Meu disco favorito de 2022: Maglore, por Bruno Capelas

MEU DISCO FAVORITO DE 2022 #6
“V”, Maglore
escolha de Bruno Capelas

Artista – Maglore
Álbum – “V”
Lançamento – 18/08/2022
Selo – Difusa Fronteira
Ouça: Spotify, Apple, Tidal, Deezer

Toda vez que sento na frente do computador para escrever meu texto de disco do ano para o Scream & Yell, busco fazer um exercício mental de retrospectiva. Afinal de contas, cartesiano que sou, acredito piamente que o disco que melhor representa meu ano tem de representar o clima dos últimos trezentos e tantos dias. Mas que estranho ano, este 2022, para se escolher um disco – e não me refiro só às eleições ou à Copa do Mundo, ou às mortes de Pelé e Gal Costa, para ficar em alguns marcos temporais do consciente coletivo. Uma temporada em que a verdade esteve em “beijos em aeroportos e rezas em hospitais”, 2022 também foi um ano em que eu perdi pessoas queridas, deixei um emprego que me deixou maluco, continuei a viver um relacionamento à distância, aprendi a não ter um trabalho fixo e vá lá, ganhei algum dinheiro. Foi ainda o ano em que depois de dois anos trancado em casa, voltei à rua, aos bares e pude também chorar vendo shows não só pela cidade, mas também pelo mundo.

Pode ser que você ache todas essas experiências pessoais demais, mas talvez algumas delas também tenham acontecido com você. O que sei é que não consigo definir 2022 em um só humor, de maneira que o meu disco favorito de 2022 só poderia ser um álbum caleidoscópico: “V”, da Maglore, lançado em agosto pelo quarteto baiano. À primeira vista, sei que muita gente vai até dizer que “V” é só mais um disco de rock misturado com MPB, essa coisa meio esquisita que parece um “bicho em extinção”. Mas, parafraseando Neil Young, há mais nessa pintura quadriculada imitando “A Hard Day’s Night” do que os olhos podem ver. Maduro e pop ao mesmo tempo, “V” é o fruto de uma longa jornada acumulando experiências.

Ao longo de quatro álbuns em uma década, a Maglore soube evoluir do power pop adolescente, entre Teenage Fanclub e Cascadura, para uma sonoridade complexa, traçando uma estrada entre o indie e a brasilidade sem soar caricata. É algo que se pode verificar em “Todas as Bandeiras”, de 2017, um disco responsável por expandir o público da banda de maneira sensível. De lá para cá, porém, a gente envelheceu e muita história se escreveu em um final que não chegou – e um compositor sensível como Teago Oliveira não poderia ficar alheio a isso. Parte dessa evolução histórico-sonora apareceu de forma discreta em sua estreia solo, “Boa Sorte”, de 2019, e em especial, na bela “Corações em Fúria (Meu Querido Belchior)”, na qual ele já reivindicava uma rota diferente das que já tinha traçado dentro da canção brasileira.

Outra rota de evolução tomada pela Maglore entre 2017 e o presente responde pelo nome de Lucas Gonçalves: adicionado à banda durante as gravações de “Todas as Bandeiras”, o baixista mineiro chegou ao grupo de maneira tímida, quase obedecendo ao estereótipo de quem toca seu instrumento. Durante a pandemia, porém, “Luquinhas” soltou a mão: entre 2020 e 2021, ele lançou os excelentes “Se Chover” e “Verona”, dois discos solo que se inserem na tradição da canção estradeira (de Clube da Esquina, Guilherme Arantes, Sá e Guarabyra, Zé Rodrix e outros tantos) sem precisar pedir “bença” ou licença. Era difícil não imaginar que ele não teria um espaço a ocupar no futuro da Maglore – como ocupou.

O re-encontro do prolífico Lucas com uma versão mais madura de Teago é um dos principais motivos que fazem de “V” um disco tão rico, passeando por inúmeras sonoridades. Poderia se dizer que são influências, mas é mais que isso: em seu quinto álbum, a Maglore soube combinar referências de uma forma que tornou fácil entender os caracteres, mas difícil de dizer que se trata de uma cópia em papel carbono. Quer uma prova? Quem ler a letra de “Eles”, uma das melhores canções de protesto das últimas temporadas, pode encontrar Teago revisitando Caetano Veloso e seus podres poderes, mas as guitarras e a bateria de Felipe Dieder levam a canção para um patamar indie-00, enquanto os espertos backing vocals de Lelo e Luquinhas remetem aos Beatles circa-1968.

Não é só: em diversos momentos, as guitarras de Teago e Lelo Brandão remetem, simultaneamente, a George Harrison, Pepeu Gomes e ao Wilco da fase pós “Sky-Blue-Sky” – não à toa, o segundo ganhou o apelido de Lels Cline entre alguns fãs do grupo. Como bom mineiro, as composições de Lucas apontam para o que a banda chamou carinhosamente de “Beatles Nascimento”, mas às vezes desembocam em uma psicodelia spinettiana (“Medianias”), passeiam pelos anos 1960 sem clichês didáticos (“Maio 1968”) ou se desmancham em uma canção de amor perfeita como “Vira Lata”.

Teago, por sua vez, vai do 0 a 100, trafegando entre uma pós-bossa elegante à maneira de Gilberto Gil (“Amor Antigo”) até balanços que parecem querer desembocar num trio elétrico, mas escondem críticas diretas (“Revés de Tudo”). Ele também passeia por canções pop que dão um abraço em Paul McCartney (“Outra Vez”) e letras que podem ser tão específicas quanto amplas (“Transicional”). E isso tudo para não falar na canção do ano, que junta todas as referências dos últimos três parágrafos num furacão de menos de quatro minutos: “Espírito Selvagem”, tão representativa de 2022 quanto ancestral, tão política quanto romântica, mística e pé no chão ao mesmo tempo, uma canção tão poderosa que só poderia ocupar um único lugar no repertório dos shows da Maglore: o último bis.

Por falar em shows, vou precisar me repetir. Lá em março, antes de “V” sair, vi o quarteto no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, e cometi a empáfia de dizer neste site que “hoje, são poucas as bandas no Brasil capazes de fazer em cima de um palco o que a Maglore faz, em um clima de celebração pop-brasileira sem cair em clichês e vapores baratos”. Ao longo do ano, pude comprovar essa máxima outras três vezes, vendo o quarteto no show de lançamento do disco no Sesc Pompeia (setembro), no Primavera Sound São Paulo (novembro) e no Sesc Santo André (dezembro) – vídeos ao final do texto.

Nas três, foi bonito demais ver um grupo com domínio de palco e molejo, seja acompanhado de cordas e metais ou apenas reduzido a quarteto, explorando um repertório tão forte que mal dava tempo de Teago conversar com o público entre as músicas. Mais: foi interessante perceber como entre os shows, espaçados por poucas mas históricas semanas, as canções ganhavam novos significados. O que era esperança e raiva na choperia virou celebração e catarse no Anhembi, com o público cantando cada vez mais alto um repertório ainda fresco. Melhor ainda, e como há dois anos não se fazia, foi arrepiante ter uma demonstração viva, ao vivo e a cores, da força de um álbum que tem os pés firmes neste 2022.

Ao final de tudo, “V” é uma obra que caminha contra o vento e canta contra o fascismo, sem abdicar da ternura jamais, trazendo canções para aquecer a alma e que merecem ir muito além de um amor de verão. Um álbum que me acompanhou em todos os momentos nos quais o coração esteve a mil e uma sensação (nem sempre boa) de enlouquecer se avizinhou. Um disco feito por uma banda em plena maturidade e exercendo seu potencial, sendo tudo o que se é, por muito mais iluminação do que acaso. Se em 2022 a vida foi uma gran… (opa!) aventura, a trilha sonora não poderia ter sido mais bem escolhida. Saúde!


– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.

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