemplo, estou relatando, em primeira pessoa, que estou em Castillos vendo passar carros e caminhões por essa cidade que está toda afundada, que tem índices de suicídio muito grandes. A mudança, nesse caso, estaria nas pessoas deixarem de olhar os turistas e caminhões passarem pela estrada e começarem a frequentar elas mesmas esses espaços verdes que estão próximos delas, onde há praias, palmares, lagoas. São coisas assim. Em “Festejar”, por exemplo, podemos festejar um aniversário em vez de ficar aplaudindo um desfile cívico-militar. Cara, que merda é essa de ficar aplaudindo militares? Vamos aplaudir os médicos, as professoras. Vamos fazer essas coisas!
Entrando agora no aspecto musical de “Castillos Soho”: você sempre teve um cuidado muito grande com a produção, tentando sempre extrair a melhor sonoridade possível dentro das condições técnicas e financeiras disponíveis. Esse EP tem uma sonoridade mais cheia, que soa melhor em espaços grandes, que parece inspirada por gente contemporânea, como The War On Drugs ou Kurt Vile, mas que tem um pé no passado…
(interrompendo) Sim, mas porque as minhas referências do passado são as mesmas que as dos artistas que você citou: Tom Petty, Bob Dylan…
Sim. Porém, você disse no começo da entrevista que o EP nasceu por causa das canções. Normalmente você compõe ao violão, então queria entender como esse processo mais diretamente acústico levou a essa sonoridade ao estilo “big songs”…
Sabe de uma coisa? Algo que eu só estou me dando conta mais recentemente é que a maior parte desse disco foi composta a partir da guitarra elétrica. Isso é uma grande parte desse porquê. De resto, não sei se foi uma sonoridade tão consciente. Ela foi acontecendo, era um reflexo das coisas que eu andava escutando (nota: Molina veio ao Brasil para ambos os shows do The War On Drugs no C6 Fest. Antes do show carioca, presenteou Adam Granduciel com o vinil de seu primeiro álbum solo, “Querencia”, que veio a ser citado pelo líder do The War On Drugs no meio do show). E acho que ter o Pablo Gómez comigo me permite buscar novas paletas sonoras. Ele é muito bom no que diz respeito a entender minha cabeça: não preciso explicar nada para ele. Nesse disco, fomos ao estúdio Spector, na Argentina, que tem sintetizadores e teclados analógicos. Se você escuta um [órgão] Hammond no disco, é um Hammond de verdade. Os sintetizadores eram todos dos anos 70 e 80, tudo original. Não sou contrário aos plugins, mas queria experimentar como seria usar instrumentos de verdade. E o câmbio monetário me facilitou muito: gravar nesse lugar era praticamente o mesmo custo do que eu pagaria pra ensaiar aqui em Montevidéu. Então teve o Pablo me ajudando a experimentar com esses sons, mas também tinha a vontade de nós dois de que esse disco soasse maior e um pouco menos cru que os anteriores. O Guillermo Berta, que mixou e masterizou, também foi muito importante. Sinto que trabalhei com pessoas com quem não tive que explicar tanto as coisas… nem tive do que me arrepender depois! (risos – Molina se refere à mixagem de “Querencia”, que foi feita inicialmente por Craig Schumacher nos Estados Unidos, mas que foi descartada, alguns dias e muitos dólares depois, devido ao uruguaio tê-la considerado insatisfatória).
E como você chegou ao Patrick Berkery?
Eu escrevi pra ele. Ele toca a bateria em uns 33% dos discos do The War on Drugs, tocou em canções como “Red Eyes”, “Ocasional Rain”, e mais um monte de outras. Não faz muito tempo, numa publicação comemorativa do lançamento do “Lost In The Dream” (disco do ano do Scream & Yell em 2014), ele tinha sido marcado. E ele tinha alguma mensagem do tipo “se você quiser gravar comigo, me escreva” (risos). É um cara muito simples, foi tranquilo. Ele tem tudo em casa, não precisei contratar um estúdio pra ele gravar. Ele me mandou umas amostras de como soavam as gravações na casa dele, mostrei-as para o Guillermo Berta e para o Otávio [Bertolo, produtor brasileiro com quem Molina já havia colaborado – inclusive em projetos para o Selo Scream & Yell), e eles disseram que era perfeitamente possível gravar um disco com aquele som. Tinha o profissionalismo que eu queria para o disco, e dialogava bem com o que eu conseguia gravar no Spector. Ele aceitou meu convite, eu aceitei algumas condições que ele colocou, e rolou.
Quase 50% dos pré-saves do disco vieram do Brasil. Você já veio ao país várias vezes, chegou a fazer algumas turnês longas pelo interior de São Paulo e do Rio Grande do Sul, tocou em Porto Alegre, São Paulo e Belém… Diante disso, quais os planos para “Castillos Soho” no Brasil?
Tomara que sejam os melhores! (risos) E que eu possa voltar a fazer turnês! Eu sei que nunca estive na moda, mesmo assim acho que meu momento no mercado musical já passou, no Brasil inclusive. Mas eu gostaria muito de pelo menos fazer o que já fizemos antes. Acho que vai ser muito difícil, mas adoraria ter várias datas nos SESCs ou na Serra Gaúcha, que foram os lugares por onde toquei. A única possibilidade concreta que vejo hoje de tocar no Brasil é pegar o carro e ir. Fica a dica para quem estiver lendo essa entrevista: eu moro muito perto do Brasil! Castillos fica a uns 50 minutos de Barra do Chuí, que é a fronteira, a cidade mais austral do Brasil. O problema é que ela está a uns 250 km da primeira cidade grande, que é Pelotas (risos), que por sua vez está a 300 km da primeira capital, que é Porto Alegre (mais risos). Então são umas cinco, seis horas para chegar a Porto Alegre – que é o que eu levaria para cruzar o Uruguai. Mas se em algum momento eu ver que há gente esperando que eu toque novamente no Brasil, o jeito vai ser pegar o carro, chamar três músicos e sacrificar o som do disco – se você me perguntar, eu queria mesmo era ir com seis músicos e reproduzir a sonoridade do álbum. Mas o mais provável é que eu tenha que fazer algo enxuto. Seja como for, estou sempre aberto pra pessoas que me escrevem e me convidam para tocar. Mas só deixando claro para os produtores de festivais do Brasil (risos): dá para eu ir até vocês com um voo doméstico, não precisa ser internacional! (risos)
Aliás, “Querencia” foi um disco que praticamente não foi apresentado ao vivo, não?
Sim. Quase nada, na verdade. Além do Festival Conexão Latina, que foi em 2018 (no Mundo Pensante, em São Paulo) mas já tinha uma parte do repertório, fiz poucas outras coisas. O disco saiu em junho de 2019 e em fevereiro [de 2020] apareceu o coronavírus, em março fechou tudo… Ou seja, seis meses depois do lançamento, veio a maior pandemia do mundo. Eu tinha muitos shows agendados no Uruguai, íamos tocar no Teatro de Verano, no Autores en Vivo – que é um programa da televisão estatal aqui onde tocam os artistas já “consagrados”, entre aspas. Íamos tocar na Argentina, no South by Southwest dos Estados Unidos, e em outros eventos nos Estados Unidos – já estava tudo certo! Eu ia tocar no Brasil, inclusive, eu tinha alguma coisa em Caxias do Sul e em Porto Alegre, embora não me lembre bem se era um festival ou sei lá o que…
Mas o que você está armando para esse EP agora? Como é o show que você está montando?
Não estou. Hoje em dia, tocar ao vivo é sinônimo de perder dinheiro. É muito complicado. Há um tempinho, toquei com os amigos do La Foca, uma banda que fez 30 anos. Tocamos na abertura desse show comemorativo, só com teclados, guitarra e bateria eletrônica, mas o som ficou bom! Pode ser esse o futuro. Tocar com banda grande vai ser muito difícil.
Você falou que seu momento no mercado já passou. Tem uma coisa que me chama atenção na sua história: você já ganhou os Premios Grafitti (a maior premiação da música uruguaia) mais de uma vez, já ganhou o Premio Nacional de Música do Ministério da Educação e Cultura… Ou seja, é um reconhecimento não só de crítica, mas até institucional. Mas seus números no Spotify são cíclicos, muitas vezes ficam baixo, enquanto no Youtube têm muito mais visualizações. Como é navegar no meio desses espaços contraditórios?
É um pouco perigoso, porque acreditar que a crítica é tudo é uma mentira. Está ótimo, eu gosto muito disso, inclusive acontece de muitos músicos me encherem a bola – inclusive alguns que são heróis para mim. Mas a verdade é que você tem que se ligar com as pessoas que estão aí fora esperando que você lance um disco e toque ao vivo. Ainda ontem eu estava jogando futebol society com uns amigos, trombei com o Pablo Gómez, e ele estava todo feliz, dizendo que muita gente estava falando do disco nas redes sociais e tal. Eu disse pra ele não dar fé demais para isso, porque além de ser momentâneo, vem de pessoas que conhecemos, não foi como se um medalhão tivesse incluído uma música minha numa playlist. E mesmo que fosse algo assim, não muda muita coisa. O que conta é que as pessoas escutem o disco, que exista alguém do outro lado. É mentira quando dizemos que fazemos música para nós mesmos e se ninguém escuta não dá nada. Tem um pouco disso, sim, mas se você faz um disco e só dez pessoas escutam, você começa a pensar em gravar só com um violão, ou só continua tocando em casa, sem fazer discos. Então, voltando à pergunta: é um terreno perigoso. Quando “Querencia” saiu, foi um inferno de críticas boas: saiu na KEXP, saiu na Radio Tres, da Espanha, no [portal argentino] Indie Hoy, no [jornal] Pagina 12, em todos os meios de massa do Uruguai, e fomos tocar no La Trastienda e só foram 100 pessoas. Muito pouca gente. No meio do show, pensei em jogar umas duas bolas de futebol para o público e pedir pra eles armarem umas partidas (risos). Quando tocamos, anos antes, com Molina y Los Cósmicos, foram 500 pessoas. Por isso digo que, quando me chamam pra tocar, eu perco dinheiro. No passado tocamos com os Supersónicos (veterana banda do underground local) porque tínhamos que fazê-lo. Quando eu cheguei em Montevidéu com 18 anos, eu vi todos os shows deles que consegui durante dois anos, e sei que eles apreciam minha música. Eu disse a eles que eu não ia conseguir levar muito público, mas não foi por isso que eles me chamaram. Então eu gosto da crítica, gosto que seja boa, mas a real é que às vezes cansa fazer algo e ver que o público não apoia.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.