texto por Giancarlo Rufatto
A primeira coisa que precisa ser escrita aqui é que o Replacements é minha banda favorita no mundo, em todas essas décadas de música popular, e que “Tim” é um dos discos que mais amo nesta vida. Dito isso, tudo abaixo deste parágrafo é carregado de amor e empatia por aqueles que no final da adolescência me ofereceram um lugar quentinho para acomodar as coisas esquisitas que eu sentia e todas as inadequações para com o mundo real.
No final de setembro ocorreu o lançamento de uma nova versão de “Tim”, álbum de 1985 do Replacements e o primeiro pela gravadora Sire – a mesma que havia contratado Madonna dois anos antes e era bancada com o dinheiro de um pilar do entretenimento americano, a Warner Bros. “Tim” era o sucessor de “Let it Be”, de 1984, um álbum extraordinário lançado por um pequeno selo (twin/tone) que é tratado como o melhor disco da banda e um dos melhores discos dos anos oitenta.
A história nos conta que o álbum de estreia pela grande gravadora fracassou nas vendas, o guitarrista Bob Stinson foi demitido e a banda tomou outras direções sobrevivendo por mais três discos até acabar em 1990.
Ironicamente apelidado de “Let it Bleed”, a nova versão do álbum mixada por Ed Stasium busca corrigir os lendários equívocos realizados pelo produtor original, Tommy Ramone. Os erros foram tantos que muitas vezes se sobressaiam sobre a importância do álbum, basicamente a péssima mixagem só encontra dois rivais na história da música pop: “Raw Power” produzido por David Bowie e “Let it Be” produzido pelo Phil Spector, dois discos que também ganharam novas mixagens para corrigir os erros originais.
A nova mixagem de Stasium é brilhante, viva e literalmente reveladora no sentido que finalmente conseguimos ouvir coisas que haviam sido gravadas, mas que estavam soterradas por efeitos. Os exemplos mais significativos estão nos vocais de Paul Westerberg, que antes eram corroídos pelo eco e agora são claros (e ásperos); no surgimento de backing vocals onde antes não havia nada; as guitarras de “Little Mascara”, que eram cortadas no clímax da canção, escondiam quase um minuto a mais de música e um final sensacional; no piano e sintetizadores em “Here Comes a Regular” que antecipava em dez anos o som que o Wilco teria em 1995. Estava tudo ali, mas simplesmente não conseguíamos ouvir porque assim a vida quis que fosse por quase quarenta anos. É história.
“Let it Bleed” despertou em mim um processo de reflexão sobre um desejo íntimo do ser humano: a possibilidade de viajar no tempo e mudar a história, consertar os erros do passado. Por quatro décadas os fãs da banda conviveram com a pergunta: como teria sido o mundo se o Replacements tivesse tomado outras atitudes e direções musicais mais comerciais? Essa questão diz muito mais sobre seus fãs do que sobre a banda ou o mundo. Seus fãs (eu) amariam tanto a banda e se dedicariam tanto a cultua-la se os caras tivessem seguido o caminho do R.E.M., tornando-se uma banda profissional e angariando uma multidão de fãs nos anos noventa?
Apesar de tudo que foi feito errado na mixagem original de 1985, “Tim” tornou-se um álbum cultuado pela força das canções que eram boas demais para serem estragadas. “Left of the Dial”, “Bastard of Young”, “Hold my Life”, “Swingin Party” e “Here Comes a Regular” sempre serão documentos sobre ser jovem e cheio de expectativas que não se cumprem. É significativo que estas canções estejam no álbum que poderia ter tornado o Replacements “grande”, mas que vendeu quase nada, 75 mil cópias no ano em que foi lançado. O fracasso de “Tim” é parte de toda a confusão existencial e autosabotagem que marca a mitologia da banda, assim como a implicância com os vídeos para MTV e os programas de televisão. “Let it Bleed” é lindo, maravilhoso, cinco estrelas, mas infelizmente é ficção de fã. Nesta nova versão ouvimos uma banda idealizada, um Replacements livre de seus conflitos musicais e pessoais, aceitando o poder oferecido pela máquina de uma grande gravadora e rumo a um sucesso merecido que sabemos que nunca aconteceu.
“Tim – Let it Bleed Edition”, lançado pelo Rhino, integra um box com quatro CDs e 65 faixas que ainda incluí uma versão remasterizada de “Tim”, um CD extra com faixas raras, takes alternativos (produzidos por Alex Chilton) e demos além de um quarto CD com a integra de um show em Chicago, janeiro de 1986.
Leia também: cinco músicas para entender os Replacements, por Tiago Agostini
– Giancarlo Ruffato (@rufatto) é músico (https://www.giancarlorufatto.com.br/). Lançou em 2023 as coletâneas “Meus Sertanejo Vol.1 e Vol.2”. Ouça aqui.
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